FSC e RSPO parceiros no crime? A questão fundiária da Jari Florestal e da Agropalma na Amazônia brasileira

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Jari Florestal. Ph: Tarcísio Feitosa

Há anos o WRM vem alertando que muitas plantações de monocultivos certificadas no Brasil estão sobre terras com títulos obtidos de forma fraudulenta. Este artigo traz o caso de duas empresas que atuam na região Amazônica - a Agropalma e a Jari Florestal.

Há anos o WRM vem alertando que muitas plantações de monocultivos certificadas no Brasil estão sobre terras com títulos obtidos de forma fraudulenta. Este artigo traz o caso de duas empresas que atuam na região Amazônica - a Agropalma e a Jari Florestal. Ambas obtiveram selos de certificação para suas plantações apesar de responderem na Justiça a processos judiciais pelo crime de terem fraudado títulos de terras. No caso da Agropalma, a certificadora foi a RSPO e, no caso da Jari Florestal, o FSC. (1)

A história do Brasil é marcada por expulsões violentas e em massa de comunidades indígenas, tradicionais e camponesas das suas terras. Para se tornarem “proprietários” das terras desses povos, é prática recorrente por parte de latifundiários a produção de documentos falsos: a chamada grilagem de terras. (2) A prática da grilagem corroborou para que o Brasil fosse considerado hoje um dos países com a distribuição de terras mais desigual do planeta.

Ao atribuir os selos, as certificadoras tornam-se cúmplices desse processo de expropriação e violência, imprimindo um atestado de legalidade à situação fundiária das empresas.

O caso da Agropalma

A Agropalma é uma das principais empresas no Brasil de plantações de monocultura de dendê, que chegam a ocupar cercar de 39 mil hectares, no estado do Pará. Segundo consta no seu site na internet, a empresa possui vários selos de certificação, “fundamentais para manter a sua credibilidade [da empresa] no mercado”(3). Dentre eles, está o da RSPO, obtido em 2013 e que abrange toda a área plantada da Agropalma. (4)

A Agropalma também participa de uma parceria chamada Grupo Inovador da Indústria de Óleo de Palma, criada em conjunto com ONGs como WWF, Greenpeace e Forest Peoples Programme (FPP) “para  intensificar e melhorar os princípios e critérios da Mesa Redonda de Óleo de Palma Sustentável (RSPO)”. (5)

No entanto, desde 2016, a Polícia Federal no estado do Pará investiga a Agropalma pela suposta existência de um esquema criminoso. Documentos falsos teriam sido produzidos e usados por funcionários da empresa para a regularização das terras junto a órgãos públicos, e possível acesso a recursos oriundos de financiamento público em detrimento dos moradores que ali viviam.

Em março de 2018, foram cumpridos mandados de prisão temporária de quatro pessoas diretamente envolvidas no esquema, inclusive um funcionário da Agropalma,  e de busca e apreensão de materiais da empresa. Segundo afirma o delegado responsável pela investigação: "Indícios apontam para que sejam casos de grilagem (...). A Agropalma é a real beneficiária de todo o esquema criminoso". Ele afirma ainda que “(...). Eles vinham até um cartório em Belém [capital do Pará], faziam uma escritura falsa, toda uma cadeia dominial falsa, terminando sempre na empresa, como se a terra depois de todas essas vindas fosse por último vendida para a empresa. Depois voltavam ao município em questão e restauravam livros que supostamente estariam extraviados.” (6)

Segundo a investigação, uma portaria do Tribunal de Justiça do Pará autoriza que um livro de escrituras extraviado possa ser restaurado caso o interessado tenha um indício documental. Usando desse artifício, a Agropalma estaria fazendo esse restauro com base em documentos falsos, colocando as terras em nome da empresa e aumentando o tamanho delas. Em seguida, dava seguimento ao processo de regularização fundiária em órgãos públicos.

Em agosto de 2018, o Ministério Público do Estado do Pará ajuizou uma Ação Civil Pública na qual requer, entre outras providências, a nulidade e o cancelamento de registros imobiliários referentes a duas fazendas, Roda de Fogo e Castanheira, as quais somariam mais de 9.501 hectares equivalendo ao tamanho de quase 9 mil  campos de futebol. Ambas teriam sido adquiridas pela Agropalma por meio de registros falsos, realizados num cartório fictício da cidade, e em tramitação no Instituto de Terras do Pará (Iterpa). (7)

O caso da Jari Florestal

Em 1967, o bilionário norte americano Daniel Ludwig pagou à ditadura militar brasileira 3 milhões de dólares para ter controle sobre nada menos do que 1,6 milhão de hectares de florestas no norte do país, numa região chamada de Vale do Jari, entre os estados do Pará e do Amapá.

O empreendimento dele iniciou um grande desmatamento para implementar a monocultura de uma árvore exótica da Indonésia, a Gmelina arbórea, para fins de produção de celulose. Com financiamento público do Banco Nacional de Desenvolvimento do Brasil (BNDES), Ludwig encomendou uma fábrica de celulose que foi trazida do Japão pelo mar.

O empreendimento atraiu milhares de pessoas para a região. O núcleo urbano de Monte Dourado, no município de Almeirim no Pará, tornou-se centro do projeto. Depois de ter plantado 64 mil hectares de Gmelina, o empreendimento partiu para plantações de pinus, devido ao ataque de fungos e, mais tarde, para o plantio de eucalipto. Em 1982, devido à grave crise financeira em que o empreendimento se encontrava e às crescentes críticas sobre o apoio dos militares ao empresário estrangeiro, Ludwig vendeu sua empresa a um consórcio de 23 empresas brasileiras. A compra foi viabilizada com dinheiro público. (8)

Em 2000, o empreendimento começou a ser controlada pelo grupo ORSA, que criou em 2003 a ORSA Florestal para se dedicar à atividade madeireira. Já em 2004, a então ORSA Florestal conseguiu o selo FSC, através da empresa certificadora SCS, para o manejo florestal em uma área de 545 mil hectares. Na época, a empresa também conseguiu o selo FSC para as plantações de árvores para celulose. (9)

Em 2013, o empreendimento começou a se chamar Grupo Jari e a ORSA Florestal se tornou a Jari Florestal. (10)  Em 2014, o manejo florestal da empresa, agora Jari Florestal, foi recertificada para uma área total de 715.665 hectares, sendo 666.100 hectares para fazer o corte de madeira com uma taxa de colheita prevista de 30m3/ha/ano, destinada principalmente para a exportação. (11) No seu relatório de 2014, a SCS afirma que “a empresa possui documentação legal de propriedade das terras sob escopo de certificação, de fé pública, tanto para as áreas no estado do Pará, quanto no estado do Amapá”, em nome da empresa Jari Celulose, pertencente ao Grupo Jari.

A SCS afirma ainda que “a legitimidade dessa documentação foi verificada através de consultas aos órgãos competentes”. Mesmo assim, a SCS admite que, já na sua primeira avaliação de certificação em 2003/2004, ela tinha identificado o problema da falta de regularização fundiária das comunidades que moram na área da Jari.  Na época, ela demandou da empresa que fizesse um plano para realizar essa regularização dos moradores com direito de posse, mas que houve uma série de problemas entre 2004 e 2013 que dificultaram a implementação do plano. Insistindo na afirmação de que “a empresa possui a documentação legal e legítima”, a SCS alega que os problemas foram causados por supostos “invasores” nas terras da empresa e que, por isso, a Jari teria movido processos judiciais de reintegração de posse contra essas pessoas.

A SCS coloca a Jari como vítima no imbróglio fundiário. Ela sugere que a empresa não tem qualquer responsabilidade sobre os problemas fundiários existentes quando alega que a “Jari Florestal não pode ser culpada, muito menos punida pelos acertos e erros no passado do ‘Projeto Jari’”. E que, “se cumpre os padrões FSC, ela está sim qualificada para ter e manter a certificação, como fez ao longo desses 9 anos”. (12)

Talvez seja por isso que a SCS ignorou no seu relatório por completo dois processos judiciais que já estavam em andamento e que contradizem suas afirmações sobre a suposta legalidade da documentação de terras da Jari Florestal.

O primeiro é uma ação de 2005, movida pelo governo de estado do Pará, e que pede que seja declarado que a Jari Florestal não é proprietária das terras que ela busca legitimar junto ao Instituto de Terras do Pará. (13) Na ação, o procurador do estado do Pará questiona a suposta propriedade do grupo Jari sobre a gleba que era no passado a Fazenda Saracura, na época uma área de 2,6 milhões de hectares. Segundo afirma um estudo histórico, “as circunstâncias nas quais [o suposto dono por volta de 1882] obteve essas áreas são rodeadas de relatos de fraudes eleitorais e nos cartórios da região, dando início a uma complicada situação fundiária até hoje sem solução”. (14) Por isso, a corregedoria do Tribunal de Justiça do estado de Pará  promoveu o cancelamento das matrículas, transcrições, registros e averbações constantes sobre o imóvel [fazendo Saracura], “(..) a fim de evitar a legitimação daquilo que a Jari fez transformando a Fazenda ‘num passe de mágica’ em propriedade”, como afirma o procurador na ação de 2005.

A segunda ação data de 2011 e tramita na Justiça Federal do Pará em base de denúncia do Ministério Publico Federal contra o diretor do Grupo Jari. Ele teria praticado o crime de falsidade ideológica na apresentação de documentos fundiários para conseguir a autorização de exploração de madeira nativa. Este plano de manejo florestal do Grupo Jari foi apresentado para o órgão federal ambiental IBAMA em 2001 para conseguir naquele momento a autorização para começar o corte de madeira. O Ministério Publico Federal foi acionado em 2005 a partir de suspeitas do IBAMA de fraude nos documentos fundiários.  (15)

Desde 2017, a certificação FSC da Jari Florestal encontra-se suspensa, mas não pela questão fundiária. (16) A decisão foi tomada pela SCS com base em uma auditoria especial realizada em 2015 depois que uma operação do IBAMA multou a Jari Florestal em 6 milhões de reais por irregularidades no manejo florestal, que apontou para a comercialização ilegal de madeira. Por falta de cooperação da empresa na investigação da certificadora, a SCS decidiu pela suspensão do selo. (17)

Segundo notícias veiculadas na imprensa na época, foram também “queixas trabalhistas e (..) violência contra as comunidades tradicionais” que teriam pesado na decisão (18).  No ultimo relatório da SCS disponibilizado no site do FSC, ela informa que a suspensão foi mantida. Uma vez que as irregularidades teriam acontecido fora da área certificada pelo FSC, a SCS sugere que cabe ao FSC Internacional a decisão se ela mantém ou não a Jari Florestal como filiado do FSC. (19) Até o momento, a Jari continua membro do FSC.

Considerações finais

Uma tática para empresas conseguirem camuflar ilegalidades é buscar mecanismos que possam atestar a legalidade das suas práticas. O FSC e a RSPO parecem se encaixar nesta lógica, ainda mais quando certificadoras acabam prestando um grande serviço à empresa ao atestar a legalidade de seus documentos fundiários enquanto ignoram por completo denúncias das comunidades e o trabalho de anos de investigações e ações judiciais movidas pelas autoridades competentes. O Ministério Público Estadual do Pará, sinalizando que tem consciência dessa tática, incluiu na ação que ajuizou contra a Agropalma que a empresa deverá se eximir de ostentar em suas peças de publicidade o Certificado “8-0090-08-100-00” conferido pela RSPO, considerando as irregularidades. (20)

No caso da Jari Florestal, a empresa encontrou também na certificação, no caso do FSC, uma aliada estratégica. O caos ambiental e social que o empreendimento gerou na região deveria evitar que ela conseguisse qualquer selo de sustentabilidade que pudesse lhe dar maior importância econômica e credibilidade nos mercados consumidores da madeira. Nada disso aconteceu. Ela não só conseguiu o selo como encontrou na certificadora uma aliada para “resolver” seus graves problemas fundiários. Enquanto estes problemas ficaram sem solução, a empresa munida do selo conseguiu vender sua madeira como certificada em mercados internacionais entre 2004 e 2015 até a operação do IBAMA, que desencadeou na suspensão do selo. Mesmo assim, o FSC mantém Jari Florestal entre seus filiados.

Praticamente ignorado pela certificadora do FSC, um grupo de várias comunidades tradicionais está empenhado há anos, apesar das pressões que vem sofrendo, a mover uma luta pela recuperação de suas terras, não como lotes individuais, mas como territórios coletivos reconhecidos pelos órgãos oficiais. Buscar a titulação coletiva tem sido a principal estratégia encontrada por comunidades tradicionais em todo o país para lutar por justiça e reparação de violações históricas, para conseguir resistir ao avanço do latifúndio a pleno vapor no Brasil e garantir sua sobrevivência futura, tanto física como sociocultural.

Vale acrescentar, por fim, que a Jari Florestal tem se envolvido também em um projeto REDD+ desde 2010, junto à empresa Biofílica, como mais uma forma de lucrar. REDD+ é um mecanismo de pagamentos por redução de desmatamento. De forma conveniente, a linha de base para o projeto REDD+ do grupo Jari foi estabelecida entre 2000 a 2010, excluindo uma história do empreendimento de desmatamento em larga escala, sem falar da degradação florestal nos últimos 15 anos pela extração de madeira. A Jari já ganhou dinheiro com o projeto REDD, vendendo 200 mil créditos de carbono. O que chama a atenção é que, também na área do projeto REDD+, membros de comunidades têm colocado a mesma reivindicação da regularização de seu território. Sem causar surpresa, também o projeto resultou em mais uma certificação para a Jari Florestal em 2013, neste caso pelo sistema  de certificação chamado VCS   - Padrão de Carbono Verificado - para projetos do tipo REDD+. (21) Esta certificação continua com sua validação aprovada na base de dados da VCS. (22)

Winnie Overbeek
Secretariado Internacional do WRM

  1. O sistemas de certificação FSC – Conselho de Manejo Florestal -é para manejo de florestas e plantações de monoculturas de árvores, o da RSPO - a Mesa Redonda de Óleo de Palma Sustentável (RSPO, por sua sigla na inglês) - são para plantações de monocultura do dendê. Veja mais informação aqui.
  2. A grilagem de terra tem como objetivo transferir terras públicas para domínio privado utilizando documentos públicos de posse ou propriedades falsificados (TRECCANI, 2001), essa ação contêm um conjunto de crimes associados como peculato, organização criminosa, improbidade administrativa e enriquecimento ilícito. Na maioria dos casos a grilagem está associada a atos de violência, pois as terras em questão estão ocupadas por povos e comunidades tradicionais ou agricultores familiares (SIDALC, BDAGBAMB), que são expulsos por ordem judicial ou por milícias armadas. (TRECCANI, Girolamo Domenico. Violência e grilagem: instrumentos de aquisição da propriedade da terra no Pará. UFPA, ITERPA, 2001; e SIDALC, BDAGBAMB. Título: O livro branco da grilagem de terras no Brasil. P. imprenta: Brasília, DF (Brazil). nd. 41 p.)
  3. www.agropalma.com.br
  4. https://rspo.secure.force.com/membership/servlet/servlet.FileDownload?retURL=%2Fmembership%2Fapex%2FRSPOCertSearch&file=00P9000001KQ4JEEA1
  5. https://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao1/brasil-discurso-da-inovacao-contrasta-com-a-realidade-da-vida-em-condicoes-analogas-a-escravidao-de-trabalhadores-empregados-por-um-dos-fornecedores-da-agropalma/).
  6. https://g1.globo.com/pa/para/noticia/operacao-da-pf-investiga-fraudes-em-documentos-de-regularizacao-fundiaria-no-para.ghtml
  7. https://www2.mppa.mp.br/sistemas/gcsubsites/index.php?action=Noticia.show&id=1697&oOrgao=94
  8. https://wrm.org.uy/wp-content/uploads/2013/04/Pulping_the_South.pdf  e  http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/projeto-jari
  9. http://www.inesgodinho.com.br/pdfs/RS_Orsa_2010.pdf
  10. O Grupo Jari é ademais composto pela Jari Celulose, que maneja as plantações na maioria de eucaliptos para celulose; a Ouro Verde Amazônia, focado em produtos não madeireiros; e a Fundação Jari, focado em realizar projetos sóciais nas comunidades para mitigação de impactos negativos da empresa. http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/projeto-jari
  11. https://br.fsc.org/preview.fmpubjariflorestal071614port.a-611.pdf
  12. Ibid
  13. Ação declaratória de inexistência de domínio e impossibilidade reconhecimento de domínio fora da via administrativa, com pedido de liminar. Belém, 21/09/2005. Ibraím José das Mercês Roch, procurador do Estado do Pará Coordenador da Procuradoria Fundiária, distribuiçã por conexão ao processo 2004100356-1
  14. FOLHES, Ricardo; CAMARGO, Maria Luiza. LATIFÚNDIO. Conflito e desenvolvimento no Vale do Jari: do aviamento ao capitalismo verde. Agrária (São Paulo. Online), n. 18, p. 114-140, 2013.
  15. Inquérito Policial (Polícia Federal de Santarém: Número: 192/2004-DPF/SNM/PA e Processo na Vara Federal de Santarém: No. 423-06.2012.4.01.3902.
  16. https://info.fsc.org/details.php?id=a0240000005sV5xAAE&type=certificate
  17. http://fsc.force.com/servlet/servlet.FileDownload?file=00P3300000evgxOEAQ
  18. http://fsc.force.com/servlet/servlet.FileDownload?file=00P3300000evgxTEAQ
  19. https://www2.mppa.mp.br/sistemas/gcsubsites/index.php?action=Noticia.show&id=1697&oOrgao=94
  20. https://redd-monitor.org/2015/12/17/the-jari-amapa-redd-project-brazil-greenwashing-illegal-logging-a-pulp-mill-and-a-48-year-old-land-grab/
  21.  https://www.vcsprojectdatabase.org/#/projects/st_/c_BR/ss_0/so_/di_/np_