A agenda das grandes ONGs de conservação em tempos de crise

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Foto: Nareeta Martin

A crise ambiental, climática e social é uma realidade vivida por muitas pessoas, há muito tempo. Porém, em vez de reconhecer sua contribuição a essa crise, empresas e seus aliados usam a pandemia para ampliar seus esforços pela expansão das Áreas Protegidas, apresentando-as como uma “solução global” para a crise ambiental.

Este boletim foi planejado muito antes da pandemia do Coronavírus (COVID-19). Seu objetivo é destacar e alertar sobre a acentuada tendência de expansão das chamadas Áreas Protegidas e sobre os riscos que isso implica para as florestas e para os povos que delas dependem. A ideia de conservar florestas e biodiversidade é um objetivo muito nobre. Então, qual é o problema com o modelo de conservação das atuais Áreas Protegidas e dos planos para sua expansão?

As grandes ONGs de conservação que promovem a expansão de um modelo de “florestas sem pessoas” ainda estão ligadas aos ideais colonialistas sobre os quais foram fundadas. A maioria delas tem alianças com empresas e governos responsáveis ​​por desmatamento. Essas organizações, que têm campanhas publicitárias caras e que descrevem 2020 como um “super ano para a natureza”, vêm promovendo a expansão das Áreas Protegidas, apesar das evidências de abusos e violência, que estão relacionadas a esse modelo de conservação, contra os povos da floresta. (1) Em nome da conservação, criou-se uma indústria lucrativa.

Até o final de 2020, os governos do mundo deveriam adotar um novo conjunto de metas para “proteger” a biodiversidade durante a reunião da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica (CDB). Essas metas fazem parte do chamado “Acordo Global pela Natureza” que os cientistas propuseram em 2017 para complementar o Acordo de Paris, da ONU. Em 2019, os defensores desse “Acordo” pediram a “proteção” de metade da superfície da Terra. De acordo com as reivindicações de várias ONGs conservacionistas e da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), a primeira versão das decisões a serem adotadas na conferência da CDB estabelece (entre outras coisas) que pelo menos 30% dos oceanos e terras do mundo sejam designados como Áreas Protegidas ou reservados para outros fins de conservação até 2030. O documento preliminar da CDB também inclui uma Visão para a Biodiversidade em 2050, com cinco objetivos de longo prazo. O primeiro objetivo é alcançar “perda líquida zero” em biodiversidade até 2030 e um aumento nessa biodiversidade de, pelo menos, 20% até 2050. (2) Enquanto isso, este ano, as negociações climáticas da ONU devem avançar a metas nacionais para combater os níveis de poluição, com intensa promoção das chamadas Soluções Baseadas na Natureza. O documento preliminar da CDB também promove o uso dessas “Soluções”, que têm como base mecanismos supostamente voltados a compensar a poluição e a destruição, bem como o “reflorestamento” em grande escala.

As reuniões e os documentos políticos “de alto nível” (como as negociações da CDB ou o Acordo de Paris) se baseiam em análises tendenciosas do que está causando perda de biodiversidade e desmatamento ou do que possa estar incentivando essa destruição. Ao mesmo tempo em que fazem soar o alarme e promovem as chamadas “soluções” – para que seus financiadores e o público em geral pensem que “algo está sendo feito” – esses mesmos atores e fóruns continuam promovendo e facilitando as causas diretas e subjacentes da perda de florestas e biodiversidade.

Contudo, a atual pandemia de COVID-19 forçou o adiamento da maioria dessas reuniões internacionais. Começam a circular anúncios sobre a “necessidade global” de evitar outra pandemia como a atual, através da criação de mais Áreas Protegidas. Esse argumento se encaixa perfeitamente na agenda que já estava presente na visão que apontava 2020 como o “super ano da natureza”. Essas demandas não seriam apenas maneiras fáceis de deslocar a responsabilidade por um problema que, claramente, tem causas estruturais mais profundas? O objetivo de criar “áreas mais protegidas” não apenas oculta os verdadeiros culpados pelo desmatamento, a monocultura e a produção de gado em escala industrial, mas também aprofunda a imposição de uma visão colonialista de conservação que separa “natureza” de “seres humanos”.

Houve inúmeras promessas de alinhar as atividades de conservação aos direitos humanos ou a uma abordagem comunitária e participativa. (3) No entanto, na essência, nada mudou na abordagem “sem comunidades” adotada por entidades que fazem o financiamento, a promoção e a gestão de Áreas Protegidas. Nenhuma das propostas que visam fazer com que a conservação pareça mais favorável às pessoas chegou a abordar os principais problemas sobre quem controla a terra em Áreas Protegidas ou quem decide se um local é declarado protegido, e o que isso significa. Além disso, não houve reconhecimento verdadeiro das raízes coloniais e racistas subjacentes ao modelo de conservação predominante. Como resultado, a gestão das Áreas Protegidas continua ligada – direta ou indiretamente – a despejos forçados, assédio, violência e abuso sexual de mulheres e crianças, violações dos direitos humanos, desmatamento e militarização dos territórios dos povos da floresta – e a lista segue.

Um Acordo Global pelo Lucro

O outro lado do modelo predominante de Áreas Protegidas e das atividades de conservação é sua contradição direta: elas permitem que se continue a destruição das florestas e da biodiversidade, dentro e fora de seus limites.

As empresas de mineração, por exemplo, estão operando em várias das chamadas Áreas Protegidas em todo o mundo. Em Camboja, apesar das leis que proíbem a mineração nessas áreas, foram concedidas licenças de mineração – inclusive em grandes partes do Parque Nacional de Virachey. Na Namíbia, o governo permite a exploração e a extração de minerais em Parques Nacionais. No Equador, o governo abriu cerca de 13% do país à mineração, com muitas concessões em áreas anteriormente protegidas. Até mesmo locais considerados Patrimônio da Humanidade estão ameaçados na Venezuela, no México, no Peru, na República Democrática do Congo, na Indonésia, na Guiné, na Costa do Marfim e na África do Sul, entre outros. A realidade é que o corte de madeira em escala industrial, a mineração, a extração de combustíveis fósseis e a produção de monoculturas vêm destruindo milhares e milhares de complexas correlações e interdependências nas florestas, inclusive com os povos da floresta e entre esses mesmos povos.

A epidemia de COVID-19, portanto, não é um evento isolado, ela apenas acirrou a atual crise ambiental, climática, social e econômica. Atualmente, os governos estão ocupados em mitigar os piores impactos da pandemia sobre suas populações e seus sistemas de saúde, mas fazem o que podem para retornar à “normalidade” o mais rápido possível. Mas essa “normalidade” já significava uma crise para milhões de pessoas ameaçadas por despejos, violência, pobreza, marginalização e destruição; enquanto isso, o caos climático já afetava gravemente pessoas, florestas e outros espaços de vida.

A atual pandemia aumenta ainda mais o risco de que governos, indústrias, ONGs conservacionistas e investidores financeiros amplifiquem sua narrativa sobre uma expansão das Áreas Protegidas em todo o mundo como “solução global” para o que eles descrevem como as crises separadas do clima e da biodiversidade.

Não permitamos a imposição de estruturas e atores poderosos que – mais uma vez, ocultos sob a linguagem da crise – estão causando a catástrofe em si.

O apelo por mais áreas protegidas não aborda as causas profundas da destruição nem enfrenta as ameaças às quais os povos indígenas e as comunidades camponesas e tradicionais estão expostas como resultado dessa destruição. A solidariedade radical com as comunidades que enfrentam a destruição de seus territórios requer conversas sobre outros temas. Como disse o pesquisador-ativista Larry Lohmann, quando alguém pergunta “como essa floresta deve ser preservada”, a resposta deve ser outra pergunta: “Como podemos aprender com as comunidades quais são as melhores maneiras de contribuir com suas lutas para defender suas próprias práticas florestais, incluindo seus ciclos de subsistência?”

(1) Veja por exemplo, WWF no Parque Nacional de Salonga na RDC: tortura, assassinato e estupro coletivo, Boletim do WRM, 2019
(2) Veja Campaign For Nature ; e CBD, Zero Draft of the Post-2020 Global Biodiversity Framework
(3) Veja por exemplo, Conservação Internacional, Partnering with communities, institutions and governments