Agronegócio e injustiça ambiental: os impactos sobre a saúde das mulheres do campo

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Ph.: Núcleo Tramas (UFC)

Sobre como a organização, a divisão sexual e a precarização do trabalho no agronegócio afetam a saúde das trabalhadoras e como as transformações territoriais derivadas deste modelo de produção afetam diretamente as mulheres.

Nas últimas décadas, os países da América Latina viveram intervenções decorrentes de políticas desenvolvimentistas pautadas pela intensa exploração da natureza e exportação de bens primários com baixo valor agregado; consequentemente setores como o agronegócio e a mineração foram fortalecidos (SVAMPA, 2012). No Brasil, isso significou o avanço das fronteiras agrícolas ocasionando uma série de injustiças ambientais e de impactos sobre a saúde, uma vez que o modelo de produção do agronegócio é caracterizado pela expansão das monoculturas, pela concentração de terras, pela mecanização da produção, pela proletarização das populações do campo e pelo uso intensivo de fertilizantes químicos e agrotóxicos (RIGOTTO, 2011).

Dialogando com esse cenário, o Núcleo Tramas – Trabalho, Ambiente e Saúde, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), desenvolve, há mais de 10 anos, estudos e pesquisas relativos aos impactos sobre o ambiente e sobre a saúde das populações que vivem em área de uso de agrotóxicos. O foco principal de nossas pesquisas tem sido o território da Chapada do Apodi – localizado na região do Baixo Jaguaribe, no Estado do Ceará, nordeste do Brasil. Desde a década de 1980, a Chapada do Apodi vem sendo alvo de políticas de irrigação que a transformaram num dos polos de desenvolvimento agrícola do semiárido nordestino, principalmente a partir da implantação do perímetro irrigado Jaguaribe-Apodi.

Em 2010, o Núcleo Tramas - UFC já indicava que o avanço do agronegócio – e consequentemente dos monocultivos –, havia provocado violentos processos de desterritorialização e desencadeado tensões sobre o modo de viver e produzir das comunidades locais. Os resultados das pesquisas demonstraram um grave quadro de contaminação ambiental e humana por agrotóxicos e apresentaram o aprofundamento de problemáticas sociais capazes de repercutir sobre o ambiente, o trabalho e a saúde da população daquele território (RIGOTTO, 2011).

Compreendendo que as consequências negativas dos processos de injustiça ambiental recaem de maneira desproporcional sobre as populações mais vulnerabilizadas e, consequentemente sobre as mulheres, a partir de 2013, o Núcleo Tramas – UFC deu início ao Estudo sobre exposição e impactos dos agrotóxicos na saúde das mulheres camponesas da região do Baixo Jaguaribe, Ceará. Considerando as desigualdades das relações de gênero, investigaram-se as formas pelas quais a organização, a divisão sexual e a precarização do trabalho na cadeia produtiva do agronegócio impactou a saúde das trabalhadoras, e analisaram-se as transformações territoriais decorrentes desse modelo de produção e as consequentes alterações nos determinantes sociais de saúde que afetam diretamente as mulheres.

A divisão sexual e a precarização do trabalho

Em relação ao trabalho das mulheres, observou-se que este é marcado por uma acentuada divisão sexual que as relega a postos de trabalho muito específicos. Verifica-se que, além das condições insalubres, o trabalho comumente destinado às mulheres exigem uma cadência e um ritmo acelerados, além de uma série de habilidades tais como destreza, atenção e paciência. Conforme nos lembram Marcondes et al (2003), por serem as mulheres associadas à esfera do trabalho reprodutivo, essas habilidades passam a ser vistas como naturalmente femininas e, portanto, não são devidamente valorizadas, embora sejam largamente aproveitadas pelos empregadores. Desse modo, as qualificações femininas são desvalorizadas e acabam não repercutindo em melhorias salariais; ao contrário, o que observamos é que as mulheres são mais mal remuneradas uma vez que os ganhos por produtividade são maiores para os homens – pelo menos o dobro –, mesmo que o aumento da produção deles dependa diretamente da aceleração do ritmo do trabalho delas.

Outra questão relacionada à divisão sexual do trabalho diz respeito à compreensão de que o trabalho realizado pelas mulheres seria mais leve; no entanto, aprofundando a análise observamos que outros riscos estão associados às funções que elas desempenham, tais como: a repetição de movimentos, o ritmo intenso e as posturas inadequadas. Encontramos um cenário de muitas trabalhadoras adoecidas por LER/DORT (Lesões por Esforços Repetitivos/Doenças Osteomusculares Relacionados ao Trabalho) em decorrência de posturas desfavoráveis, esforço repetitivo e impossibilidade de se movimentar livremente. Porém, verificou-se que suas queixas são tratadas pelas empresas como inespecíficas e que elas encontram grandes resistências para mudar de função ou mesmo para receber acompanhamento médico adequado (ROCHA e RIGOTTO, 2017).

Um dos fatores agravantes das condições insalubres do trabalho desempenhado pelas mulheres é a convivência com produtos químicos desconhecidos e agrotóxicos, característica do modelo agrícola pautado na monocultura. O Dossiê ABRASCO alerta que entre “os impactos à saúde relacionados ao processo produtivo do agronegócio, os de maior relevância para a saúde humana e ambiental são as poluições e/ou contaminações e as intoxicações agudas e crônicas relacionadas à aplicação de agrotóxicos” (CARNEIRO et al, 2015, p.109). Observamos que o uso intensivo e abusivo de agrotóxicos aliados a pouca informação e comunicação ineficiente contida nos rótulos dos produtos dificulta a percepção dos riscos pelos trabalhadores, pelas trabalhadoras e pela população em geral. Não por acaso, verificamos que as participantes da pesquisa não sabiam identificar a quais produtos químicos eram expostas, no entanto, todas reclamaram de sentir o odor dos produtos e relataram que, dependendo da atividade na qual eram alocadas, podiam sentir os efeitos da exposição aos agrotóxicos no corpo e apresentavam sintomas como irritações na garganta, nos olhos e no sistema respiratório. A pesquisa identificou ainda uma série de violações de direitos cometida pelas empresas, tais como: jornadas de trabalho extenuantes e que excedem a legislação em vigor; não pagamento de horas extras, além da obrigatoriedade de realização das mesmas; ambientes de trabalho insalubres que expõem as mulheres a riscos de acidentes; práticas de assédio moral; negligência aos direitos específicos das trabalhadoras gestantes ou em período de amamentação (ROCHA e RIGOTTO, 2017).

Embora as mulheres indiquem que o agronegócio possibilitou a inserção delas no mundo do trabalho produtivo, observamos que essa inserção ocorre de forma precarizada e subordinada, reproduzindo e acentuando as desigualdades de gênero existentes na sociedade. A dupla jornada de trabalho é intensificada, pois as mulheres continuam sendo responsáveis pelo trabalho reprodutivo e precisam conciliar com as longas jornadas de trabalho impostas pelas empresas. O aumento da participação delas na esfera produtiva não reduz a sua participação na esfera reprodutiva, ao contrário, as mudanças ocasionadas pelo redimensionamento do tempo promovem uma articulação perversa entre trabalho produtivo e reprodutivo que aprofunda a desigualdade entre homens e mulheres.

Refletir sobre o processo saúde-doença das mulheres que vivem num território impactado pelo agronegócio exige compreender não só a participação delas no mundo do trabalho produtivo, mas também perceber como a esfera produtiva se articula com a reprodução social da vida. Desse modo, a pesquisa revelou que as transformações territoriais impostas pelo agronegócio impactam não apenas aquelas que estão empregadas nas empresas agrícolas, uma vez que todas as mulheres que vivem naquele território passam a ser expostas a processos de vulnerabilização.

Entre as transformações territoriais observadas na Chapada do Apodi, apontadas pelas mulheres como potencialmente danosas a sua saúde física e mental, foram indicadas: a perda do acesso a terra; a concentração da água nas mãos das grandes empresas gerando escassez hídrica; a contaminação da água e do solo por agrotóxicos; o aprofundamento do contexto de insegurança alimentar; o intenso fluxo migratório de trabalhadores do sexo masculino, ocasionado pela sazonalidade do trabalho nas empresas, provocando o aumento dos casos de gravidez precoce e exploração sexual; o aumento do tráfico de drogas, possivelmente impulsionado pelo crescimento desordenado dos municípios; e o aumento da violência (SILVA, RIGOTTO e ROCHA, 2015). Essas transformações impactam os determinantes sociais de saúde e recaem de forma mais acentuada sobre as mulheres uma vez que, numa sociedade patriarcal, marcada pelas desigualdades de gênero, ainda são elas as maiores responsáveis pelo trabalho de reprodução social, portanto pelos cuidados com a saúde não apenas delas, mas também do núcleo familiar e comunitário.

Não por acaso, são elas também que exercem o protagonismo no que diz respeito à vigilância dos riscos e agravos à saúde que são decorrentes do modelo agroexportador. Observaram, por exemplo, o nascimento de crianças com malformações congênitas e casos de puberdade precoce em meninas, os quais foram estudados por Aguiar (2017), através de anamnese clínica, avaliação da exposição ambiental e ocupacional do núcleo familiar aos agrotóxicos, análise de ingredientes ativos de agrotóxicos no sangue e na urina, bem como na água consumida em seus domicílios. Nos oito casos estudados, a pesquisa permitiu afirmar a relação entre os agravos e os agrotóxicos, referendando a percepção das mulheres da comunidade que haviam formulado esta hipótese.

Assim, observamos que as mulheres tecem pontes e nexos entre as situações de injustiça ambiental e a contaminação por agrotóxicos com o aumento dos processos de vulnerabilização e impactos sobre a saúde, tais como: o crescimento dos casos de câncer, o surgimento de casos de malformação congênita e de puberdade precoce, a incidência de casos de LER/DORT, entre outros problemas de saúde que passaram a crescer exponencialmente naquele território, desde a chegada das empresas agrícolas. Assim, no contexto comunitário, elas têm sido as maiores responsáveis pelo diálogo estabelecido com a universidade trazendo demandas de pesquisas e apontando caminhos que nos ajudam a compreender e a analisar a complexa trama que se desenvolve a partir das injustiças ambientais desencadeadas pelo agronegócio naquele território.

Mayara Melo, professora do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e pesquisadora do Núcleo Tramas (UFC).

Raquel Rigotto, coordenadora do Núcleo Tramas (UFC) e membro do GT Saúde e Ambiente da ABRASCO.

Referências

- Aguiar, ACP. Exposição aos agrotóxicos e efeitos crônicos sobre a saúde humana: uma “herança maldita” do agronegócio para a Chapada do Apodi (CE). Dissertação [Mestrado em Saúde Coletiva] Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2017.

- Carneiro, Fernando Ferreira (Org.) Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde / Organização de Fernando Ferreira Carneiro, Lia Giraldo da Silva Augusto, Raquel Maria Rigotto, Karen Friedrich e André Campos Búrigo. - Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015. http://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/l241.pdf

- Marcondes, W.B.; Rotenberg, L.; Portelall, L.F.; Moreno, C.R.C. O peso do trabalho "leve" feminino à saúde. São Paulo: Perspectiva. vol.17 no.2 São Paulo Abr./Jun. 2003, http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392003000200010

- Rigotto, R. M. et al. Agrotóxicos, trabalho e saúde – vulnerabilidade e resistência no contexto da modernização agrícola do Baixo Jaguaribe, Ceará.1ª Ed. Fortaleza: Editora UFC e Co-edição Expressão Popular, 2011, http://www.tramas.ufc.br/?p=518

- Rocha, M. M.; Rigotto, R.M. Produção de vulnerabilidades em saúde: o trabalho das mulheres em empresas agrícolas da Chapada do Apodi, Ceará. Saúde em Debate, v. 41, p. 63-79, 2017, https://scielosp.org/pdf/sdeb/2017.v41nspe2/63-79/pt

- Silva, M. L. V.; Rigotto, R.M.; Rocha, M.M. Agora é uma riqueza medonha e todo mundo é doente: repercussões da modernização agrícola sobre a saúde de mulheres camponesas na Chapada do Apodi/CE. Retratos de Assentamentos, v. 18, p. 67-89, 2015, http://retratosdeassentamentos.com/index.php/retratos/article/view/181

- Svampa, M. Pensar el desarrollo desde América Latina. Buenos Aires, 2012, http://www.maristellasvampa.net/archivos/ensayo56.pdf