O mundo da especulação e os títulos verdes

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Foto: Edie

Suzano, a maior produtora mundial de celulose de eucalipto, busca intensificar suas operações com os chamados ‘títulos verdes’, como forma de financiamento de seus projetos de expansão. Este artigo procura traduzir o emaranhado técnico montado para as novas operações especulativas e refletir sobre as novas táticas de acumulação das grandes empresas.

Foi com o lema “Nosso propósito é renovar a vida a partir da árvore” que a empresa Suzano Papel e Celulose lançou seu material de divulgação de resultados relativo ao ano de 2020. O documento procura mostrar as primeiras consequências dos recentes processos de fusões e aquisições, os quais tornaram a Suzano a maior produtora mundial de celulose de eucalipto. O foco da publicação busca apresentar que, muito mais que lucros, as atividades produtivas da empresa se movem como solução para, até 2030, substituir 10 milhões de toneladas de plástico e derivados de petróleo por produtos de origem vegetal e, também, remover 40 milhões de toneladas de CO2 da atmosfera, por meio da expansão das plantações de árvores. Segundo o relatório, além das questões ambientais, a Suzano projeta retirar cerca de 200 mil pessoas da linha de pobreza, nas áreas de sua atuação.

Essas e outras medidas estão na mira da Suzano, com o objetivo de intensificar suas operações com títulos verdes, como forma de financiamento de seus projetos de expansão e competitividade. Segundo a companhia, um dos principais resultados de 2020 teria sido seu pioneirismo na emissão de títulos (Sustainability-Linked Bond), conseguindo captar 1,25 bilhão de dólares, tendo como contrapartida a promessa de redução da emissão de gases de efeito estufa, em 15%, até 2030.

Entendemos que o referido relatório revela o esforço midiático dos grandes empreendimentos agroindustriais em procurar mascarar os objetivos de sua lógica de acumulação predatória. Para melhor entendermos esse processo, temos que refletir sobre as novas táticas de acumulação das grandes empresas, especialmente em seu envolvimento na tal economia verde.

Primeiros passos

Tentemos, então, traduzir o emaranhado técnico montado para as novas operações especulativas neste longo período de crise mundial do capital. Uma das grandes dificuldades para compreendermos o domínio da acumulação especulativa, sobre o capital produtivo e demais formas de apropriação da riqueza social, talvez seja a forma de concebermos os movimentos econômicos. É comum vermos definições de que o termo economia teria origem nas acepções gregas para oikos (casa) e nomos (gerir), sugerindo certa vinculação com atividades domésticas, a partir das quais poderíamos explicar as escolhas humanas em torno da produção, da distribuição e do consumo nas sociedades, em todos os tempos.

Simplificações como estas acabam escondendo que, sob as relações do capital, a tal distribuição não orienta totalmente a riqueza produzida para o consumo final das famílias, mas, sobretudo, para um intenso processo de acumulação. No capitalismo, acumular tem sido o caminho para as empresas tornarem-se grandes, fortes, competitivas, se constituindo como conglomerados econômicos, capazes de comandar um conjunto diversificado de formas de apropriação de parcelas cada vez maiores da riqueza produzida em escala mundial.

Assim, acumular significa reaplicar recursos conquistados em sua própria expansão, penetrando em fatias de mercados por meio de grandes disputas concorrenciais entre as unidades de capital (seja no modo de fábricas, de bancos, de casas comerciais, da propriedade da terra, ou, da especulação).

Nasceu, também, dessas simplificações domésticas sobre a economia capitalista, uma fantasia bastante conveniente: a teoria da abstinência. Segundo ela, as grandes empresas teriam surgido a partir da decisão de algumas pessoas, empreendedoras, em abrir mão do consumo de parte razoável do que teriam ganhado com seu próprio trabalho, se dispondo a colocar essa poupança em favor da produção social. Essa lenda leva também à ilusão de que o desenvolvimento de grandes empresas é necessário, para empregar o grande contingente de pessoas que preferiu não se abster do consumo e gastou tudo que ganhou na vida. Sem essas oportunidades de emprego, essas pessoas não conseguiriam viver, insiste a cantilena.

Falácias à parte, sabemos que desde meados do século XIX ocorreu a separação entre a propriedade e a gestão do capital. De início, os bancos promoviam o crédito para financiar grandes empreendimentos, mas, logo depois, foram criados os mercados de ações e os bancos foram se fundindo com o capital produtivo, criando as grandes sociedades anônimas (S.A.).

Assim, os grandes investimentos passaram a ser financiados via tomada de empréstimos, mas, também, por meio da venda de cotas (ações) de participação na propriedade das empresas. Para isso, foram criadas novas instituições, as chamadas bolsas de valores, as quais operam em escala internacional, intermediando a compra e a venda dessas parcelas de participação acionária. Se a opção pelos empréstimos significava a emissão de títulos de dívida pelas empresas tomadoras de crédito, no caso da colocação de ações em bolsa as empresas passaram a operar a abertura do seu próprio capital, para a entrada de um grande número de sócios, alguns com direito a voto nos conselhos, mas, a maioria, totalmente anônimos, que não interferem na gestão.

Nesse processo, surgiram também as debêntures, que são títulos de dívida conversíveis em ações da empresa tomadora, caso a dívida não seja liquidada no prazo estabelecido. Percebe-se, portanto, que a compra e venda de cotas das empresas nas bolsas de valores, bem como a possibilidade de troca de títulos de dívida por ações, promovem um contínuo intercâmbio patrimonial, sem que seja possível determinar quem são exatamente todos os proprietários das empresas. Quem detém ações com direito a voto acaba escolhendo e contratando gerentes executivos, para administrar as unidades das grandes empresas espalhadas pelo mundo, os quais podem ser remunerados com parcela dos lucros, mas, também com parcela das cotas de propriedade.

A escalada para o domínio da especulação

Desde a criação dos sistemas de crédito parte dos compromissos assumidos pelo devedor representam mera especulação sobre o risco do negócio. Além dos juros a pagar, os contratos de empréstimos sempre agregam à dívida uma taxa de risco, como forma de compensar eventuais prejuízos com inadimplentes, mesmo que eles nunca se concretizem de fato.

Quando as bolsas de valores operam normalmente, as compras e vendas de ações são operadas a partir das perspectivas quanto à distribuição futura de parcelas dos lucros (dividendos) das empresas aos seus acionistas, havendo tendências de alta ou de queda nos preços das ações, sem grandes oscilações. No entanto, um ou outro acionista pode querer se desfazer de uma grande quantidade de ações, gerando certa especulação sobre os motivos daquela decisão. Sem compradores imediatos, o preço das ações ofertadas tende a cair e pode depreciar o conjunto acionário das empresas, explicitando que independente do desempenho da produção e do faturamento efetivo das empresas, o preço de suas ações pode subir ou descer por mera especulação na bolsa de valores.

A partir de 1971, a especulação com títulos de dívida e com ações das empresas ganharia uma motivação a mais, com a difusão em nível internacional dos chamados mercados secundários. Naquele ano, os Estados Unidos da América decidiram quebrar os acordos firmados no final da Segunda Guerra Mundial, os quais mantinham as taxas de câmbio de todos os países em paridade fixa com o dólar, sob o compromisso estadunidense de manter a conversibilidade direta de sua moeda com o ouro.

Com a quebra do padrão monetário internacional, as taxas de câmbio passaram a oscilar gerando nova onda para a especulação globalizada. A partir dali os títulos primários, onde se firmavam os contratos públicos e privados de empréstimo, ou as opções de compra e de aluguéis, juntamente com o conjunto das ações das empresas, passaram a lastrear uma série de apostas sobre preços no futuro, numa proporção gigantesca.

Surgiam, assim, os chamados títulos derivativos negociados nos mercados secundários. São títulos que derivam de títulos primários de dívida e de ações, para operar uma transação especulativa, normalmente vinculada a apostas sobre a variação futura de preços das mercadorias e serviços, das taxas de câmbio ou das taxas de juros praticadas em vários países. Surge daí o termo ciranda especulativa, um verdadeiro cassino mundial, que reproduz riqueza fictícia de apostas numa escala gigantesca, como forma de acumulação parasitária, cada vez mais distante da produção de riqueza real. Estimam-se que, atualmente, o volume de títulos derivativos é 10 vezes maior que o PIB mundial.

Essa nova etapa da especulação mundializada tem sido consequência do aprofundamento de uma longa crise de superprodução de capital. Com isso, parcelas cada vez maiores do capital excedente passaram a ser usadas em apostas sobre as cotações futuras, em busca de alternativas às dificuldades de aplicação produtiva razoavelmente rentável. Apesar de resultarem de simples apostas sobre o futuro, os títulos derivativos são reconhecidos socialmente como riqueza real e dão poder de comando aos seus possuidores sobre operações econômicas no presente.

Especulação com títulos verdes

Nesse clima global de domínio da especulação parasitária, não tardou para os títulos derivativos se tornarem oportunidade de acumulação envolvendo os debates mundiais sobre o colapso ambiental. Diante das dificuldades de controle do desmatamento e das emissões de poluentes, em nível global, as tais cúpulas internacionais acabaram se dobrando aos apelos por mercantilização da proteção da natureza, criando os tais pagamentos por serviços ambientais (PSA).

A proposta tem sido difundir e consolidar a ideia da possibilidade de compensação de danos ambientais. Assim, empresas e institutos privados desenvolvem formas sofisticadas de transformar, em termos de preços de mercado, tanto a emissão de poluentes quanto a prestação de serviços ambientais, com o intuito de mostrar que é possível quantificar e compensar a depredação ecológica produzida pelos projetos de expansão industrial.

A criatividade em neologismos se destaca com a ideia de empresas poluidoras-pagadoras e se desdobra em tornar possível a mensuração, via preço de mercado, do volume de biodiversidade devastada e compensá-lo com alguma forma de projeto de preservação em um outro ecossistema mercantilizado.

Grandes empresas podem participar desses programas de PSA a partir da expansão de seus tradicionais projetos de plantações de árvores em regime de monocultura. De devastadoras da natureza elas se tornam promotoras de compensações ambientais, a partir dos projetos de fixação de carbono nas árvores plantadas. Isso tem sido possível na medida em que o Estado se afasta da promoção das políticas ambientais, deixando a regulação sob o comando de empresas e institutos privados, que passam a atuar como certificadores e mensuradores das parcelas a serem pagas ao longo do período de realização dos tais projetos de serviços ambientais, bem como pela avaliação dos resultados.

Como esses acordos de PSA são formalizados em contratos de longo prazo, eles geram o direito a recebíveis no futuro, ou seja, direito a pagamentos no futuro pela prestação de serviços ambientais ao longo da execução dos projetos. Assim, grandes volumes de recebíveis por serviços ambientais se tornam a base de lastro para a emissão de títulos derivativos, negociados a partir de apostas sobre taxas de câmbio, taxas de juros e, especialmente sobre os preços que podem alcançar as próprias mercadorias produzidas como resultado de seus projetos de compensação.

Considerações finais

Parece haver pelo menos um objetivo mais explícito nas novas táticas dessas grandes empresas. Procuram a melhor adequação aos acordos de cúpulas internacionais, em torno de soluções mercantis para as crises que se acumulam nessa etapa, aproveitando o momento de tensão mundial, para resolver problemas estruturais de financiamento, sejam aqueles vinculados a dívidas antigas, sejam os exigidos para a expansão de suas atividades produtivas. Agregam-se, assim, às antigas linhas de crédito, que exigiam metas de qualidade total na redução custos, novas abordagens de captação, vinculadas à produção e à reprodução de recebíveis no longo prazo, por meio de contratos de PSA e de compromissos de redução na emissão de poluentes.

As operações primárias na emissão dos chamados títulos verdes são abastecidas pela difusão dos fluxos criados pelo reconhecimento oficial do conceito mercantil de empresas poluidoras-pagadoras. Ao mesmo tempo, os circuitos de apostas nos mercados de títulos derivativos encontram, na base dos contratos de PSA e de recebíveis semelhantes, mais um impulso a sua reprodução parasitária.

Dessa forma, não podemos nos surpreender diante da evidência de que grandes empresas produtoras de celulose, como a Suzano, estejam operando e se expandindo com uma carteira de passivos de tão alto risco. Esta é a dura e crua realidade que domina o mundo dos grandes negócios em todo o mundo capitalista, cada vez mais sem qualquer controle das autoridades governamentais.

Sem as simplificações usuais, é possível perceber que há muito o endividamento público e privado se tornou oportunidade para a criação de instrumentos cada vez mais criativos para a especulação parasitária. O risco de um colapso econômico sem precedentes tem se mostrado iminente, mas, essa tem sido a realidade ante à incapacidade generalizada do capital em superar a grande depressão que se aprofundou neste início de século XXI. Enquanto isso, os compromissos assumidos com a tal sustentabilidade formal das grandes empresas vão se acumulando, sob a regulação de instituições criadas e contratadas pelas próprias relações mercantis predatórias, o que põe em maior risco ainda a continuidade da vida no planeta.

Helder Gomes, Brasil