Brasil: barragem de Belo Monte transforma o rio Xingu em um "rio de sangue"

Imagem
WRM default image

Um complexo de duas represas e o desvio do rio Xingu no trajeto que percorre o Estado do Pará; um custo de mais de 16 bilhões de dólares; 516 km2 de florestas amazônicas inundadas; 1522 km2 de terras florestais afetadas; entre 100 e 140 km2 dessecados; mudança na ecologia fluvial, introdução de espécies forâneas de peixes e extinção de espécies; perda de biodiversidade, que é fonte de alimentos e renda para milhões de pessoas na Amazônia; 30 terras indígenas habitadas por mais de 13.000 pessoas de 24 povos indígenas que são direta ou indiretamente afetados; ente 20.000 e 40.000 pessoas deslocadas; 80 mil pessoas desempregadas; outras possíveis represas na mesma bacia, rio acima. Esse é o contexto da usina Belo Monte no rio Xingu, uma obra projetada na década de 70, em época de ditadura militar.

A construção do complexo hidrelétrico ficaria por conta do Consórcio Norte Energia, sendo seu principal acionista a sociedade anônima de economia mista e concessionária de serviço público de energia elétrica, a Eletronorte.

25% da eletricidade do Brasil é consumida por nove empresas mineiras e energéticas- Alcoa, ArcelorMittal, Camargo Corrêa Energiam CSN, Gerdau, Samarco, Vale do Rio Doce e Votorantim- e são algumas dessas as que estão interessadas na construção da usina de Belo Monte- que seria a terceira maior represa do mundo- para expandir suas atividades extrativas.
Com a hidrelétrica, entre 20 e 30% dos 100.000 habitantes de Altamira serão deslocados definitivamente, conforme o Estudo de Impacto Ambiental (EIA).

Desde que foi anunciado o projeto, a resistência dos movimentos sociais e das lideranças indígenas da região vem crescendo. Um marco na luta foi a reunião realizada em Altamira em fevereiro de 1989: o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, que se manifestou contra as decisões tomadas na Amazônia sem a participação dos índios e contra a construção do Complexo Hidrelétrico do Xingu. O encontro contou com a presença de umas 3.000 pessoas, entre elas 650 índios de diversas partes do país e do exterior, representantes de movimentos ambientalistas e sociais e da mídia nacional e estrangeira.

A resistência respondeu: apresentaram ações civis públicas para suspender os EIAs, elaboraram documentos, organizaram debates, encaminharam cartas para a presidência pedindo a suspensão das obras.

Mas nos últimos anos, o governo do ex-presidente Lula incluiu a obra de Belo Monte em seu Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), como uma das prioridades. Isso motivou o Encontro Xingu Vivo para Sempre em 2008, que reuniu representantes de comunidades indígenas e ribeirinhas, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, pesquisadores e especialistas. Em 2009, o caso de Belo Monte foi apresentado em audiência pública da Comissão Inter- americana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA, em Washington, Estados Unidos.

Em dezembro de 2009, diversos representantes de povos indígenas (Arara, Guarani, Juruna, Kaiapó, Xavante, Xipaia, Xicrin e Ianomâmi) lançaram um manifesto que denunciava o descaso do governo federal. O texto referia à luta de 20 anos dos povos indígenas contra o projeto de Belo Monte, e concluía com a mensagem de o rio Xingu virar um “rio de sangue”.

Em fevereiro de 2010, o Ministério do Meio Ambiente através do órgão IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente) concedeu a licença ambiental prévia para a construção da usina, com 40 condicionantes- fato que intensificou o debate. O Movimento Xingu Vivo- que reúne mais de 100 organizações em forte oposição às hidrelétricas na bacia desse rio- e outras 40 organizações sociais encaminharam um pedido de medida cautelar junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. As ONGs afirmaram no documento que a licença parcial de Belo Monte não tem embasamento legal e que foi concedida sem serem cumpridos os requisitos estabelecidos pelo IBAMA.

Um ano depois, em fevereiro de 2011, o IBAMA concede uma licença parcial para a construção das obras, o desmatamento de 238,1 hectares de floresta e a abertura de clareiras e picadas nos rios Bacajá e Xingu.

Cabe salientar que a figura jurídica de ‘licença parcial de instalação’ não existe na legislação ambiental brasileira, como apontam um painel de especialistas que acompanha a discussão do projeto. E conforme comenta o procurador da república Felício Pontes Junior no extrato de seu artigo apresentado a seguir, essa é mais uma das múltiplas irregularidades e ilegalidades que acompanham a trajetória deste mega- projeto.

No dia 8 de fevereiro de 2011, mais de meio milhão de assinaturas contra o projeto foram entregues ao representante da atual presidenta da república. Contraditoriamente, o representante expressou sua vontade de "dialogar" com os representantes indígenas e outros líderes da resistência da região, mas ao mesmo tempo de executar a obra.

A seguir incluimos o extrato de um artigo do procurador da república Felicio Pontes Júnior, postado em seu blog http://belomontedeviolencias.blogspot.com/, no qual comenta a licença prévia de 2010 e a recente licença de instalação parcial:

A Licença Prévia (LP) de Belo Monte foi concedida pelo Ibama com 40 condicionantes ambientais e 26 condicionantes indígenas em fevereiro de 2010. A LP não permite o início da obra. Trata-se apenas de uma licença preliminar de planejamento. Por ela o órgão licenciador diz que estão aprovadas localização e concepção do empreendimento. Para que a obra propriamente dita possa ser iniciada é necessária a obtenção de uma outra licença – a Licença de Instalação (LI).

Por aí se nota que falar no início de obras de Belo Monte é desconhecer a sistemática do licenciamento ambiental no Brasil. Para que o consórcio Norte Energia, formado às pressas na véspera do leilão da usina, possa iniciar as obras, ele precisa cumprir as condicionantes. Muitas dessas condicionantes são, na verdade, pendências que não foram resolvidas na LP. A pressão do governo para que a LP fosse liberada foi tão grande que as pendências se transforam em condicionantes.

E agora não há mais como empurrar com a barriga.

Entre as 40 condicionantes ambientais cita-se, a título de exemplo, a de n° 09. Ela determina: (i) início da construção e reforma de equipamentos de educação/saúde em Altamira e Vitória do Xingu; (ii) início das obras de saneamento básico nesses municípios e; (iii) implantação saneamento básico em Belo Monte antes da construção dos alojamentos. O MPF teve acesso a documentos dessas prefeituras que mostram que nada foi feito até 2010.

Outra condicionante, desta feita a indígena de n° 5, exige, entre outras medidas (i) a demarcação física das Terras Indígenas Arara da Volta Grande e (ii) Cachoeira Seca; (iii) o levantamento fundiário e inicio da desintrusão (retirada de não-índios) da TI Apyterewa. Nada disso se faz do dia pra noite. O MPF mesmo tem tentado há décadas. E tudo é extremamente necessário.

Com efeito, o próprio Estudo de Impacto Ambiental feito pela Eletrobras e empreiteiras prevê que a migração de trabalhadores em busca de emprego na obra será de 100 mil. Considerando que a população atual de Altamira é de 94 mil, e que o máximo de postos de trabalho gerados pela obra será de cerca de 19 mil – e isso apenas no terceiro ano, pois nos demais anos esse número é menor – fácil concluir que, além da explosão demográfica, Altamira terá, no mínimo, 80 mil pessoas desempregadas.

A Norte Energia tentou uma manobra para driblar o cumprimento das condicionantes. Pediu uma licença de instalação parcial para o canteiro da obra. Isso não existe na legislação brasileira. O canteiro já é a obra. Ou alguém acha que com o canteiro apenas não haverá imigração?

Em outubro de 2010, a equipe técnica do IBAMA disse não a essa manobra exatamente pelo descumprimento das condicionantes.

E não se pode alegar que haverá compensação aos municípios afetados com a liberação de mais recursos públicos. Seriam esses recursos suficientes para a construção e manutenção de hospitais, escolas e órgãos do sistema de justiça e segurança numa região que dobrará sua população em questão de ano? Esses recursos dobram o orçamento anual de Altamira também? É claro que não.

O que está se desenhando não é diferente do déja vu. Ficamos com o caos social e os danos ambientais. As multinacionais de eletrointensivos ficam com a energia.