Fora do radar: resistência ao mapeamento capitalista

Para muitos, o mapeamento é uma técnica insuspeita que auxilia a nossa orientação no mundo. O que frequentemente se esquece é que é importante saber quais agendas políticas estão sendo atendidas pelo mapeamento. Até a indústria global do “contramapeamento”, que permanece parcialmente útil para resistir à invasão auxiliada pelo mapeamento convencional, começou a adotar a espacialidade, a temporalidade e a lógica da mudança subjacente ao mapeamento hegemônico. Em um número considerável de regiões, a participação e a propriedade de ações na indústria de mineração e plantação, ou no REDD e outros projetos de compensação de carbono, substitui a lógica da resistência e da cura, supostamente atendida pelo mapeamento participativo. Portanto, para dar sustentação à verdadeira transformação, deve-se incorporar uma história crítica dos movimentos do “mapeamento a partir de dentro” às agendas sociais de aprendizagem – diferente da indústria hegemônica do “mapeamento a partir de fora”.

As últimas quatro décadas têm testemunhado profundas transformações em todo o Sul global. Em meio a uma economia global de energias e materiais cada vez mais integrada, empresas bem financiadas correram para ocupar locais novos ou potenciais para a produção de valores. A produção foi fragmentada e redistribuída, os padrões comerciais, desmontados e reorganizados, e os estados nacionais, reconfigurados em reação a isso. Enquanto o lema “Made in the World” (Fabricado no mundo) substitui etiquetas mais antigas, como “ Fabricado na Alemanha “ ou “ Fabricado no Japão”, têm surgido formas novas e aceleradas de deterioração ecológica e social.

Uma parte dessas mudanças acontece no mapeamento. No passado, apresentar terras em mapas costumava ser uma forma de ajudar empresas e estados a reivindicar territórios e a organizar o conhecimento necessário para a acumulação de capital. “Outros” conhecimentos e reivindicações considerados irrelevantes eram ignorados com frequência.

O mapeamento capitalista amplia e transforma a logística militar. Esse mapeamento está cada vez mais especializado e mais restrito a sua origem disciplinar, não só pela acumulação de conhecimento que é considerada útil para a reprodução da economia global, mas também ao dispensar ou condenar simultaneamente qualquer “outro” conhecimento considerado irrelevante. Hoje, talvez o mapeamento como um todo esteja se tornando ainda menos democrático e mais elitista e excludente – mais distante das preocupações dos grupos sociais mais fracos. Investidores e líderes políticos consultam mapas globais que revelam onde o “encolhimento das regiões produtoras de alimentos” é “tolerável”, onde os “estoques de carbono florestal tropical” podem ser anexados, a custos menores, onde a terra agrícola tem o menor ou maior valor em dólar, onde novos “corredores” que facilitem o comércio e a produção simplificados podem ser abertos com menos dificuldades, através de milhares de quilômetros de fronteiras políticas e topográficas, reorganizando comunidades humanas e não humanas. Em defesa da destruição, costuma-se citar o “desenvolvimento” que virá para os afetados como consequência do investimento em grande escala preparado por esses mapas.

No meio século desde o final da década de 1960, esse vigoroso remapeamento do mundo tem alimentado a confiança em um amplo espectro político – incluindo alguns dentro dos movimentos ambientalistas – na utilidade dessas “geografias” reducionistas.

O “planejamento do território” impulsionado pelo Estado mapeia áreas que estejam fora de blocos de investimento existentes ou em regiões já construídas, que possam ser devastadas ao menor custo político, a fim de torná-las disponíveis à próxima rodada de investimentos internacionais. Drones e satélites ajudam estados e empresas a alcançar uma precisão elevada e rentável na representação espacial de tudo – de tipos de solo a limites jurídicos.

Enquanto isso, as comunidades locais têm dificuldade para ser compensadas por invasões de seus territórios quando os mapas usados ​​por seus adversários investidores e estatais nem mesmo reconhecem aquilo pelo qual elas precisam ser compensadas.

Espaços alternativos

No entanto, até mesmo as tentativas mais poderosas e sistemáticas de remapear a terra para uma nova onda de pilhagem produzem seu próprio inimigo. Cada tentativa de expandir as fronteiras do espaço monopolizado para gerar mais valor econômico provoca esforços para definir, defender, recuperar e recriar espaços “alternativos”.

Esses espaços podem ser encontrados não apenas em grandes eventos, como o Fórum Social Mundial, em cidades como Porto Alegre, Mumbai ou Túnis. Eles também estão sendo recriados em muitos lugares onde são corroídos os recursos comuns de pessoas que estão tentando se reconectar com suas próprias florestas, suas montanhas e seu solo.

Potencialmente, esses espaços “alternativos” também podem ser construídos fora dos espaços de vida transitórios, muitas vezes ignorados, dos novos despossuídos, incluindo posseiros urbanos, operários oprimidos e refugiados rurais. Nesses grupos, o sentido de comunidade só costuma ser invocado em situações de emergência, como ameaçadas de expulsão, e se manifesta em rebeliões ou motins. Porém, fora dessas situações de emergência, também surgem espaços não televisionados e não financiados para a aprendizagem colaborativa no longo prazo – para replantar terras devastadas, plantar cultivos voltados a atender às necessidades internas das comunidades e assim por diante. Esses esforços são formas de recultivar ​​alguns dos órgãos dos quais que precisamos para seguir em frente.

Mapeamento alternativo

Tentativas de mapear esses espaços podem ajudar a construir novas arenas para desafiar a expansão capitalista, mas também podem acabar servindo, elas próprias, aos interesses globais corporativos ou imperiais.

O “contramapeamento” e “o mapeamento participativo” são exemplos disso. O contramapeamento geralmente recruta a ajuda de profissionais para criar mapas que melhor representem os interesses e as preocupações das pessoas comuns, enquanto o mapeamento participativo costuma se basear em informações que só as pessoas locais podem oferecer.

Esses esforços costumam ser bem intencionados, mas também podem reproduzir as formas discriminatórias de pensar sobre o espaço, que são típicas dos mapas dominantes.

Por exemplo, eles podem filtrar as vozes daqueles que não conseguem usar as tecnologias de mapeamento ou podem ignorar os vocabulários que eles usam. Podem representar espaços de vida locais, como lugares em uma propriedade ou um mapa de prospecção, contradizendo o que define esses espaços de vida. Mesmo ao tentar descrever a extensão da invasão de terras ancestrais ou a propagação de movimentos de resistência, eles provavelmente não conseguirão sondar a natureza dos conflitos subjacentes com muita profundidade, e muito menos representá-la em um mapa unidimensional.

Além disso, os esforços “alternativos” de mapeamento podem acabar servindo como fontes de informação comercialmente valiosa que Estados e empresas têm dificuldade de adquirir, como a localização em GPS de penhascos que correspondem à cor de amostras minerais específicas ou o conhecimento sobre práticas locais de conservação que possam ser posteriormente transformadas em mercadoria e vendidas, por exemplo, dentro de regimes de REDD+.

Na Indonésia, por exemplo, a Decisão 35 de 2013, do Tribunal Constitucional, obrigou o Estado a reconhecer “florestas consuetudinárias” em mapas territoriais tradicionais. Elas são mapeadas e administradas em conjunto com a participação das comunidades no REDD. No final de 2014, a Aliança Indonésia de Povos Indígenas (AMAN, na sigla em inglês) apresentou 517 mapas, cobrindo uma área de mais de 4,8 milhões de hectares ao agora extinto Conselho Executivo do REDD+, que tinha assumido um papel de “cuidador de dados” geográfico.

No pior dos casos, o mapeamento “participativo” degenera em pura manipulação. Em um conhecido exemplo da Indonésia, o World Wide Fund for Nature (WWF) emprestou 50 câmeras de vídeo a membros da comunidade em Lamalera, na ilha de Lembata, e treinou moradores locais em seu uso. A seguir, a comunidade usou as câmeras para gravar uma caça anual de baleias parcialmente cerimonial, não comercial, nas águas costeiras da ilha. Depois de pegar as câmeras de volta, o WWF usou as gravações para desacreditar os lamaleranos e propor que o governo proibisse aqueles rituais, sem qualquer esforço para analisar e compreender a história social dos moradores.

Caminhos para o avanço

Em nossos esforços para questionar ou “descentrar” o mapeamento agressivo do mundo por parte de um colonialismo ressurgente, podemos aprender muito com formas alternativas já estabelecidas de organização do espaço e do tempo.

O cosmos balinês, por exemplo, integra não só a cardinalidade espacial, por exemplo direções em uma bussola, com virtude, cor e grau de sacralidade, mas também conecta eventos cósmicos, atividades humanas profanas e sagradas, bem como uma compreensão nítida e precisa do espaço vital ecológico, com um calendário híbrido. Esse sistema híbrido incorpora o calendário lunar e o solar, e inclui os calendários gregoriano, hijri, chinês, wuku e çaka. A ideia é calibrar ciclos temporais de rotinas sociais ou cerimoniais de acordo com as virtudes oferecidas pelas dinâmicas climáticas e microclimáticas. Hoje, por exemplo, moradores das quatro comunidades que guardam o Lago Tamblingan compreendem e vivem de acordo com um mapa mental detalhado da paisagem, baseado em um conjunto de leis ambientais na forma de inscrições que datam de 480 dC.

Mapeamentos de espaço associado com (por exemplo) os dois milenares Shan Hai Jing (os clássicos das Montanhas e dos Mares) ou o mappamundi da Europa medieval oferecem mais ferramentas para uma análise crítica do mapeamento capitalista contemporâneo.

A resistência, a cura e o restabelecimento dos recursos comuns exigirão esforços coletivos para entender e expor o extrativismo brutal de hoje. Nesse contexto, é importante destacar o papel que o mapeamento – incluindo muitas formas de mapeamento participativo – cumpre para ajudar a continuação do extrativismo. Mas a resistência, a cura e o restabelecimento também requerem diferentes tipos de mapeamento que põem em jogo códigos e racionalidades distintas daquelas que dominam a geografia capitalista, quanto ao uso do espaço, do tempo de trabalho, da energia e dos materiais da Terra.

Hendro Sangkoyo, hendro.sangkoyo@gmail.com
School of Democratic Economics - Indonésia

Mais leituras:
Dorofeeva-Lichtmann, Vera V. (1995). Conception of Terrestrial Organization in the Shan Hai Jing. Bulletin de L'ecole française d'Extremè-Orient, Tomo 82, 1995, p. 57-110, http://www.persee.fr/doc/befeo_0336-1519_1995_num_82_1_2297
Biggs, M. (1999). Putting the State on the Map: Cartography, Territory, and European State Formation. Comparative Studies in Society and History, Vol. 41, No. 2 (Abr., 1999), p. 374-405, http://users.ox.ac.uk/~sfos0060/statemap.shtml
A. B. Coury, Hendricks, T. A. e Tyler, T. F. (1978). Map of prospective hydrocarbon provinces of the world. U. S. Geological Survey.
Sassan S. Saatchi et al (2011). Benchmark map of forest carbon stocks in tropical regions across three continents, Proceedings of the National Academy of Sciences, http://www.pnas.org/content/108/24/9899.full
World Bank (2011). Rising Global Interest in Farmland: Can it yield sustainable and equitable benefits?, http://siteresources.worldbank.org/DEC/Resources/Rising-Global-Interest-in-Farmland.pdf