Como surge a ideia de ´serviços ambientais´ ?

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Para compreender o surgimento e elaboração da ideia de ´serviços ambientais´, é importante comentar, pelo menos, duas crises que apareceram fortemente na década de 1970 envolvendo os países industrializados do Norte, sobretudo os EUA e Europa: uma foi a crise ambiental e a outra, uma crise na economia capitalista.

Naquela década, os problemas ambientais em situações gravíssimas de poluição e degradação ambiental começaram a aparecer com mais força em muitos países do hemisfério Norte, os mais industrializados, mas também e com muita força nos países do hemisfério Sul. Cientistas e ambientalistas começaram a fazer alertas sobre a exploração e uso, até então considerado ilimitado, de madeira, de minerais, petróleo, água limpa, etc. e também acerca da poluição e degradação daí resultantes. Ou seja, estavam apontando para os limites da exploração predatória da natureza e de suas ´riquezas´.

Isso estava diretamente ligado a um nível nunca visto antes na humanidade de produção e consumo de produtos industrializados, sobretudo, nos países capitalistas do Norte, onde as economias, baseadas em combustíveis fósseis como petróleo, cresceram de forma espetacular nos anos 1950 e 1960, aumentando exponencialmente o consumo de massa naqueles países. Vale destacar que isso tem sido, e ainda é o caso para uma minoria da humanidade, à custa da maioria da população que vive no Sul. Se os países do Norte enfrentaram uma crise ambiental, ela ocorreu também ou até mais nos países do Sul, onde se concentrava (e ainda concentra) a exploração e extração de recursos naturais. As populações que viviam no entorno dessas áreas e eram dependentes desses recursos para sua sobrevivência foram os mais afetados pela crise ambiental.

Em resposta a essa crise, primeiro reagiram biólogos do Norte que, preocupados em como preservar a natureza e reverter o processo de degradação, começaram, dentro da lógica vigente da economia liberal, a atribuir à natureza o papel de prestador de ´serviços de ecossistemas´, com a ideia de que seria necessário valorizar mais a natureza para salvá-la. Mais tarde, no final da década de 1970, essa ideia foi adotada por um grupo de economistas capitalistas que introduziram o conceito de ´serviços de ecossistemas´ ou ´serviços ambientais´ na economia, estimando um valor para tais serviços  entre US$ 16 e 54 trilhões. (6)

A ideia de atribuir valor à natureza dando um preço, ou seja, a precificação da natureza, foi muito bem recebida por tais organizações conservacionistas preocupadas em ter recursos para ampliar as áreas de preservação: “Está na hora de reconhecer que a natureza é a maior empresa do Mundo trabalhando para beneficiar 100 por cento da humanidade – e faz isso de graça”,(7) conforme afirmou Jean-Cristophe Vié, Director do Programa de Espécies da IUCN, a principal rede global pela conservação da natureza, formada por diversos atores, como governos e ONGs, e financiada por governos, agências bi e multilaterais, organizações membros e corporações. (8)

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(6) Sullivan, Sian, “Green Capitalism, and the Cultural Poverty of Constructing Nature as Service Provider”. In ´Upsetting the Offset´, Böhm, Steffen and Siddhartha Dabhi (eds), London, MayFlyBooks, pp. 255-272

(7) Ibid.

(8) www.iucn.org/about/

A tragédia dos Comuns

A literatura sobre ´serviços ambientais´ se refere muito a um artigo de Garret Hardin, chamado “A tragédia dos Comuns”, em inglês “Tragedy of the Commons”, publicado em 1969, para justificar a necessidade de cercar a natureza, de privatizá-la como garantia de que ela não acabará. Na visão de Hardin, o uso das pessoas da natureza era um desastre porque, apesar do benefício individual de uso, acabaria com os ´comuns´. Hardin afirmava, por isso, que um mundo limitado apenas iria suportar um número limitado de pessoas, senão o mundo natural acabaria sendo destruído. Tem sido um pretexto fundamental para culpar comunidades tradicionais locais pela destruição da floresta e justificar a sua expulsão, enquanto atividades de fato destrutivas, em nome do ´progresso´ e ´desenvolvimento´, por parte de grandes empresas e proprietários, fossem admitidas e apoiadas.

No entanto, conforme Fairlie et al apontam (9), Hardin se baseava numa determinada área da natureza, por exemplo uma floresta, de livre acesso a todos/as, sem regras definidas entre as pessoas sobre seu uso. Acontece que isso não é comum na maior parte dos países do Sul e até mesmo em lugares no Norte. Ao longo da história até os dias de hoje, em muitas áreas de florestas tropicais e outros ecossistemas, no mundo inteiro, as comunidades que viviam e vivem nesses lugares costumam ter livre acesso às florestas e aos rios, com toda sua riqueza, usados para sua sobrevivência, mas conforme um entendimento e regras comuns, que podem ser simples e até bastante complexos, envolvendo muitos aspectos.  Nesse sentido, não podemos considerar essas áreas como privadas, nem como públicas.

O que vemos ocorrendo no mundo é um processo, iniciado bem antes do artigo do Hardin, de cerceamento crescente dessas comunidades, dos grupos de pessoas que, com liberdade, costumavam usar as florestas, os rios, os mares, para gradualmente serem incorporados ao mercado, ao sistema econômico dominante que busca se apropriar dos ´recursos naturais´: madeira, minério, petróleo, etc., em função do lucro e causando destruição. A ideia dos ´serviços ambientais´ aparece como mais um passo nesse processo.

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(9) Fairlie, Simone et al, “Reclaiming the Commons”, The Cornherhouse,http://www.thecornerhouse.org.uk/resource/reclaiming-commons, 1995

Na década de 1970, o aprofundamento do processo de privatização da natureza foi considerado uma excelente solução, tanto por ONGs preservacionistas, preocupadas com a sobrevivência das florestas e outros ecossistemas e em busca de recursos para isso, como também pelos principais governos capitalistas do Norte, liderados pelos EUA, que buscavam novas formas para lucrar num momento de crise econômica. Buscavam saídas que pudessem contornar a crise e beneficiar suas grandes corporações. Foi a partir daí que começou a crescer o capital especulativo, ganhando desde então cada vez mais terreno na economia globalizada.

O capital especulativo

Em 1944, já no final da Segunda Guerra Mundial, um acordo monetário entre os principais países capitalistas do mundo, assinado na cidade norte-americana de Bretton Woods, estabeleceu que, a partir dali, o dólar dos Estados Unidos seria a moeda internacional. Isso significa que o dólar serviria como padrão monetário para todas as transações comerciais e financeiras entre as nações, mas, para isso, o Banco Central dos Estados Unidos teria que manter uma quantidade de reservas em ouro correspondente ao volume de dólares emitidos. Assim, todas as moedas dos demais países passaram a ter uma paridade fixa com o dólar, o qual manteria uma conversibilidade direta com uma quantidade fixa de ouro, garantindo o lastro para as transações internacionais dali em diante.
No entanto, no início dos anos 1970, em função da queda das taxas de lucros das grandes empresas americanas, houve uma decisão por parte do governo dos Estados Unidos de não mais aceitar essa conversibilidade entre o dólar e o ouro. Significou o fim do sistema monetário internacional com base no padrão ouro. Até então, o dinheiro em circulação era, sobretudo, capital produtivo, ou seja, capital que resulta de atividades produtivas concretas, por exemplo, da produção industrial e da agricultura. Mas a partir daquele momento, começou a circular cada vez mais ´dinheiro´ na forma do chamado capital especulativo, o capital que está em busca de lucros porém não contribui para a produção, por exemplo, nas bolsas de valores, nos ´títulos´ da dívida externa e nos juros sobre esses ´títulos´, etc. Curiosamente, mesmo que não envolva nenhuma atividade produtiva concreta, os lucros obtidos dessa forma são reais dentro do sistema financeiro internacional e os grandes capitalistas como bancos e corporações conseguiram novamente aumentar suas taxas de lucro, porém com atividades especulativas (10). Hoje em dia, o valor do capital especulativo, representado em ações nas bolsas, e outros tipos de certificados, ativos ou títulos comerciáveis, supera em várias vezes o valor do capital produtivo. É a lógica de ganhar dinheiro ´sem fazer nada´.
O crescimento do capital especulativo está muito atrelado ao surgimento do neoliberalismo,  com suas políticas de privatização e uma economia de livre mercado, porém com um Estado muito atuante em favor das grandes empresas. As políticas de apoio explícito à iniciativa privada contribuiu em muito para fazer crescer as dívidas financeiras bilionárias dos países do Sul e a exploração, extração e privatização dos ´recursos naturais´. Quem pagou caro por isso foi a população desses países.

Nos últimos anos, a especulação financeira toma cada vez mais conta da economia, inclusive através dos ´serviços ambientais´, buscando criar novas ´commodities´ a partir da natureza para serem ´comercializados´. Podemos chamar isso de um crescente processo de ´financeirização´ da natureza, que foi muito incentivado pela última crise econômico-financeira de 2007-2008. A partir dessa crise, em vez de os governos pelo menos regularem os mercados financeiros, esses buscaram ´diversificar´ seus ´investimentos´, por exemplo, investindo em ´serviços ambientais`, mas também em outras áreas, como o mercado de terras. É por isso que especialistas do mercado financeiro estão dedicando muito mais tempo em buscar formas para incorporar ´serviços ambientais´ em mercados financeiros, em busca de novos lucros. (11)

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(10)Carcanholo, Reinaldo A. e Paulo Nakatani, ´Capitalismo Especulativo e Alternativas para América Latina´, http://www.rosa-blindada.info/b2-img/Klismoealternativas.pdf

(11) Tricarico, Antônio, “The ´financial enclosure´ of the commons´,http://www.un-ngls.org/gsp/docs/Financialisation_natural_resources_draft_2.pdf,  2011