A defesa do território corpo-terra: uma alternativa para os movimentos sociais em resistência (1)

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O município de Rancho Grande, no norte da Nicarágua, enfrenta a instalação de um projeto de mineração de ouro a céu aberto pela empresa canadense B2Gold. Com mais de 80% da população se posicionando de forma contrária, o Movimento Guardiães de Yaoska, formado por mulheres e homens das comunidades, liderou as ações de protesto e denúncia que paralisaram o projeto. A ameaça ainda está presente, uma vez que existem outras sete concessões à empresa no município.

A mineração a céu aberto, assim como outros megaprojetos de exploração da natureza (assim chamados em função de suas grandes dimensões), é uma estratégia do Governo da Nicarágua para reduzir a pobreza. No entanto, os impactos econômicos, sociais e ambientais sobre a população e os territórios onde se instalam são muito negativos. As mulheres são especialmente prejudicadas, com efeitos sobre suas atividades econômicas, sua saúde, sua participação na tomada de decisões e sobre as formas de violência de gênero que vivenciam.

A luta pela defesa da terra é inseparável da defesa dos corpos das mulheres, como primeiro território a libertar em um sistema que os explora. É necessário fazer uma defesa mais abrangente do direito de decidir sobre o território, o corpo e a vida. Somente unidas, as lutas têm chances de resistir e criar alternativas para transformar o sistema capitalista, patriarcal e colonial (2).

Defesa do território para a vida

O território não é apenas o espaço físico em que estamos, ou seja, florestas, montanhas e rios. Ele tem um significado mais profundo: é o lugar onde se dão as relações humanas, a relação com o entorno (animais, plantas), as rochas minerais que o sustentam e o ar que o rodeia e possibilita todas essas formas de vida. Também é a história, a memória e a cultura, as raízes e a espiritualidade que formam a visão de mundo de cada povo. É no território que se constroem as identidades individuais e coletivas. Portanto, sua defesa é a defesa das formas de vida que o habitam.

Do ponto de vista da economia feminista (3), afirma-se que a vida é baseada em dois princípios: interdependência (necessidade de relações humanas) e ecodependência (a relação com o entorno em que se está localizado). A interdependência no território pode se expressar nas relações de solidariedade, respeito e reciprocidade, mas também através de relações de desigualdade e exploração entre homens e mulheres pelo patriarcado em que vivemos, gerando discriminação, opressão e violência.

A ecodependência é a relação com a natureza. Nesse sistema, as empresas exploram e saqueiam os recursos naturais para obter lucro, causando impactos graves sobre a vida das comunidades, que normalmente não são assumidos pelas empresas nem pelo Estado.

Como a vida pode continuar em um sistema que a ataca e que antepõe a acumulação de capital à vida das pessoas e da natureza (4)? Essa continuidade acontece graças ao trabalho de cuidados que as mulheres fazem nos lares (5). Os corpos das mulheres são os que lutam para garantir a sustentabilidade da vida, em qualquer circunstância e contra todos os obstáculos. Diante de uma ameaça como a instalação de um projeto de mineração, a defesa do território se transforma em uma luta para defender a vida.

Mas que vida queremos defender? Uma em que exista desigualdade, e nós, mulheres, não tenhamos as mesmas oportunidades que os homens? Onde nossos corpos e a nossa sexualidade sejam controlados? Ou onde os recursos naturais sejam degradados e saqueados para benefício dos interesses de um pequeno grupo contra a maioria da população?

Para defender uma boa vida, na qual possamos ser felizes, a luta tem de combater a injustiça do próprio sistema, a defesa conjunta da terra e do corpo. Caso contrário, a defesa territorial será parcial e contribuirá para manter as desigualdades.

O primeiro território a defender é o corpo das mulheres

As feministas comunitárias da Bolívia e da Guatemala identificam o patriarcado como o sistema de todas as opressões, explorações, violências e discriminações que a humanidade e a natureza vivenciam, construído historicamente sobre os corpos das mulheres (6). Ou seja, a dominação das mulheres é a mesma que explora a natureza; é uma relação de desigualdade que também se identifica com as opressões sobre determinados povos: racismo, sexismo, colonialismo... Dessa perspectiva, tanto os corpos das mulheres quanto a terra são concebidos como territórios sacrificáveis e a conquistar.

Os movimentos feministas contra os projetos extrativistas construíram um novo imaginário político e de luta, que se concentra no corpo das mulheres como primeiro território a defender (7). Assim, o corpo se torna a primeira fronteira, o lugar a partir do qual –inicialmente de forma individual e depois, coletiva – defende-se o mais sagrado, a vida própria e a comunitária, os saberes, a identidade, a memória. Entretecida com essa resistência está a defesa do território-terra, pois “não podemos falar de corpos felizes e emancipados enquanto a natureza estiver extremamente oprimida e explorada. A libertação dos corpos passa pela libertação da terra” (8).

A resistência comunitária contra a mineração em Rancho Grande

O Movimento Guardiões de Yaoska surgiu em 2003, como organização comunitária de homens e mulheres de 38 comunidades de Rancho Grande, preocupados com a ameaça de instalação da mineração em seu território. Eles questionam o suposto “desenvolvimento” prometido pela mineração, pois conheceram outros municípios mineiros na Nicarágua e viram como, em vez de reduzir os índices de pobreza, a desigualdade se tornou mais evidente.

A defesa do território nesse município não é apenas uma questão de respeito ao meio ambiente; ela tem a ver com a defesa de suas formas de vida, que tem profundas raízes na vida da terra e na vida da comunidade, na qual ainda existe o cuidado mútuo, e o valor do coletivo prevalece sobre o individual. No entanto, como parte de uma sociedade patriarcal, há também uma grande desigualdade entre mulheres e homens.

As mulheres de Rancho Grande são membros da base social dos Guardiães de Yaoska e líderes nos espaços de tomada de decisões, com capacidade para mobilizar outras. Na Nicarágua, estão surgindo, com força, várias expressões comunitárias de rejeição a grandes projetos extrativos, tais como mineração, o canal interoceânico, a energia hidrelétrica, a agricultura de monocultura, como cana-de-açúcar e outras. Muitos desses movimentos são liderados por mulheres, que estão adquirindo mais protagonismo e visibilidade, entendendo que elas são as mais afetadas.

Os impactos sobre as mulheres

Quando existe, a mineração se converte na principal atividade econômica, desvalorizando as práticas não comerciais e coletivas – usadas principalmente por mulheres – por terem menos presença na economia formal. As alterações produzidas nos ecossistemas e na água recaem sobre as mulheres, tradicionalmente responsáveis por garantir a alimentação e a saúde das famílias.

Por outro lado, os empregos que a mineração oferece às mulheres são de faxineiras, cozinheiras, lavadeiras, cuidadoras de viveiros, enquanto aos homens são propostos os trabalhos de mais prestígio e melhor remuneração. Isso incentiva a divisão sexual do trabalho (9) e aprofunda as relações de dominação de homens sobre mulheres.

Além disso, com a presença de muitos homens de fora na maioria dos territórios de mineração, há um aumento das denúncias de violência e abuso sexual por parte desses homens, que se sentem legitimados para invadir o território e os corpos das mulheres.

Os projetos extrativos são acompanhados por todos os tipos de violência. Em Rancho Grande, as autoridades tentaram impor a mineração contra a opinião da população. O exército e a polícia protegem o investimento estrangeiro e reprimem qualquer ação de protesto da população. Por se posicionar contra a mineração, várias mulheres e homens do Movimento Guardiães de Yaoska sofreram ameaças e agressões físicas e verbais por parte de pessoal da empresa e funcionários do governo, com total impunidade. É uma subserviência do Estado diante dos interesses do capital (10), característico de atividades extrativas.

Uma alternativa: unindo as lutas

O sucesso do cancelamento do projeto de mineração em Rancho Grande se deve, em parte, à aliança com organizações sociais, incluindo as feministas. O Movimento entendeu que a defesa do território não pode estar repleta de relações de desigualdade, porque isso também enfraquece a comunidade e provoca ruptura. A rebeldia tem sua força na defesa de uma vida boa e feliz para todas e todos, com corpos livres, que vivam em harmonia com a natureza e entre si.

Na Nicarágua, segundo o Governo, o desenvolvimento e a redução da pobreza passam por projetos extrativistas, capitalistas, colonialistas, patriarcais e antropocêntricos (11), que prejudicam nossos corpos, ameaçam nossa liberdade, arruínam nossa terra e empobrecem a maioria da população em benefício de empresas estrangeiras. Isso representa um ataque direto à vida. Apenas unindo as lutas dos movimentos sociais em defesa do território-corpo às que defendem o território-terra é que ambas têm chances de resistir e avançar na construção de boas alternativas de vida que nos permitam desfrutar dela em justiça e igualdade.

Teresa Pérez González, teresajetlag@yahoo.es
Parte do movimento feminista nicaraguense

(1) O artigo original foi publicado pelo Grupo Venancia, em “Mujeres que sostienen la vida: Retos para los feminismos desde la realidad nicaragüense”. Disponível em: http://grupovenancia.org/mujeres-que-sostienen-la-vida-retos-para-los-feminismos-desde-la-realidad-nicaraguense/
(2) Capitalista, porque se baseia na propriedade privada e no benefício econômico individual. Patriarcal, porque promove a superioridade do masculino sobre o feminino, criando desigualdade de poder e dominação de homens sobre mulheres. Colonial, porque alguns países se apropriam do território, das riquezas e de outros recursos por meio de relações de exploração, supondo que nem todas as vidas têm o mesmo valor.
(3) Amaia Pérez Orozco (2014). Subversión feminista de la economía, Ed. Traficantes de sueños-Mapas.
(4) É o que a economia feminista chama de conflito capital-vida.
(5) Atividades necessárias para atender às necessidades humanas: alimentação, saúde, educação, limpeza doméstica, afeto, carinho e muitas outras. Elas recaem de forma tradicional e injusta sobre as mulheres, o que se justifica em termos de capacidades, tradições ou em nome do amor.
(6) “Tejiendo historia para sanarnos desde nuestro territorio cuerpo-tierra”. Amismaxaj (2015).
(7) Miriam Gartor (2014). El feminismo reactiva la lucha contra el extractivismo en AL. http://www.lamarea.com/2014/02/17/ecuador-extractivismo-mujeresB 226_Boletin Completo_PO.doc
(8) Entrevista com Lorena Cabnal, Amismajax, Guatemala.
(9) Organização injusta dos trabalhos que atribui os menos valorizados às mulheres e os mais reconhecidos aos homens.
(10) Julieta Paredes, (2008). “Hilando fino desde el feminismo comunitario”. Ed. Lesbianas Independientes Feministas Socialistas.
(11) Diz-se antropocêntrico quando se põe o ser humano no centro, ignorando as outras formas de vida das quais dependemos para sobreviver.