As compensações e o comércio de carbono: Uma lógica que viola direitos indígenas e humanos

Para a maioria das pessoas no Norte Global, pouca atenção foi dada aos detalhes do acordo assinado recentemente, durante as negociações climáticas da ONU em Paris, em dezembro passado, que ficaram sem ser mencionados no noticiário nacional nem tiveram destaque nas redes sociais. Grande parte dos que vêm prestando atenção e tentando apontar as incongruências dos detalhes no Acordo de Paris e a longa história dessas negociações, começando com o Protocolo de Quioto, são das comunidades indígenas e de linha de frente – aquelas cercadas por extração de petróleo e gás, transporte e fabricação de produtos químicos mortíferos e derivados de petróleo, e agricultura industrial monocultora.

“Diante da crise climática, os Povos Indígenas estão na linha de frente dos impactos da mudança climática e das batalhas para manter os combustíveis fósseis no solo. Tal como está, o Acordo de Paris prejudica a soberania dos Povos Indígenas em nível global e promove falsas soluções para a crise climática”.

Rede Ambiental Indígena (1)

Na realidade, o conteúdo do acordo de Paris é baseado em um modelo puramente capitalista que elimina direitos indígenas e humanos. Essa omissão flagrante parece absolver preventivamente eventuais violações que possam ocorrer quando empresas e governos designam terras indígenas e tradicionais para ser sumidouros e compensações de carbono – um ilusionismo em que as emissões, em sua fonte no Norte global, são “compensadas” no Sul por coisas como a mercantilização das florestas e mais extração.

Inundações, secas e doenças generalizadas – agrícolas e transmitidas por animais – estão se tornando mais graves, limitando recursos de subsistência e ameaçando a segurança alimentar. No Norte Global, povoados inteiros ao longo das regiões costeiras estão perdendo massa de terra para o aumento do nível do mar – terras que eles habitam há incontáveis ​​gerações e que têm grande importância cultural e espiritual, pondo em dúvida sua sobrevivência futura como raça única.

“Desde 1932, o sul da Louisiana [Estados Unidos] perdeu mais de 3.000 quilômetros quadrados. Dizem que um acre de nossas costas é perdido a cada hora. Estamos passando por furacões e tempestades tropicais mais violentos e frequentes, e maiores elevações da água. O furacão Katrina não foi o primeiro. Tivemos várias tempestades desde então, e sabemos que haverá mais ... O nível do mar está subindo e os mais de 17.000 km de canais de petróleo e gás perfurados pela indústria para extrair recursos naturais têm deixado nossas zonas úmidas em um estado de perda irreparável. As águas doces já não inundam regularmente o nosso território, e a água salgada chega a nossas costas, matando a biodiversidade e forçando comunidades costeiras a migrar para áreas mais elevadas. Eles dizem que as comunidades terão que ser sacrificadas, e aquelas que estão nas extremidades da estrada onde os houmas costumavam encontrar refúgio estão agora se transformando em águas abertas”.

Monique M. Verdin, Paris 2015, da nação indígena houma, Louisiana (2)

Outra omissão flagrante no acordo de Paris são orientações para reduzir a extração de combustíveis fósseis. Em vez disso, esquemas de “economia verde”, como os programas de REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação florestal) da ONU e do Banco Mundial, fornecerão os mecanismos financeiros para as nações industrializadas justificarem a expansão dos regimes de combustíveis fósseis.

Comunidades indígenas e de linha de frente, onde se concentram a indústria e a extração de combustíveis fósseis, estão ameaçadas pela poluição que continua a fluir ao próprio ar que elas respiram e à água que bebem. As polêmicas areias betuminosas do Canadá, um enorme projeto de extração de petróleo no norte de Alberta, a perfuração na plataforma continental exterior do Alasca, e o fraturamento hidráulico em Dakota do Norte são apenas três exemplos que irão impactar desproporcionalmente os Povos Indígenas do Norte.

“Nós, o povo dene do Norte e no Ártico, já sentimos uma mudança de dois graus e impactos reais da mudança climática. Também estamos a jusante do maior projeto industrial do planeta, o Alberta Tar Sands, que está agravando os impactos das mudanças climáticas por meio da contaminação e da degradação das terras das quais dependemos. Precisamos de mais do que compromissos escritos ou verbais; precisamos de ação real e imediata sobre o clima, e isso significa que não podemos expandir as areias betuminosas e temos que manter os combustíveis fósseis no chão”.

Daniel T’Seelie, membro da comunidade dene (3).

Além disso, com essa omissão, o acordo de Paris dará continuidade à privatização e à venda de terras dos povos indígenas do Sul Global com o propósito expresso de esconder ou mascarar a poluição a partir da fonte. Para as florestas tropicais, o REDD+ significa que as economias mais poderosas do mundo em breve começarão a gerar incentivos importantes em mercados financeiros mundiais já inchados e instáveis, ​​para “investir” em terras florestadas.

A Lei de Soluções para o Aquecimento Global AB32, do estado norte-americano da Califórnia (4), e o REDD+ são mecanismos que designam grandes áreas de florestas para sumidouros ou compensações de carbono, com pouco ou nenhum Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI), conforme define a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Assim, comunidades inteiras no Sul e no Norte globais estão sujeitas a perder seus direitos de posse da terra e, em muitos casos, são despejadas de suas casas por ações militares ou policiais. (5)

Os povos indígenas têm sobrevivido durante milênios por seguir as Leis Naturais, que são verdades ou princípios abrangentes e imutáveis,​​ inerentes ao mundo natural. Esses princípios determinam como os recursos são usados e protegidos de forma a manter as qualidades regenerativas da biodiversidade e garantir que todos os elementos da vida neste mundo sejam capazes de coexistir e prosperar. Para os povos das florestas, entende-se que essa biodiversidade deve ser respeitada e cuidada, pois as florestas também são os pulmões da Mãe Terra.

"Os povos Indígenas são pessoas da terra e das águas, e estamos enfrentando muitos desafios, como mudanças extremas no clima, eventos climáticos extremos, desenvolvimento extremo de energia e o impulso continuado à globalização econômica e à continuação das formas ocidentais de desenvolvimento. O desenvolvimento de combustíveis fósseis dentro de territórios, terras, águas e mares dos Povos Indígenas está aumentando. Tudo como sempre foi. As indústrias petrolíferas e extrativas, com a ajuda dos governos, estão expandindo a exploração para encontrar mais combustíveis fósseis e reforçar sua dependência energética e seus elevados níveis de consumo."

Casey Camp-Horinek, Ponca, Oklahoma, EUA (6)

O financiamento, se houver, deve vir na forma de penalidades a ser pagas na fonte, e não de um mercado onde alguns escolhidos lucram. Os povos indígenas e as comunidades tradicionais de linha de frente devem estar livres de estradas, plantações monocultoras, extração de minerais e combustíveis fósseis, e outros megaprojetos.

“A transformação na forma de proteger as terras e territórios em que vivemos, brincamos e amamos só será influente se reconhecermos de onde deve vir a mudança, para acabar com projetos de profanação da terra e com a violência ambiental. Ela virá dos guardiões primeiros da terra, encontrando soluções comunitárias para acabar com a ganância, a corrupção e o pensamento colonial. Virá de práticas baseadas na terra – a única maneira em que podemos ter uma relação com a terra. Virá de ouvir as palavras ditas pelos velhos, e nunca mais negligenciar nossos verdadeiros papéis, nunca mais romper a santidade e as orações de gerações anteriores. Precisamos ser fiéis às orações daqueles que vieram antes de nós e, mais uma vez, não procurar soluções indígenas em reuniões coloniais”.

Andrea Landry, Pays Plat First Nation, Canadá (7)

BJ McManama, bjmcmanama@gmail.com 
Rede Ambiental Indígena [Indigenous Environmental Network], http://www.ienearth.org/  

(1) A Indigenous Environmental Network é uma aliança de povos indígenas de base, cuja missão é proteger a santidade da Mãe Terra, http://www.ienearth.org/

(2) “5000 miles from Grand Bois. Red Road to Paris”, Monique Michelle Verdin,http://indigenousrising.org/5000-miles-from-grand-bois-red-road-to-paris/
 
(4) California's AB32 Global Warming Solutions Act:http://www.arb.ca.gov/cc/ab32/ab32.htm
 
(5) “Newest Scam on Fringe of Climate Change Involves Land-Grabs in Peruvian Rainforest” http://indiancountrytodaymedianetwork.com/2012/03/08/newest-scam-fringe
-climate-change-involves-land-grabs-peruvian-rainforest-101867
 
(6) Apresentação de Indigenous Environmental Network and Indigenous Peoples of Mother Earth and our Grandmothers – and Future Generations,http://therightsofnature.org/casey-camp-horinek-opening-expert/
 
(7) “COP21 Will Not Save our Lands and Territories”, Andrea Landry, http://indigenousrising.org/cop21-will-not-save-our-lands-and-territories/