Indonésia: projetos de lei ameaçam restabelecer o controle de empresas sobre a agrodiversidade

Em 2012, o Tribunal Constitucional da República da Indonésia anulou os principais artigos de uma Lei de 1992 sobre Sistemas de Cultivo de Plantas. Esses artigos proíbem os agricultores de continuar a antiga prática de seleção e melhoramento de plantas – exatamente a prática que gerou a imensa agrobiodiversidade que existe hoje. (1) Agora, os projetos de lei sobre Conservação e Biodiversidade e sobre Dendê ameaçam restabelecer o tipo de controle empresarial sobre a diversidade de plantas agrícolas que os juízes do Tribunal Constitucional consideraram inconstitucional em sua decisão de 2012. Juntos, os dois projetos vão ainda mais longe: limitarão o acesso, o uso e o melhoramento, por parte de comunidades, de plantas protegidas por lei ou para as quais as empresas tenham registrado uma patente.

 

Entre 1980 e 2000, o Governo da Indonésia promoveu agressivamente o tipo de “modernização” da agricultura que é simbolizada pelo uso de fertilizantes químicos, sementes híbridas, pesticidas, tratores e outras máquinas pesadas. Como parte dessa “modernização”, o governo aprovou a Lei 12 de 1992, sobre Sistemas de Cultivo de Plantas. A lei foi aprovada sem consulta prévia às associações de camponeses ou às comunidades agrícolas, embora tenha afetado significativamente seu modo de vida. Essa lei proíbe os agricultores de melhorar plantas usadas como cultivos agrícolas ou plantas medicinais que as empresas tenham patenteado. No entanto, a seleção de sementes e o melhoramento de plantas por parte de agricultores fazem parte dos sistemas agrícolas camponeses e são uma pedra angular da civilização.

Até o final de 2011, muitos agricultores que continuaram a prática de melhoramento de plantas alimentares foram condenados depois de terem sido processados ​​por empresas que alegam possuir direitos de patente sobre elas. A Decisão 99 do Tribunal Constitucional, de 2012, anulou os artigos da lei de 1992 que dava às empresas o monopólio sobre plantas e sementes usadas na agricultura. Os camponeses voltaram a ter permissão, sem risco de perseguição, para selecionar e melhorar as plantas que usam, como sempre fizeram.

Em 2016, foram apresentados dois projetos de lei na Indonésia: um sobre Conservação e Biodiversidade e outro sobre o Dendê. O Projeto de Lei sobre Conservação e Biodiversidade reintroduz um monopólio empresarial sobre o melhoramento de plantas, semelhante aos direitos empresariais consagrados nos Artigos da Lei 12 de 1992, que foram anulados pelo Tribunal Constitucional em 2012. Além disso, o projeto de lei sobre Conservação e Biodiversidade proíbe o acesso, o uso ou o melhoramento de variedades vegetais de espécies listadas em um Anexo de Conservação ou que, por exemplo, uma empresa farmacêutica ou de dendê tenham patenteado. Sob a adat (lei consuetudinária), as comunidades têm permissão para dar usos tradicionais a certas espécies de plantas protegidas, por exemplo, como medicamentos tradicionais, se as tiverem registrado como “recursos” genéticos para uso tradicional junto às autoridades.

As restrições contidas no projeto de lei são como dois lados da mesma moeda: de qualquer ponto de vista, a lei trará desvantagens às comunidades em comparação com a adat. Se as comunidades usarem as plantas sem uma licença do governo, enfrentarão consequências penais; se solicitarem a licença, há um grande risco de que seus direitos intelectuais tradicionais sobre propriedades medicinais das plantas sejam roubados por empresas farmacêuticas antes que se reconheça que o conhecimento das comunidades atende aos requisitos da lei. As empresas estão em busca dessas informações sobre o uso medicinal tradicional das plantas, as quais as comunidades têm que incluir em sua solicitação da licença de uso. As comunidades podem inicialmente obter uma licença de uso, mas as empresas registrarão uma patente, e o uso e o melhoramento tradicionais da planta serão proibidos pela lei, porque outra entidade (empresarial) já terá registrado uma patente dessa planta. Em qualquer das hipóteses, a projeto de lei de Conservação e Biodiversidade representa uma enorme ameaça ao uso comunitário e ao melhoramento de plantas que as comunidades tradicionalmente usam, seja para alimentos ou para usos medicinais.

Historicamente, empresas farmacêuticas se apropriaram do conhecimento dos povos indonésios sobre plantas medicinais tradicionais. Depois disso, as informações são comercializadas e patenteadas pelas indústrias sem o consentimento dos tradicionais usuários e detentores do conhecimento. Medicamentos tradicionais à base de plantas, para várias doenças, também têm sido usados na pesquisa acadêmica em profundidade. Essa pesquisa e a comercialização resultante dela também constituem roubo de propriedade intelectual, porque a seleção de plantas específicas para medicamentos específicos, para tratar doenças específicas, a composição e as práticas usadas para preparar e aplicar esses medicamentos tradicionais são resultado de pesquisas contínuas realizadas por membros da comunidade e transmitidas de geração a geração. Esse conhecimento, no entanto, não recebe crédito nem é reconhecido como pesquisa em profundidade porque não está de acordo com a abordagem acadêmica contemporânea.

O objetivo do projeto de lei sobre o dendê é definir a planta como uma espécie de ocorrência natural na Indonésia. Isso, contudo, ocultaria o fato de que o dendê – uma espécie nativa da África Ocidental e Central, onde as variedades tradicionais são cultivadas e usadas para uma grande variedade de produtos e aplicações – foi introduzida na Indonésia pela indústria do dendê. (2) Uma vez considerada espécie natural do país, as empresas de plantações de dendezeiros podem patentear a planta e, combinando com o artigo 15 do projeto de Lei de Conservação e Biodiversidade, restringir o uso comunitário da palma somente ao fruto, o qual a empresa tem interesse em comprar. Mas o uso comunitário de qualquer outra parte da planta poderia ser proibido, pois o dendê teria sido declarado espécie natural na Indonésia, à qual o projeto de lei sobre de Conservação e Biodiversidade também se aplica. Portanto, declarar o dendê uma espécie que ocorre naturalmente na Indonésia equivaleria a uma segunda apropriação de terra para os agricultores que o cultivam em suas propriedades e para as comunidades que vivem em torno das plantações das empresas de dendê, porque estas poderiam limitar o uso comunitário da planta apenas ao fruto, ou seja, à parte da planta em que estão interessadas. Uma vez que essas leis sejam aprovadas, também será mais difícil para os agricultores recuperarem suas terras.

Se os dois projetos de lei forem considerados em conjunto, fica claro que a intenção do governo não é resolver algum problema urgente que afete as comunidades locais na Indonésia. Pelo contrário, os projetos servem para aumentar o controle das empresas sobre a agrobiodiversidade e a terra que lhes interessa. Essas mudanças na lei devem ser vistas como parte de uma estratégia das empresas – bem planejada e organizada – para expandir seu controle, não apenas sobre as terras comunitárias, mas também sobre o uso comunitário da “biodiversidade”. Propostas de legislação, como os dois projetos de lei sobre Conservação e Biodiversidade e sobre o Dendê na Indonésia, devem ser vistas como parte da legitimação do confisco das fontes de vida das pessoas. A aprovação dessas leis também proporcionaria proteção jurídica, se não impunidade, ao crime empresarial de roubar o conhecimento tradicional sobre o uso de plantas que as comunidades têm aprimorado e passado de geração a geração: o Tribunal Constitucional da Indonésia já decidiu que esse monopólio das empresas sobre o melhoramento e o uso de plantas é inconstitucional. No entanto, o governo está promovendo a agenda da empresas ao propor leis que visam a restabelecer esse mesmo monopólio sobre agrobiodiversidade, sementes e diversidade genética de variedades de plantas que o Tribunal Constitucional já declarou inconstitucional.

A sabedoria comunitária ou tradicional expressa na adat e a imensa diversidade de variedades de plantas usadas por comunidades tradicionais e camponeses hoje em dia é uma indicação do longo processo de adaptação entre natureza, diversidade de plantas e comunidades. Essa agrodiversidade, bem como as comunidades que a produziram, dependem do uso e do acesso livres à terra que abriga as plantas usadas pelas comunidades. É exatamente esse uso e esse acesso à terra e às plantas que as leis sobre Conservação e Biodiversidade e sobre Dendê estão ameaçando.

O crime empresarial não pode ser entendido apenas como o ato criminoso de confiscar, roubar ou tirar bens públicos. Mais do que isso, o controle empresarial – por meio da proteção de direitos de propriedade intelectual e de leis que proporcionem às empresas um monopólio sobre plantas e sementes – confiscou a terra das comunidades, bem como seu conhecimento sobre o uso tradicional dessas terras. Esses crimes forçam as comunidades a passar por transformações fundamentais: de proprietárias a consumidoras de plantas e sementes transformadas em commodities cobertas por patentes empresariais. Os projetos de lei sobre Conservação e Biodiversidade e sobre o Dendê fazem parte desse processo de legalização do roubo, por parte de empresas, do conhecimento comunitário e do uso tradicional da “biodiversidade”.

 

Zenzi Suhadi

WALHI, Diretor do Departamento de Pesquisa, Defesa e Direito Ambiental

(1) A Decisão nº 99/PP-X/2012 do Tribunal Constitucional anulou os Artigos 5º, 6º, 9º, 12º e 60º da Lei nº 12 de 1992 sobre Sistemas de Cultivo de Plantas.

(2) Sobre a diversidade de usos das variedades tradicionais do dendezeiro na África Ocidental e Central, ver, por exemplo, “Africa: another side of palm oil. A long history and vast biodiversity”, da GRAIN – https://www.grain.org/article/entries/5035-a-long-history-and-vast-biodiversity – e o filme “'West African women defend traditional palm oil' http://www.farmlandgrab.org/post/view/26141-video-west-african-women-defend-traditional-palm-oil