A “economia verde”: dando imunidade a criminosos

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“O objetivo é transformar a legislação ambiental em instrumentos negociáveis”
Pedro Moura, fundador da Ecosecurities, uma empresa de créditos de carbono, e criador e diretor da “Bolsa Verde Rio”, a bolsa de valores verde do Brasil (1)

Por mais de uma década, um importante debate político nacional e internacional, visando dar um novo valor econômico à natureza, vem redefinindo as florestas como prestadoras de “serviços ambientais”. Vídeos promocionais, slogans e folhetos bonitos promovendo uma “Economia Verde” repetem várias vezes o quanto as florestas e a biodiversidade são essenciais pelos “serviços” que prestam à humanidade. As políticas e os planos que implementam a “Economia Verde” não visam transformar a atual economia prejudicial em uma que não o seja, e sim algo muito diferente: (re)criar a própria “natureza”. Essa nova visão da Economia Verde sobre a “natureza” reforça o entendimento colonial que a vê como um conjunto de espécies não perturbadas pela interação humana. Ela nega ainda mais o papel dos povos da floresta na formação da natureza ao longo de milênios e a coloca a serviço da mesma economia que continua destruindo como antes. O resultado é uma redefinição que reduz as causas subjacentes da destruição de florestas e outros territórios a uma questão de números e unidades. Por sua vez, os discursos técnicos sobre como medir cada “serviço” e como “compensar” ou “restaurar” a “inevitável” destruição da “natureza como prestadora de serviços” contribuem para criar uma cortina de fumaça. Esses discursos silenciam as questões cruciais das relações de poder e as injustiças inerentes ao sistema econômico, incluindo as causas subjacentes da destruição das florestas e da violação dos direitos das comunidades florestais e tradicionais. Pessoas, culturas, tradições, interconexões, entre muitos outros aspectos presentes em florestas e territórios, não são sequer considerados coexistentes e inseparáveis das florestas.

O conceito de “natureza como prestadora de serviços” é central à “Economia Verde”. Para que essa lógica funcione, os “serviços” devem ser precisamente definidos e quantificados, precificados, colocados no mercado e comercializados (2). A “natureza” deve ser redefinida como um conjunto de “serviços ecossistêmicos” que podem ser medidos; habitats, territórios e localidades diferentes e singulares são divididos em unidades que sejam “equivalentes” em termos de número e quantidade de “serviços ecossistêmicos”. Ela se baseia na conversão de funções, ciclos e capacidades da natureza que são úteis aos seres humanos em “serviços”, incluindo regulação da água, armazenamento de carbono, habitat para espécies diversas, os quais, por sua vez fazem, por exemplo, a polinização de cultivos. Isso tem muitos paralelos com o processo pelo qual o trabalho humano foi transformado em trabalho assalariado. Alguns aspectos da natureza que não eram usados como parte da circulação de capital são atraídos aos mercados de capitais e à lógica desses mercados. Embora o processo de extração de ativos comercializáveis ​​da “natureza” seja antigo, as tentativas atuais de transformar os “serviços ecossistêmicos” em um ativo têm elementos novos. Esses elementos são novos no sentido de que os recém-definidos “serviços” “da natureza” estão sendo “embalados” em um número de unidades ​​ou “ativos” mensuráveis que possibilitam comparação, compensação e comércio. Esses “serviços” não precisam ser extraídos para ser comercializados, como madeira, minerais, etc. Por exemplo, o ato de guardar uma certa quantidade de “biodiversidade” em uma floresta em risco de ser destruída pode ser usado para “compensar” a destruição de uma quantidade “equivalente” de “biodiversidade” em uma área de floresta “comparável”, em outro lugar. Portanto, isso cria uma nova forma de extrair da “natureza”: a ausência de uma atividade que destruiria o “serviço” ou a (re)criação de um espaço “equivalente” ao que seria destruído.

Essa “nova economia com a natureza” é um processo que está avançando com persistência e é implementado por muitos atores, como meio para atingir fins diferentes e até contraditórios. Entre esses atores, estão os que realmente acreditam que através da quantificação e precificação, a “natureza” possa ser salva da destruição, como alguns acadêmicos, por exemplo. Outros, como bancos e corretores, entraram no barco para obter ganhos financeiros com as transações dos recém-criados “ativos”. A indústria de consultoria está lucrando com essa “nova economia com a natureza”, que requer muitos documentos técnicos, certificações e serviços de auditoria. Indústrias extrativas, empresas do agronegócio e dos setores de infraestrutura também são atores poderosos que se beneficiam diretamente dessa agenda: oferecendo uma saída para lidar com a destruição que criam enquanto recebem uma imagem “verde” para continuar fazendo o que sempre fizeram, e assim por diante. Ao passo que alguns desses fins são anunciados e, portanto, passam a ser de conhecimento público através de propagandas agradáveis, outros são escondidos cuidadosamente. No entanto, é importante reconhecer as diversas agendas dos muitos atores presentes na redefinição da natureza, já que considerar apenas algumas dessas motivações pode facilmente nos impedir de entender por que essa ideia adquiriu tanto destaque.

ONGs de conservação, ecologistas, economistas ecológicos, agências de cooperação para o desenvolvimento e bancos, o Banco Mundial e agências da ONU têm dado uma contribuição crucial nas metodologias técnicas e na produção da imagem “desejada” da natureza. Mecanismos no âmbito da “economia verde”, como o REDD ou as compensações de biodiversidade, são implementados de cima para baixo e garantem que o poder de definir a “natureza”, “valorizá-la” e “protegê-la” permaneça nas mesmas mãos empresariais e estatais que permitiram sua degradação e dela se beneficiaram.

Consequentemente, um ponto crucial também para esses atores (Banco Mundial, agências da ONU, ONGs de conservação, etc.) é que os governos revisem sua legislação e sua regulamentação ambiental e criem uma base jurídica para os mecanismos de compensação propostos no âmbito da “Economia Verde”. É evidente que, em geral, as leis com potencial para proteger florestas e territórios de povos têm se mostrado fáceis de descumprir ou ignorar quando estão em jogo interesses poderosos. No entanto, permitir que as atividades destrutivas se expandam legalmente, isto é, sem violar qualquer lei, agrava ainda mais as ameaças às florestas e às pessoas cujo modo de vida elas sustentam e cujos meios de subsistência elas garantem.

Limites ilusórios: uma porta aberta para a destruição da floresta

Imunidade, de acordo com o dicionário Oxford, significa “proteção ou isenção diante de alguma coisa, principalmente uma obrigação ou punição” (3). As mudanças em acordos ambientais, legislação e regulamentações que introduzem mecanismos de compensação, como o REDD ou as compensações de biodiversidade – permitem que os governos limitem a destruição da natureza ou a poluição, ao mesmo tempo em que possibilitam que as empresas ignorem legalmente esses limites, por exemplo, quando a compensação é apresentada como forma de “alcançar” esses limites. Em outras palavras, empresas, instituições financeiras e outros atores por trás da destruição de florestas, biodiversidade e territórios dos povos da floresta têm uma espécie de imunidade: uma isenção com relação aos atos criminosos pelos quais são responsáveis quando suas operações destroem florestas e territórios. Nesse contexto, governos que estão revisando a legislação em todo o mundo estão aceitando a destruição de “serviços ecossistêmicos” em áreas anteriormente protegidas, consideradas como “habitats críticos” ou nos quais a destruição teria enfrentado oposição e críticas fortes – contanto que a perda de um “serviço ecossistêmico” específico seja compensada em outro lugar. Estão em andamento várias iniciativas internacionais, nacionais e subnacionais que destacam as diversas abordagens que tentam (re)criar a natureza como uma “prestadora de serviços” (Ver artigo deste boletim “A regulamentação ambiental na Economia Verde”).

Além das mudanças jurídicas, os critérios de investimento dos bancos multilaterais, como os bancos regionais de desenvolvimento ou o Banco Mundial, também visam influenciar a legislação ambiental. A Corporação Financeira Internacional (IFC, na sigla em inglês), braço privado do Banco Mundial, alterou seu Padrão de Desempenho Número 6 em 2012. Qualquer empresa que queira um empréstimo da IFC e cujas operações destruirão o que a IFC considera “habitat crítico” tem que apresentar um plano de compensação da biodiversidade, ou seja, um plano afirmando que a biodiversidade destruída será compensada em outro lugar. Com investimentos em mais de 100 países, esse “padrão” permite a continuação das indústrias extrativas ao mesmo tempo em que conecta a extração à (re)criação da natureza como prestadora de “serviços ecossistêmicos”. Essa tendência também ameaça facilitar que indústrias extrativas realizem operações em áreas protegidas.

Porque que essa transformação é tão crucial agora?

Cada vez mais, os limites impostos pela atual legislação ambiental têm se tornado um problema para as empresas continuarem fazendo seus negócios de sempre, seja para realizar suas atividades ou para manter sua imagem intacta. Enquanto, por um lado, empresas e indústrias exigem medidas para facilitar o acesso a áreas remanescentes que sejam de seu interesse, uma parte crescente da sociedade exige limites à continuação da destruição. Portanto, para políticos e investidores, as compensações são um instrumento que os ajuda a sair de um dilema: os cidadãos exigem cada vez mais limites à destruição e à poluição e exigem a restauração dos territórios já danificados. Ao mesmo tempo, as empresas exigem que esses limites não impeçam os seus negócios indevidamente e possam ser ignorados onde restringirem sua expansão. A legislação e a regulamentação que incluem compensações tornam isso possível: uma empresa pode ignorar o limite em um lugar enquanto finge respeitá-lo comprando um crédito de compensação. Portanto, as consequências lógicas são leis ambientais que preveem limites enquanto incluem o instrumento para ignorar legalmente esses limites, ao prometer “conservação”, “compensação” ou “restauração” em outros lugares.

O que é fundamental reconhecer é que a “nova economia com a natureza” é sinônimo de maior controle dos territórios por parte de empresas e do mercado, já que os certificados de “serviços ecossistêmicos” que estão sendo vendidos precisam ser “protegidos”. Projetos e planos de REDD mostram como muitas vezes eles inicialmente responsabilizam comunidades camponesas e florestais pela perda de florestas – e, portanto, pela perda do carbono armazenado nelas – enquanto as empresas e as políticas governamentais que são realmente responsáveis ​​pelo desmatamento em grande escala continuam intocadas. Consequentemente, muitas denúncias de expulsões, restrições ao uso das florestas tradicionais das comunidades, e até mesmo aumento da poluição e do desmatamento na busca de “proteger” o novo “ativo” são resultado de projetos que dizem reduzir a destruição florestal (4). Mais do que disso, cada projeto, além de ter um impacto no local da compensação, também permite a continuação de outra atividade destrutiva em um lugar diferente, causando impacto e concentração de terras em mais um território e uma localidade. Sendo assim, é igualmente importante monitorar e denunciar os efeitos concretos para a floresta e as comunidades tradicionais.

Outra consequência fundamental para comunidades ou grupos comunitários que resistem à “Economia Verde” é que essas mudanças jurídicas fazem com que as comunidades afetadas percam a possibilidade de levar “criminosos ambientais/territoriais” à Justiça: Quando a própria lei permite que uma empresa exceda os limites legais de poluição ou destruição, desde que garanta “proteção” ou “re(criação)” extra em outros lugares, esse excesso de poluição ou destruição não é mais ilegal. Resumindo, pode-se comprar o direito de ignorar um limite legal. O que, por sua vez, traduz-se em mais pressão impulso para agravar a concentração de terras, permitindo o controle empresarial. Porém, essa nova forma de concentração de território por meio de medidas de compensação pode ser mais difícil de entender, porque não exige propriedade nem direitos de posse sobre a terra em si, nem sobre as árvores ou a biodiversidade. Trata-se de proteger os “serviços ecossistêmicos” que são convertidos em “unidades-ativos”. E se o que cria o ativo é (a ausência de) uma atividade que, de outra forma, teria prejudicado os “serviços”, tem que haver controle e vigilância regulares para garantir que essa atividade permaneça ausente – os “serviços” da natureza precisam permanecer intactos por um longo período ou a compensação perde a validade! E esses novos “ativos” que estão sendo “protegidos” estão localizados em territórios de comunidades camponesas e florestais, e não em terras ocupadas por empresas. Como resultado, as comunidades camponesas são responsáveis ​​pelo desmatamento. Tecnologias recentes de vigilância, como os drones, são usadas ​​para fiscalizar o novo “ativo” ao monitorar o uso local da terra, o que também leva a um aumento da criminalização e de abusos às comunidades locais.

Consequentemente, é indispensável estar vigilante em relação a esse processo e aprofundar a reflexão sobre por que, apesar de não haver qualquer mercado global de “serviços ecossistêmicos” à vista, o impulso para a criação de uma “nova economia com natureza” se mantém ou até cresce. Talvez a criação e a comercialização de novos ativos com base na “natureza” não seja a principal motivação, e sim conseguir colocar mais territórios sob o controle do capital em vez do das comunidades. Ir em busca de mais mudanças nas leis, de forma que seja mais fácil ignorar os limites à destruição ambiental ou à poluição sem qualquer consequência para as empresas ou investidores, parece ser uma prioridade da “economia verde”.

Joanna Cabello, joanna@wrm.org.uy
Membro do Secretariado Internacional, Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais

(1) Environmental Finance (2011): EcoSecurities co-founder launches Brazilian environmental exchange. 20 de dezembro de 2011.http://www.bvrio.org/site/images/clipping/Environmental_Finance-BVRio.pdf
(2) Em 2012, o WRM tratou de dois assuntos relacionados nas edições de fevereiro e agosto de seu boletim: 'Environmental Services' e 'The Financialisation of Nature'.
(3) http://www.oxforddictionaries.com/definition/english/immunity
(4) http://wrm.org.uy/pt/livros-e-relatorios/redd-uma-colecao-de-conflitos-contradicoes-e-mentiras/