Explorando a pandemia: lucros para empresas e elites

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Ph: nacionwampis.com

As comunidades têm um longo histórico de enfrentamento dos desastres impostos por grandes empresas e elites. A “emergência” já fazia parte da vida delas muito antes da pandemia. No entanto, alguns, em busca de lucro, estão abusando da situação para promover a apropriação de terras, intensificando as injustiças de um sistema destrutivo.

Nos últimos meses, governos de todo o mundo implementaram medidas para conter a pandemia de Covid-19, como mandar as pessoas permanecerem em casa, fechar atividades, decretar toques de recolher e/ou estabelecer “distanciamento social” e quarentena. Frequentemente combinadas com declarações de estados de emergência, essas medidas têm graves impactos negativos no Sul global, onde a maioria das pessoas depende muito da economia informal e sobrevive um dia de cada vez. Para muitas delas, o apoio dos governos tem sido errático, na melhor das hipóteses, e é impossível para essa maioria permanecer segura e isolada. A falta de informações precisas,  adequadas e específicas para cada contexto  sobre como impedir a propagação do vírus, e de estruturas de saúde bem equipadas, deixou as comunidades que dependem das florestas e comunidades camponesas, em particular, mais expostas do que nunca.

Outro lado da pandemia ficou cada vez mais visível: grandes empresas e elites que atuam no Sul global, principalmente em países com florestas, usaram a crise sanitária para enriquecer ainda mais e ampliar seu controle territorial.

As comunidades camponesas e as que dependem das florestas no Sul global têm um longo histórico de enfrentamento do desastre representado pelos investimentos impostos por empresas e elites em busca de lucro: apropriação de terras, erosão do solo e poluição da água, destruição de meios de subsistência, desmatamento em grande escala, aniquilação de espaços de vida, culturas e histórias, deslocamento forçado, violência, marginalização, criminalização, entre muitos outros. A “emergência” já fazia parte da vida dessas comunidades muito antes da pandemia de Covid-19.

Nesse contexto, as medidas dos governos para conter a disseminação do novo coronavírus estão apenas intensificando os impactos e as injustiças de um sistema econômico destrutivo, estabelecido há muito tempo. Essas medidas aprofundaram desigualdades extremas entre ricos e pobres, entre o Norte e o Sul, entre mulheres e homens, e entre comunidades brancas e não brancas. Em suma, os impactos dessas medidas são piores para aqueles que já enfrentam a violência do racismo, das diferenças de classe, do patriarcado e da opressão. E essas mesmas comunidades vulneráveis ​​foram as mais afetadas pela devastadora doença Covid-19.

Em meio a inúmeras tragédias humanas, corporações e elites políticas estão abusando da situação com o objetivo de promover a apropriação de terras, reverter a legislação que protege territórios e pessoas, e aumentar seus lucros.

No Camboja, por exemplo, a gigante vietnamita da borracha Hoang Anh Gia Lai (HAGL) destruiu as florestas das comunidades indígenas Kreung e Kachok durante o confinamento nacional, afetando duas “montanhas espirituais” sagradas, além de áreas úmidas, florestas antigas, áreas tradicionais de caça e cemitérios. (1) Na Indonésia, dois agricultores foram mortos em março, em confrontos por causa de uma antiga disputa de terras com uma empresa de óleo de dendê na província de Sumatra do Sul. (2) No Panamá, Rengifo Navas, líder indígena Guna, condenou o aumento das invasões de terras e da mineração durante o confinamento, além de extração de madeira e caça ilegais em muitas comarcas (territórios indígenas). (3) No Peru, o povo indígena Wampi entrou com uma ação contra representantes da empresa de petróleo GeoPark, argumentando que ela estava ameaçando sua saúde e seu bem-estar ao permitir que trabalhadores não autorizados entrassem em seu território autônomo. (4) Em Uganda, agroindústrias apoiadas por forças policiais e militares se apossaram das terras de mais de duas dúzias de pequenos agricultores, apesar de haver uma ordem do governo para interromper os despejos em função da Covid-19. (5) Enquanto isso, um empreendimento conjunto das mineradoras gigantes Alcoa e Rio Tinto na Guiné, apoiado pelo Banco Mundial, transferiu mais de cem famílias para ampliar uma mina de bauxita durante o confinamento imposto pelo governo. Os moradores foram levados para o topo de uma colina na qual a mineração já havia acontecido e não havia moradia, água, nem saneamento adequados, e onde as terras aráveis eram insuficientes e as oportunidades de subsistência, quase inexistentes. (6) E a lista não para.

Para piorar a situação, as ameaças, a violência, a criminalização, a perseguição e o assédio já enfrentados antes da pandemia pelas comunidades camponesas e florestais que resistem a operações destrutivas em seus territórios continuaram em ritmo acelerado. Na verdade, o confinamento representa um risco real para os ativistas comunitários, já que permanecer no mesmo local os torna facilmente identificáveis ​​e vulneráveis ​​a possíveis agressores. Em muitos países, a proteção aos ativistas por parte do Estado já era insuficiente e diminuiu muito, aumentando consideravelmente sua vulnerabilidade. Só na Colômbia, houve um aumento de 53% nos assassinatos de líderes sociais entre janeiro e abril de 2020. (7)

Além disso, sempre obedientes aos lobistas das empresas, que têm sido especialmente atuantes nesse período, os governos nacionais colocam o bem-estar delas antes do de seus cidadãos.

O setor de petróleo e gás está entre os mais agressivos em demandar apoio financeiro e desregulamentação, de acordo com o InfluenceMap, que rastreia e mede a influência de empresas sobre a política de combate às mudanças climáticas. (8)

Governos de vários países excluíram os chamados “serviços essenciais” das restrições de confinamento. Entre eles estavam mineração, combustíveis fósseis, óleo de dendê e plantações de madeira. Da Bolívia à Malásia, passando pela África do Sul, os trabalhadores foram forçados a arriscar sua saúde e o bem-estar de suas famílias e comunidades que vivem próximas a instalações de empresas. Essas “exceções” não têm nada a ver com prestar “serviços essenciais” à sociedade durante um confinamento. Elas visam manter os lucros das empresas.

Apesar dessa tendência a priorizar empresas e investimentos estrangeiros, os governos poderão em breve enfrentar uma enxurrada de ações judiciais de empresas exigindo compensação por medidas tomadas durante a pandemia. De empresas privadas de água a concessionárias de pedágios em rodovias ou empresas de serviços públicos, os acordos e contratos comerciais para investimentos internacionais expõem os governos ao litígio, mesmo durante uma pandemia global, simplesmente porque os lucros das empresas estão em risco. (9)

O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) também aproveitam a pandemia para promover suas agendas

Apesar dos danos que causaram, principalmente em todo o Sul global, ao impor políticas neoliberais, planos de ajuste estrutural e condições para empréstimos, o Banco Mundial e o FMI agora se apresentam como “especialistas” prontos para guiar o mundo na crise da Covid-19. (10)

Essas organizações multilaterais buscam cumprir um papel importante nos processos de decisão dos governos em relação à direção econômica que os países tomarão. No entanto, ambas sempre cumpriram um papel fundamental na facilitação da privatização, das atividades altamente destrutivas das empresas, da financeirização da natureza e da debilitação das redes de bem estar social dos países – incluindo os sistemas de saúde pública, cujo mal funcionamento está agora tão visível, entre muitos outros. Em outras palavras, são aliadas fundamentais na busca empresarial por lucros cada vez maiores.

O FMI respondeu a pedidos de ajuda emergencial de mais de 80 países. No entanto, os poucos empréstimos concedidos estão vinculados a condições polêmicas (ou seja, reformas que os países devem fazer antes da liberação do financiamento), como enfraquecer ainda mais as garantias trabalhistas e promover privatizações. (11) Por sua vez, o Banco Mundial está “ajudando” 100 países na luta contra a Covid-19, mas grande parte dessa ajuda foi destinada a clientes do Banco do setor privado, sem que tenha havido um compromisso destes clientes no sentido de impedir que essa ajuda seja desviada para fazer avançar a privatização do sistema público de saúde, uma política conhecida do Banco Mundial no passado. (12)

Mas coisas extraordinárias acontecem

Claramente, a maioria das respostas à pandemia por parte de governos nacionais e instituições financeiras não visava cuidar de pessoas ou trabalhadores, e sim ajudar empresas e apoiar as economias neoliberais. Também está claro que a pandemia de Covid-19 não é um evento isolado: o sistema capitalista-patriarcal, de classe e racista que domina nossas respectivas sociedades faz parte da atual situação de emergência, tanto quanto o próprio novo coronavírus.

E em grande parte, as pessoas que sentiram os impactos mais terríveis e prejudiciais desse sistema de busca de lucro são as mesmas que agora garantem que ninguém fique para trás. Coisas extraordinárias estão acontecendo em bairros e comunidades, como movimentos de pequenos agricultores que distribuem comida de graça a quem precisa, iniciativas comunitárias destinadas a impedir a disseminação do vírus, refeições coletivas preparadas e distribuídas em ruas, e feiras comunitárias auto-organizadas que possibilitam o distanciamento social enquanto fornecem alimentos saudáveis ​​e atendem a necessidades básicas.

Se quisermos que esta crise represente uma mudança rumo a sociedades ecológica e socialmente justas, além de respostas coletivas que possibilitem um novo começo para economias que privilegiam o bem-estar das pessoas comuns em detrimento do lucro das empresas, a pandemia deve ser entendida como sintoma de uma emergência que a maioria da população mundial vive há muito tempo.

Nos meses que antecederam o surto de Covid-19, milhões de pessoas em todo o Chile se levantaram para protestar contra os impactos duros e brutais das políticas neoliberais naquela sociedade específica. Um grafite feito em uma parede durante esse período certamente se aplica hoje: “Não podemos voltar ao normal, porque o normal que tínhamos era exatamente o problema”.

(1) EcoBusiness, Vietnamese rubber giant razes indigenous lands as Cambodian government grapples with legacy land issues, junho de 2020
(2) Farmlandgrab, Land conflicts flare across South-East Asia during coronavirus lockdowns, maio de 2020
(3) Servindi, Indígenas de Mesoamérica: “Vivimos una nueva ola de colonialismo”, junho de 2020
(4) Servindi, Gobierno Wampis denuncia penalmente a funcionarios de GeoPark, junho de 2020
(5) Witness Radio, Multinationals use COVID-19 crisis to violently grab land of poor communities with impunity, abril de 2020
(6) IDI, World Bank-Backed Rio Tinto-Alcoa Joint Venture Relocates Guinean Village During Covid-19 Lockdown, junho de 2020
(7) International Land Coalition, Land Defenders can’t Catch a Break from Violence during Covid-19; e El País, El asesinato de líderes sociales en Colombia crece un 53% en el primer cuatrimestre, maio de 2020
(8) Desmog, Under Cover of Pandemic, Fossil Fuel Interests Unleash Lobbying Frenzy, abril de 2020; e InfluenceMap, The COVID-19 Crisis and Climate Lobbying
(9) Corporate Europe Observatory, Cashing in on the pandemic: how lawyers are preparing to sue states over COVID-19 response measures, maio de 2020
(10) Reuters, IMF chief economist says 100 countries seek pandemic aid; more resources may be needed, abril de 2020
(11) Research Gate, Softening the blow of the pandemic: will the International Monetary Fund and World Bank make things worse?, abril de 2020
(12) CEPR, We Can’t Trust the IMF and World Bank to Lead the COVID-19 Recovery, maio de 2020