Novas encruzilhadas, mesmos atores: a economia verde dos poderosos, a resistência com vozes de mulheres

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O negócio se veste de verde

A humanidade transita por velhas trilhas com roupagens novas. O atual modelo civilizatório, que se apresenta como hegemônico, mas que na realidade reflete os interesses de uma minoria, está levando o planeta a seus limites, o que se evidencia pelas múltiplas crises.

Na Cimeira da Terra, celebrada no Rio de Janeiro, Brasil, em 1992, os governos do mundo reconheceram que o planeta atravessava uma severa crise ambiental. A partir do renomado relatório Brundtland, surgiu o conceito de “Desenvolvimento Sustentável”, um tipo de desenvolvimento pelo qual seria possível manter e aumentar o crescimento sem colocar em risco as futuras gerações. Desde então, foram adotadas uma série de Convenções sobre Biodiversidade, Desertificação e Mudanças Climáticas que supostamente estavam voltadas para conter a crise ambiental.

Parecia que o futuro da humanidade teria uma chance. Contudo, não foi abordada a raiz do problema: o sistema capitalista e sua lógica de crescimento infinito. Os interesses envolvidos foram mais fortes e, em vez da mudança necessária, a resposta foi abraçar e impulsionar animosamente saídas neoliberais que mercantilizam a natureza.

Agora, 20 anos depois, rumo a outra Cimeira no Rio, a crise ambiental tem se aprofundado e o “Desenvolvimento Sustentável” leva o rótulo de “Economia Verde”. Incorporada em 2008 pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a “Economia Verde” propõe a mudança para as energias renováveis mas o sistema produtivo, comercial, financeiro e de consumo continua o mesmo

Sem dúvidas, a proposta beneficia as principais economias capitalistas que, submersas em graves crises financeiras e econômicas, encontram na “economia verde” uma saída para suas empresas acumularem capital e obterem mais lucros a partir de atividades produtivas e também especulativas. Trata-se de redirecionar os investimentos para a natureza, que se transforma em ‘capital natural', além de investir em novas tecnologias supostamente limpas, como o uso da biomassa e no ‘mercado de emissões de carbono'.

Nesse contexto, o conceito de pagamento por serviços ambientais está no olho da tormenta. “A Economia dos Ecossistemas e a Biodiversidade” (TEEB, sigla em inglês), uma proposta do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), foi o instrumento para atribuir valor econômico à biodiversidade, um obstáculo importante para os incentivadores do comércio da natureza.

Nessa perspectiva, os “serviços ambientais” e sua “comercialização” tornaram-se um elemento central da “Economia Verde”. O resultado será, conforme Silvia Ribeiro do grupo ETC que monitora e pesquisa esse projeto, uma “maior mercantilização e privatização da natureza e dos ecossistemas, integrando suas funções, definidas como ‘serviços', aos mercados financeiros”. (vide Boletim 175 do WRM).

Os mercados de carbono entram nessa lógica perversa. Ainda que sua origem seja anterior à difusão atual do conceito de “Economia Verde”, eles são uma amostra de como se pretende mercantilizar e, portanto, privatizar o ar, a água, as florestas e a diversidade.

Comércio de ilusões

O Protocolo de Kyoto aceitou os mercados de carbono regulamentados dentro da figura do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Assim, as empresas que pouparem emissões poderão vendê-las, transformá-las em bônus a outras empresas que acharem mais conveniente amparar-se nesses papéis e continuar poluindo.

Os mercados de carbono fazem parte do processo denominado “financeirização” da natureza, no qual as finanças predominam sobre o setor produtivo, animadas por sua progressiva desregulação. Nesse contexto, os mercados de capitais, com a emissão de bônus ou ações, passaram a ser as principais fontes de investimento.

Mais de US$ 100 bilhões de dólares anuais são movimentados atualmente nas especulações do mercado de carbono, com numerosos fundos de investimento e destacados atores financeiros que investem agora no mercado das licenças de carbono: Deutsche Bank, Morgan Stanley, Barclays Capital, Rabobank, BNP Pari¬bas Fortis, Sumitomo, Kommunalkredit, e Can-tor Fitzgerald (1).

Até 2010, grande parte do crescimento do volume do comércio de carbono ocorreu no mercado de carbono secundário, isto é, naquele em que a negociação é realizada entre operadores financeiros. O que começa no mercado primário como um suposto projeto de redução de emissões em um país do Sul, que seria vendido na forma de certificados a um comprador do Norte, acaba sendo uma atividade totalmente financeira, sem nenhum benefício adicional para o clima e para as comunidades que dependem das florestas, que supostamente, como anuncia a propaganda, seriam beneficiadas com o dinheiro que receberiam por não fazer uso delas.

Foi criado um complexo sistema financeiro baseado na falácia de estabelecer uma equivalência entre o carbono fóssil liberado do subsolo, onde ficou armazenado de forma permanente durante milhões de anos, e o carbono da biosfera armazenado temporariamente nos vegetais. O carbono fóssil liberado, extraído e queimado não pode ser armazenado outra vez de forma segura no subsolo porque os sistemas biológicos e geológicos não têm essa capacidade.

Na realidade, não há outra solução a não ser deixar no subsolo a maior parte do carvão mineral, o petróleo e o gás ainda inexplorados. Mas há muitos e poderosos interesses que resistem e então a criatividade é usada para inventar novas formas de fazer mais negócios com a natureza e evitar a mudança necessária.

O mercado, que se expande até âmbitos impensáveis, como no caso da poluição, não resolve o problema da mudança climática, pelo contrário, o agrava, já que o afasta da necessidade de introduzir uma mudança estrutural para um sistema que não dependa do consumo de combustíveis fósseis. Agrava também a desigualdade e permite que os países que devem seu crescimento não apenas à exploração de outros povos como também à poluição que liberam na atmosfera, descumpram sua responsabilidade histórica.

As florestas na bolsa de valores

Agora as florestas tropicais estão no auge e, infelizmente, não por uma preocupação genuína de conservá-las, mas como base de transações inaceitávelmente complexas. A proposta de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD) é um mecanismo introduzido no Protocolo de Kyoto em 2010 no contexto das negociações sobre a mudança climática realizadas na Cúpula de Cancun. Atribuindo um valor monetário ao carbono armazenado nas florestas sob o argumento de que é um incentivo para que os países do Sul encontrem maior rentabilidade na conservação das florestas do que no seu corte, REDD propõe que as emissões supostamente “reduzidas”- por terem evitado o desflorestamento- sejam comercializadas nos mercados de carbono.

Além de as propostas REDD implicarem custosos e nada confiáveis sistemas de monitoramento do fluxo de carbono, têm levado a que a voraz busca de biomassa e créditos de carbono aponte para os povos das florestas, buscando seduzi-los ou, em caso contrário, subjugá-los com coerção.

Um artigo publicado pela Agência Latino-americana de Informação (ALAI), na revista América Latina em Movimento, faz referência aos “povos indígenas ou comunidades, numericamente pequenos em geral, como tendo pouca ou nenhuma experiência em lidar com o mundo da modernidade ocidental. Muitos, com uma tênue ou nula posse legal de suas terras e territórios, irão enfrentar crescentes pressões para negociar, direta ou indiretamente, com poderosos atores internacionais, os direitos sobre seus territórios e recursos...

Evidentemente, as comunidades terão menos condições de negociar com conhecimento adequado da complexidade do processo internacional e de desentranhar suas implicações. Não são poucos os casos de comunidades que aderiram a sedutoras promessas- verdadeiras ou falsas-, sem medir as consequências para seus meios de sustento; ou de dirigentes que cedem à tentação de recursos rápidos, às vezes através da corrupção. Também há comunidades com pouca força de negociação que foram marginalizadas de suas terras, ou aceitaram condições irrisórias. Os termos de negociação são, portanto, extremamente desiguais, e quando as comunidades resistem, com frequência seus integrantes correm o risco de serem expulsos, encurralados ou, inclusive, eliminados fisicamente. A história da conquista reitera-se sob novas modalidades”(2).

Em um país como a Indonésia, ao mesmo tempo em que as concessões de petróleo e mineração continuam e se ampliam, e as plantações de dendezeiros cobrem 11 milhões de hectares sem perspectiva de serem paralisadas, há mais de 40 projetos REDD e um altissonante discurso governamental sobre a importância de “salvar as florestas”. A organização WALHI/ Amigos da Terra Indonésia manifestou-se categoricamente contra os mercados de carbono e contra o REDD. Em uma entrevista realizada por REDD- Monitor a Teguh Surya, diretor de campanha da WALHI, ele afirmou que “se uma pessoa quiser salvar seus pulmões deve deixar de fumar. O governo diz que salvaremos as florestas de Kalimantan, que são ‘os pulmões do mundo', mas apenas 45% delas, porque continuarão destruindo os 55% restantes. Uma pessoa não pode cuidar de seus pulmões se continua fumando. É impossível.”(3)

No entanto, os créditos REDD ainda não foram aceitos pelo Regime de Comércio de Licenças de Emissão da União Europeia (EU ETS), que atualmente maneja 97% do mercado de carbono existente. Devem ser negociados, portanto, em um mercado voluntário, que não está regulado- até agora serve basicamente para “maquiar” a imagem das empresas- e é muito menor que o mercado oficial de Kyoto, que ainda está no estágio de preparação de REDD.

Apesar disso, os atores que têm um forte interesse em que REDD seja implementado continuam fazendo todo tipo de esforços e comprometendo volumosos recursos em projetos cuja concretização se apresenta incerta pela experiência de promessas descumpridas, pelos condicionamentos que acompanham os financiamentos e pelas atuais crises financeiras, como aponta um recente relatório de diversas organizações sociais (4) .

Dando visibilidade à dimensão de gênero

As florestas também não são meros receptáculos de carbono. Fornecem, principalmente, meios de vida, subsistência e renda a mais de 1,6 bilhões de pessoas no mundo, como registra o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Os setores camponeses e indígenas são os que mais dependem das florestas. Entre eles, a maior parte é constituída por mulheres cuja sobrevivência depende dos alimentos encontrados nesses locais.

Nesse contexto, começam a influir as relações de gênero, que explicitam os papeis sociais atribuídos a homens e mulheres. Na divisão de funções, foi atribuída às mulheres a tarefa de cuidar do lar e de tomar conta da saúde e da educação de suas famílias. Durante séculos, as mulheres rurais têm sido responsáveis pelos afazeres domésticos; de cuidar e alimentar suas famílias; de cultivar, intercambiar sementes e comercializar as hortas familiares, ocupando, em geral, um lugar socialmente invisível.

Conforme dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), citados em um artigo de Esther Vivas, integrante do Centro de Estudos sobre Movimentos Sociais (CEMS) da Universidade catalã Pompeu Fabra (5), em numerosos países africanos, as mulheres representam 70% da mão de obra no campo, são responsáveis pela providência de 90% da água de uso doméstico e por 60 a 80% da produção de alimentos consumidos e vendidos pela família. Elas tomam conta de 100% do processamento de alimentos, de 80% das atividades de armazenamento e transporte de alimentos e de 90% do trabalho destinado a preparar as terras antes do plantio.

Outros dados fornecidos pela agência Inter Press Service e recolhidos em um artigo da Associação para os Direitos da Mulher e o Desenvolvimento (AWID) (6) revelam que “as mulheres juntam lenha nas florestas e carregam água desde rios e lagos para consumo doméstico. Elas sustentam suas famílias e comunidades com os produtos da terra. Ainda assim, na maioria dos países africanos, seus direitos legais de possuir propriedades não estão garantidos. Apenas 1% das mulheres na Tanzânia tem títulos de terra legais. No Zimbábue, chega a 20% de mulheres com títulos de terra. Porém, apesar de ser um número relativamente alto, ‘raras vezes elas se beneficiam' de sua terra”.

O artigo explica como a expansão de monoculturas para a fabricação de agrocombustível, um dos motores da concentração de terras, tem feito com que, em Gana, “os meios de vida tradicionais de muitas mulheres que dependiam de suas culturas de cacau e dendezeiro sejam erodidos em decorrência das apropriações de terra. Viúvas etíopes, que já foram despojadas de seus direitos à propriedade da terra e têm que cultivar ‘terras marginais', ficaram agora mais despossuídas devido à apropriação de terras para o cultivo de biocombustíveis”.

Em muitos casos de mudanças no uso do solo, que têm provocado a destruição de florestas e outros ecossistemas para dar passagem a monoculturas, a incorporação das mulheres ao trabalho assalariado tem significado uma dupla carga de trabalho para elas, que continuam cuidando de suas famílias e, ao mesmo tempo, trabalhando para obter uma renda. Muitas vezes, os empregos são precários, com salários mais baixos que os dos homens pelas mesmas tarefas, o que, às vezes, faz com que trabalhem mais horas para aumentar sua renda.

No caso do uso das florestas, o conhecimento que as comunidades locais têm das árvores e dos produtos não madeireiros da floresta é complexo e tem suas raízes na tradição, mas também tanto esse conhecimento quanto o uso das florestas têm um viés de gênero que implica uma distribuição assimétrica do acesso ao poder e de sua distribuição entre homens e mulheres, como o reconhece o programa REDD das Nações Unidas em um recente relatório.

Cabe salientar a reflexão que faz o relatório de que o uso do termo “comunidade”, como unidades homogêneas, estáticas, harmoniosas e “sem gênero” nas quais as pessoas compartilham interesses e necessidades comuns, ocultam relações de poder e mascaram os interesses e necessidades baseados, por exemplo, em idade, classe, casta, grupo étnico e gênero. O relatório convida a questionar as diferenças de gênero, isto é, o que significa ser homem ou mulher em determinado contexto, e faz referências a estatísticas, tanto da agricultura quanto do uso das florestas, que revelam que as mulheres trabalham mais horas que os homens, sobretudo em atividades vinculadas à subsistência e ao cuidado da família. Isso se traduz em menos tempo livre para participar de outras atividades que possam contribuir para sua formação e informação.

Também há dimensões de gênero nos direitos à terra e no acesso a ela, mediadas por práticas consuetudinárias e construções jurídicas. Essa desigualdade é crucial, visto que a terra é um bem vital para a produção de alimentos.

Apesar de seu papel chave na subsistência, as mulheres podem vir a ser mais afetadas por situações de crise alimentar, como se deduz de dados da FAO que afirmam que, em 2008, quando houve o aumento dos preços dos alimentos em alguns países, os lares chefiados por mulheres ficaram mais vulneráveis do que aqueles chefiados por homens, porque elas destinavam uma maior proporção da renda familiar à aquisição de alimentos e tinham menores possibilidades de responder ao problema aumentando sua produção de alimentos.(8) Conforme pesquisas de Fraser, A., citadas por Esther Vivas no artigo antes mencionado, um número alto de mulheres não tem a garantia do acesso à terra como um direito. Em vários países, as leis proíbem esses direitos e, em outros, nos quais existem tradições e práticas impedem as mulheres de ter o direito de propriedade sobre a terra, e assim não controlam sua venda nem a transmissão a seus filhos. A organização da Índia Karnataka State Farmers Association, da Via Campesina, aponta no referido artigo que as mulheres camponesas praticamente não têm direitos e são consideradas “agregadas” dos homens. “As mulheres rurais são as mais intocáveis dos intocáveis dentro do sistema social de castas.”

O mesmo ocorre na África quanto ao acesso à terra. A mulher não tem direito de herança e, nos casos em que ficar viúva, perde a terra e outros bens. Contudo, as mulheres africanas lutam e se organizam para enfrentar o recente avanço das concentrações de terra e exigem que sejam garantidos seus direitos a possuir propriedades e recursos naturais. E é assim que o Quênia adotou recentemente uma política nacional que estabelece os direitos das mulheres a possuir terra. Já a Tanzânia tem uma lei que exige a participação das mulheres nos órgãos locais para administração da terra. Por outro lado, em 2009, a União Africana adotou o Quadro e Diretrizes sobre a Política de Terras na África, que obriga os Estados a garantir o acesso equitativo à terra e reconhece o papel da colonização em reforçar o patriarcado nas leis de propriedade da terra ao “outorgar direitos de título e herança aos homens da família” e permitir a discriminação das mulheres em questões de direito pessoal (matrimônio e herança), como revela o artigo da AWID antes mencionado.

O agronegócio, que tem encontrado uma nova via no contexto da economia verde, implicou a desarticulação de economias familiares, mercados locais e usos sustentáveis do solo. A produção mecanizada em grande escala que dá lugar às monoculturas, e a perda das florestas provocaram a perda de soberania de inúmeras comunidades locais. O vínculo das mulheres com a floresta, seu papel de abastecedoras, sua relevância na comunidade são violentamente alterados, mas não como produto de um processo consciente de busca pela mudança e sim como resultado de uma ruptura brusca e externa. As “soluções” mercantis de apropriação da terra, da água e do ar afetam duplamente as mulheres em situação de falta de direitos e maior vulnerabilidade.

As mulheres: oprimidas que não calam

Dentro dos formatos de “serviços ambientais” prontos para vender no mercado de carbono, as propostas REDD e sua versão ampliada REDD+ irromperam com força e, tentando camuflar a situação, buscam contemplar a situação das mulheres com a tentativa de incluir a dimensão de gênero em sua formulação, como é apresentado no programa REDD das Nações Unidas (7), no documento citado anteriormente. REDD se apresenta, então, como um fato consumado, do qual é necessário participar a fim de melhorá-lo. E se tiver representação de gênero, o aval será muito maior.

Os processos de privatização de bens outrora comuns para as comunidades- terra, água, floresta- conduzem, em muitos casos, a uma intensificação da migração, que atinge a mulher em sua responsabilidade histórica de tomar conta da família. Uma migração caracterizada como um processo de “urbanização desconectada da industrialização” (vide artigo de Esther Vivas) empurra as mulheres rurais para as cidades, que as engolem em suas áreas marginais, onde sobrevivem da economia informal. As mulheres são um componente essencial dessas correntes nacionais e internacionais migratórias que implicam o desmantelamento e abandono de famílias, terras, formas de produção e vida.

O pagamento pelo “serviço ambiental” que a floresta fornece, além de ser incerto e indubitavelmente insignificante, é um incentivo perverso em situações de comunidades já encurraladas pela destruição provocada pelo agronegócio que avança. De forma fraudulenta, essa comercialização da vida conspira contra o vínculo sagrado que tem unido ancestralmente, sobretudo os povos indígenas com a natureza, em uma cosmologia que historicamente os transformou em guardiões das florestas. Por trás de REDD, o que fica é a perda do acesso às florestas e a seu uso pelas comunidades e povos indígenas. E, pela função da mulher rural e indígena, isso irá afetá-la de forma especial, como já comentamos.

Como consequência, outras vozes vêm à tona: o direito a dizer “Não a REDD!” ocorreu justamente durante a COP 16, que incorporou o mecanismo REDD, quando numerosas mulheres, junto a organizações de várias partes do mundo, reafirmaram a importância de salvaguardar os direitos das mulheres e por isso mesmo se manifestaram contra as iniciativas REDD. Os argumentos dessa declaração, que contribuímos a divulgar em seu momento (vide http://www.wrm.org.uy/temas/mujeres/Posicion_mujeres_REDD.html ), continuam em vigor.

Por sua vez, no Dia Internacional da Mulher, a Marcha Mundial das Mulheres se manifestou em sua declaração contra “o novo saque e apropriação do capital sobre os recursos naturais” e rejeitou “a cultura do consumo que vai empobrecendo mais as comunidades, gera dependência e extermina as produções locais”. A MMM anunciou: “continuamos marchando, resistindo e construindo um mundo para nós, os outros, os povos, os seres vivos e a natureza. Essas ações continuam enfrentando os embates do paradigma mortal do capitalismo com suas falsas saídas para as crises e de uma ideologia fundamentalista conservadora”. E reiterou que “continuaremos nos fortalecendo desde nossos corpos e territórios em resistência e defesa deles, aprofundando nossos sonhos de transformações estruturais em nossas vidas e marchando até que todas sejamos livres! Apelamos à articulação de nossos movimentos e às alianças com os outros movimentos, pois só assim construiremos um mundo em liberdade” (9).

No Brasil, 1.150 mulheres do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) ocuparam no dia 1º de março uma plantação de eucaliptos da empresa Suzano Papel Celulose (10), no extremo sul da Bahia. A ocupação fez parte das jornadas organizadas pela Via Campesina Brasil em torno do dia internacional de luta das mulheres. O objetivo foi denunciar o desemprego, a pobreza, a desigualdade social, a expulsão do campo que decorrem das monoculturas de eucaliptos, que têm usurpado terras de áreas de floresta. Outras 2.000 mulheres marcharam pelas ruas da cidade de Curitiba (11) em rejeição ao agronegócio, a violência do capital e do patriarcado; à aprovação do Novo Código Florestal, que supõe um avanço do agronegócio, vide Boletim Nº166 do WRM, e a economia verde impulsionada pelo grande capital.

As mulheres vão além e, apresentando uma saída para o agronegócio, erguem bem alto a bandeira da soberania alimentar. O monopólio de um grupo de transnacionais que conta com o apoio de governos e instituições internacionais (Banco Mundial, FMI, etc.), e veiculam as políticas em seu favor (de privatização, de abertura forçada à economia global, os tratados de livre comércio) se apropriou do sistema de produção de alimentos para transformá-lo em um negócio a mais.

Como aponta a organização GRAIN, o problema não é a falta de alimentos, mas a falta de acesso a eles. Em 2008, a produção mundial de grãos tinha triplicado em relação com a década de 1960, enquanto a população tinha dobrado. São as políticas produtivas, comerciais e de preços as que condenam pessoas à fome em meio da abundância.

Diante disso, a soberania alimentar torna-se um processo de resistência popular cuja conceptualização permite aglutinar os movimentos sociais em torno de um acordo comum de objetivos e ações. A soberania alimentar põe seu foco na autonomia local, nos mercados locais e na ação comunitária e incorpora aspectos como a reforma agrária, o controle territorial, a biodiversidade, a cooperação, a saúde. Implica recuperar o direito a escolher o quê, o como e o onde produzir os alimentos. E nesse sentido, como bem aponta Vivas, é uma perspectiva inerentemente feminista.

O poder continuará buscando fórmulas e resquícios para se perpetuar, mas também a resistência continuará encontrando vozes, entre elas as de um número cada vez maior de mulheres.

1- “Mercados de carbono. La neoliberalización del clima”, Larry Lohmann, 2012, Ediciones Abya-Yala, em español:http://www.wrm.org.uy/temas/REDD/mercados_de_carbono.pdf

2- “Pueblos selváticos en la encrucijada”, Sally Burch, América Latina em Movimiento, El cuento de la economía verde, http://alainet.org/publica/alai468-9.pdf

3- Interview with Teguh Surya, WALHI: “We are against REDD. We are against carbon trading,” Chris Lang, March 9, 2012, redd-monitor.org, http://www.redd-monitor.org/2012/03/09/interview-with-teguh-surya-walhi-we-are-against-redd-we-are-against-carbon-trading/

4- “O mercado de carbono não é a solução que promete ser para governos, florestas e populações do hemisfério sul”, published in February 2012 by various civil society organizations, http://www.fern.org/sites/fern.org/files/carbonleaflet_25nov.pdf

5- “Without women there is no food sovereignty”, Esther Vivas, 2012,http://www.internationalviewpoint.org/spip.php?article2473

6- La Más Reciente Fiebre Por La Tierra En África: Repercusiones De Los Acaparamientos De Tierra Para Los Derechos De Las Mujeres”, AWID, 10/02/2012,http://awid.org/esl/Las-Noticias-y-Analisis/Notas-de-los-Viernes/La-mas-reciente-fiebre-por-la-tierra-en-Africa-Repercusiones-de-los-acaparamientos-de-tierra-para-los-derechos-de-las-mujeres

7- “The Business Case for Mainstreaming Gender in REDD+”, December 2011, UN-REDD Programme

8- “The State of Food and Agriculture - 2010-2011”, Women in Agriculture: Closing the gender gap for development; Women's work,http://www.fao.org/docrep/013/i2050e/i2050e02.pdf

9- Declaração da Marcha Mundial das Mulheres no Dia Internacional das Mujeres, 2012, http://www.marchemondiale.org/news/mmfnewsitem.2012-03-05.8809414578/es

10- “Mulheres do MST ocupam fazenda da empresa Suzano, no municipio de Alcobaça-Bahia”, MST, http://www.mst.org.br/Mulheres-camponesas-ocupam-fazenda-da-Suzano-Papel-e-Celulose-no-sul-da-Bahia

11- “Marcha reúne 2 mil mulheres do campo e cidade em Curitiba por Código Florestal”, Camilla Pinheiro and Pedro Carrano, http://www.mst.org.br/node/13026