Análise crítica do trabalho “A silvicultura e a água: Ciência, Dogmas, Desafios” (Walter de Paula Lima, 2010)

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Recentemente foi divulgado um novo trabalho do Professor Walter de Paula Lima (WPL) intitulado “A silvicultura e a água: Ciência, Dogmas, Desafios” (1),  que parece questionar a experiência de inúmeras comunidades que tiveram seus recursos hídricos afetados devido à instalação de grandes monoculturas de eucaliptos.

No entanto, na realidade o trabalho de WPL contribui com uma série de elementos que- apesar dos objetivos do autor- confirmam de fato o que as comunidades já sabem: que as grandes monoculturas de eucaliptos em efeito afetam a água.

O que faz mais interessante a leitura do trabalho de WPL é que parece ser a obra de um hábil prestidigitador, capaz de fazer com a ciência diga o oposto ao que a ciência diz, e de levar o leitor a acreditar que obviamente não compreendeu o que acaba de ler.

Já o título do trabalho é um bom exemplo do anterior, porque ao que parece há uma ciência (por ele representada) que se contrapõe aos dogmas (representados por todos aqueles que sustentamos que as plantações impactam sobre a água) e que no final haverá uma resposta clara (apresentada por ele) para resolver os desafios decorrentes das plantações.

O fato de as grandes monoculturas de árvores terem dado lugar a uma oposição generalizada no mundo todo é definido por WPL como um raro “paradoxo", e nesse sentido ele diz:

“Paradoxalmente, o advento de plantios florestais – e principalmente a expansão mais recente destas áreas com plantações florestais, devido ao crescimento de sua importância econômica – vieram, no mundo todo, acompanhadas por uma opinião pública generalizada de que elas, ao contrário das florestas naturais, seriam prejudiciais aos recursos hídricos.”

A não ser que WPL considere que tal opinião obedece a uma confabulação ou conspiração global contra o eucalipto, seria lógico tentar identificar as causas de tal “opinião pública generalizada”. No entanto, limita-se a classificá-la como “crença” (e, portanto, um dogma) e a ridiculariza misturando causas reais e fictícias para tal oposição:

“E nessa crença generalizada há de tudo, além do estigma da palavra “eucalipto”: “as plantações florestais consomem muita água” [real], “secam o solo” [real], “suas raízes furam o lençol freático” [fictícia], “inibem a formação de nuvens” [fictícia], “desestabilizam o ciclo hidrológico” [real], etc.

E obviamente esquece mencionar as principais causas esgrimidas pelas comunidades locais afetadas pelas plantações: que secam córregos, riachos, poços, zonas úmidas e afetam assim seus meios de vida.

WPL opina depois sobre as florestas e as plantações, levando a que o leitor pense que é falso que as florestas conservem a água e que é falso que as plantações a afetem:

“No caso das crenças do passado, a preocupação que nutria as controvérsias residia no gradual desaparecimento das florestas para dar lugar ao desenvolvimento. Era preciso associar um aliado forte para ajudar a frear o desmatamento, e o possível efeito negativo do desaparecimento das florestas sobre a água, sem dúvida, não poderia deixar de ser considerado pela sociedade, devido à importância vital da água. Quanto mais florestas, mais água, era o mote”.

Ou seja que os impactos do desmatamento sobre a água seriam simples "crenças do passado", originadas em uma espécie de estratégia publicitária de alguns atores (não identificados por WPL) para deter o desmatamento.

Em contradição com o anterior, mais à frente WPL nos informa- quanto às florestas da Austrália- que “isso explica, também, a reconhecida estabilidade hidrológica de microbacias protegidas com florestas naturais não perturbadas”. Em outra parte afirma que “o desmatamento e a desfiguração da paisagem, são fatores negativos para a manutenção dos recursos hídricos”.

Ou seja, que as “crenças do passado” são na realidade científicas!

“No caso das plantações florestais a polêmica, que é recorrente e está longe de ser resolvida, se acirra, não com o desaparecimento, mas sim com a expansão destas áreas. Só que, nesse caso, a crença é que quanto mais áreas com plantações florestais, menos água”.

Isto é, que os impactos das plantações sobre a água são também simples "crenças".

A contradição aqui é ainda mais clara e há abundantes referências apresentadas pelo próprio WPL quanto aos impactos das plantações sobre a água. O autor recorre a “alguns princípios já estabelecidos na ciência Hidrologia Florestal”, dizendo que “podem-se aceitar” alguns princípios estabelecidos por Calder (2007), entre os que salienta o seguinte:

“Plantações florestais com espécies de rápido crescimento apresentam, também, maior consumo de água em comparação com vegetação de menor porte, bem como com floresta natural ou plantações com espécies de crescimento lento. Como resultado, em algumas situações pode-se observar redução significativa do deflúvio na escala de microbacias”.

Ou seja, que aceita que as plantações questionadas no mundo todo (com espécies de rápido crescimento como o eucalipto) são de fato grandes consumidoras de água e “em algumas situações pode-se observar redução significativa do deflúvio na escala de microbacias”. E isto, dito por WPL não é obviamente uma “crença”, mas uma verdade científica.

Outro elemento apresentado por Calder e que é subscrito por WPL diz:

“Da mesma forma, tem sido observado que o percentual de ocupação da área da microbacia pelas plantações florestais é um fator muito importante para a ocorrência ou não desses efeitos. De fato, com base em alguns trabalhos em microbacias experimentais, os resultados mostram que não há alteração no deflúvio se as plantações florestais ocupam apenas até 20% da área da microbacia hidrográfica”.

A conclusão óbvia- à qual com certeza não chega WPL- é que se essas plantações ocupam mais de 20% da microbacia hidrográfica provocarão uma alteração no deflúvio. Isto é, que impactarão sobre a água, tal como foi constatado pelas populações locais em muitos países onde as plantações têm ocupado microbacias hidrográficas inteiras.

Nada disso impede que mais à frente passe à defesa aberta das plantações, sob um título que já diz tudo: “O Mito em Torno do Eucalipto”.

WPL afirma que “No mundo todo, as plantações florestais sempre estiveram na mira de discussões acaloradas, relacionadas principalmente com seus possíveis impactos sobre os recursos hídricos, como resultado da percepção genérica de um consumo exagerado de água”.

Isso é simplesmente falso. O debate sobre as plantações florestais não estevesempre no alvo de discussões acaloradas. A instalação de plantações florestais é um fenômeno de muitos séculos e não deu lugar a nenhum tipo de debate vinculado à água. Em todo caso, o debate esteve em torno da apropriação de terras das comunidades locais para estabelecer nelas plantações (de coníferas, carvalhos, teca, etc.)

O verdadeiro debate vinculado a plantações e água surge justamente com a instalação de grandes plantacões de eucalipto e o caso melhor documentado é o da Índia na década de 1980 (Shiva & Bandyopadhyay, 1987 - (2) ). Neste caso concreto não se tratou de lutas por “seus possíveis impactos sobre os recursos hídricos”, mas de lutas sociais (e não simples “discussões acaloradas”) causadas pelos impactosconstatados sobre a água.

“Paradoxalmente”, é neste capítulo sobre “O Mito em Torno do Eucalipto” onde WPL apresenta mais elementos probatórios sobre os impactos das plantações sobre a água.

É claro que primeiramente tenta confundir o leitor dizendo que “esses autores [Whitehead & Beadle 2004] são categóricos quando concluem que o eucalipto é uma espécie florestal absolutamente normal, que não consome mais água por unidade de biomassa produzida do que qualquer outra espécie florestal, apresentando, inclusive, uma melhor eficiência do uso da água”.

Uma leitura rápida do anterior pode levar o leitor desapercebido a concluir que o eucalipto é uma árvore normal e que ao ser mais eficiente no uso da água não consome mais água do que outras espécies. Conclusão falsa. O que WPL diz na realidade é que:

1) “Não consome mais água por unidade de biomassa produzida” [ênfase acrescentada]. Ou seja, que para produzir 1 quilo de biomassa (madeira) consome mais ou menos a mesma quantidade de água que outras espécies. No entanto, não explica que se produz mais biomassa por ano que outras espécies (coisa que efetivamente faz por ser de muito rápido crescimento), consumirá necessariamente mais água. Isto é, que ao focalizar no consumo de água por unidade de biomassa produzida [ênfase acrescentada], WPL está ocultando ao leitor o fato de que efetivamente consome muita mais água que outras espécies.

2) “Apresentando, inclusive, uma melhor eficiência do uso da água” [ênfase acrescentada]. Isto também leva a confundir o leitor. O que isso significa é simplesmente que conforme WPL o eucalipto utiliza menos água que outras espécies para produzir 1 kg de biomassa. Se bem que duvidamos que tenha sido comprovado cientificamente que todas as cerca de 650 espécies de eucalipto existentes no mundo tenham essa qualidade, o certo é que é totalmente irrelevante para o que realmente interessa discutir: se os eucaliptos plantados em monoculturas consomem ou não mais água que outras espécies.

3) Por outro lado, o eucalipto que é plantado hoje não é uma “espécie absolutamente normal”. Para começar, o eucalipto não é uma “espécie” senão que é um gênero de árvores, que inclui a mais de 600 espécies. As espécies de eucalipto que são usadas em grandes monoculturas no mundo todo são- entre outras coisas- espécies de rápido crescimento. Entre essas espécies, tem sido realizado durante décadas um processo de seleção dos genótipos de crescimento mais rápido. Os exemplares de crescimento mais rápido de tais genótipos (ou híbridos entre duas espécies de crescimento muito rápido) foram clonados. E isso é o que hoje é plantado. Não eucaliptos "normais", mas verdadeiras fábricas de produzir madeira no prazo mais curto possível. Para isso precisam necessariamente de grandes quantidades de água.

Além do antes explicado, WPL apresenta mais à frente a seguinte informação, que confirma o que todos nós sabemos: que as monoculturas de eucalipto de rápido crescimento impactam sobre a água. Diz: “existe a tendência do deflúvio anual da microbacia voltar às condições de equilíbrio original à medida que a plantação florestal avança em idade. Guardadas as devidas proporções, isso pode significar, em termos práticos, que um período de rotação (idade do corte da plantação florestal) maior do que o que se pratica atualmente no manejo de plantações florestais para fins de abastecimento industrial nas nossas condições poderia, eventualmente, permitir tempo suficiente para que o balanço hídrico da microbacia restabelecesse seu equilíbrio original”.

Uma jóia. Sem falar claramente, o que está dizendo é que as plantações com período de rotação curto (como "se pratica atualmente”) impactam sobre o equilíbrio hidrológico da microbacia onde estão instaladas. Isso é devido ao crescimento muito rápido durante esses anos, que não permitem “tempo suficiente para que o balanço hídrico da microbacia restabelecesse seu equilíbrio original”. Ou seja, que as monoculturas de eucaliptos atuais- em particular as destinadas à celulose- afetam o equilíbrio hídrico das microbacias.

Mais à frente, WPL faz outra contribuição bem interessante ao dizer que Brown et al. (2007), “observaram também que essa diminuição do deflúvio seria menos significativa se os plantios ficassem localizados o mais longe possível da rede de drenagem, ou seja, longe das áreas onde o lençol freático é mais superficial”.

Com isso é confirmado novamente o vivenciado por comunidades do mundo todo quanto aos impactos das plantações sobre o lençol freático superficial nos arredores das plantações.

E caso faltassem mais argumentos científicos, a citação a seguir o diz tudo:
“O trabalho de revisão de FARLEY et al. (2005), por outro lado, é muito esclarecedor no que diz respeito ao entendimento de como as interações entre o manejo florestal com outros fatores do meio podem resultar em impactos hidrológicos maiores ou menores. Analisando resultados de 26 conjuntos de microbacias experimentais de várias partes do mundo, totalizando 504 observações, esses autores concluíram que:

• em regiões onde o deflúvio médio anual é menor do que 10% da precipitação anual, o riacho da microbacia pode secar como resultado do reflorestamento [ênfase acrescentada]. Por outro lado, onde o deflúvio médio anual é em torno de 30% da precipitação anual, a redução do deflúvio esperada é de cerca de 50% [ênfase acrescentada];
• a redução do deflúvio aumenta com o crescimento da plantação florestal, mas o balanço hídrico da microbacia tende a voltar ao equilíbrio pré-existente quando a plantação atinge idades mais avançadas” [ênfase acrescentada].

Conclui-se então que, de acordo com esses autores- citados sem nenhum tipo de questionamento por parte de WPL- os “mitos” sobre os impactos das monoculturas de eucalipto de rápido crescimento sobre a água são bem reais.

Chama poderosamente a atenção que depois de apresentar toda essa informação, WPL ouse fazer estas duas afirmações, que se contradizem com tudo o exposto anteriormente:

- “O que essa polêmica reivindica, na realidade, não é a necessidade de se fazer mais pesquisas para demonstrar que o consumo de água pelas plantações florestais não difere muito, ou quase nada, do consumo de florestas naturais. Essa informação já existe, embora não tenha aplacado a inquietude”.

- “Quanto é o consumo de água pelas plantações florestais? Já vimos que a resposta para esta pergunta já existe – que não difere muito do consumo de florestas naturais ...”.

Depois disso, o leitor fica perplexo e acredita que não entendeu absolutamente nada de tudo o que leu até o momento. Não. Isso é simplesmente o resultado da arte do hábil prestidigitador, que a seguir volta a se contradizer:

“Não há nada de errado em se fazer plantações florestais, nem tampouco no fato de que elas necessitam de bastante água [ênfase acrescentada]. O que devemos verificar, todavia, é se esse consumo de água para atender a produção florestal está sendo hidrossolidário com as outras demandas de água”. Bastaria com que WPL visitasse  alguma comunidade afetada pelas plantações para que percebesse que em muitos casos “a produção florestal não está sendo hidrossolidária com as outras demandas de água”, mas está sendo extremamente egoísta ao privar as pessoas de seus recursos hídricos.

A conclusão de tudo o anteriormente exposto é bem curiosa, em particular porque WPL diz que representa a Ciência:
1)         WPL está totalmente de acordo com que as “plantações florestais de larga escala”- tal como as define (corretamente) apenas uma vez em seu trabalho- impactam sobre a água e,
2)         WPL está totalmente de acordo com que esses impactos são simplesmente um mito.

Mesmo que pareça incrível, tal contradição não é obstáculo para que, sem apresentar nenhum argumento, WPL tome partido pela segunda opção (o mito). Nesse sentido, no parágrafo final de seu trabalho diz:

“Dogmas, ideologia e disputas insólitas não fazem parte da solução, sendo apenas responsáveis pela falsa noção de que as plantações florestais são necessariamente maléficas para os recursos hídricos e pela perpetuação do folclore em torno do eucalipto”.

O parágrafo anterior visa esconder e deformar a realidade. As “disputas” (que não têm nada de "insólitas") não se relacionam com a "falsa noção" de que "as plantações florestais são necessariamente maléficas para os recursos hídricos”, mas com o fato bem real de que as grandes monoculturas de árvores têm impactado sobre os recursos hídricos de inúmeras comunidades ao redor do mundo. Isso ocorreu em todos os lugares onde foram estabelecidas grandes monoculturas de árvores de rápido crescimento, do Chile ao Uruguai, da Colômbia ao Equador, na África do Sul, Suazilândia, Tailândia, Espanha, etc. No caso do Brasil, seria recomendável que WPL visitasse algumas comunidades afetadas em Espírito Santo, Extremo sul da Bahia e Minas Gerais e ouvisse (despojado de seus dogmas e ideologia) sua dolorosa experiência a esse respeito. Talvez assim deixasse de ridicularizar um assunto tão grave para as comunidades que sofrem os impactos das plantações, referindo-se ao assunto como uma simples "perpetuação do folclore em torno do eucalipto".

No entanto, esse é o ator que WPL escolhe ignorar: as comunidades. Os moradores locais não se mobilizam em torno de “dogmas” ou “ideologias” (como certamente o fazem WPL e um setor da profissão florestal), mas reagem diante da perda de seus recursos, entre os quais está a água. Nesse sentido, é preciso salientar que as comunidades não só têm se levantado contra as plantações em larga escala porque secam seus córregos e fontes, como também porque acarretam uma longa lista de impactos ambientais, sociais, culturais e econômicos, que afetam profundamente suas vidas.

No tocante à água, WPL sabe (o diz em seu trabalho) que é possível que em alguns casos denunciados pelas comunidades seja certo que “o riacho da microbacia” tenha secado “como resultado do reflorestamento” ou que em outras microbacias tenha ocorrido uma “alteração no deflúvio” se as plantações ocupam mais de “20% da área da microbacia hidrográfica”. Nesses casos, o papel de um verdadeiro cientista consistiria em ficar do lado das comunidades, provando que o que os moradores estão dizendo é verdade e que sua experiência empírica tem uma explicação científica. Infelizmente, as comunidades indígenas, quilombolas e camponesas (que foram aquelas que mais denunciaram os impactos das plantações) não aparecem mencionadas nem uma única vez no trabalho de WPL.

Por tudo o anteriormente exposto, é possível concluir que o trabalho de WPL serve claramente aos interesses do setor florestal e celulósico que integra o “Diálogo Florestal” (3) (organização responsável pela publicação de seu trabalho), porque serve como ferramenta para debilitar as lutas locais contra os impactos dessas mesmas empresas. É por isso que consideramos importante apresentar elementos para provar a falta de objetividade deste trabalho e para salientar os elementos que apresenta que confirmam o que denunciam as comunidades locais: que as grandes monoculturas de eucaliptos impactam efetivamente sobre os recursos hídricos. Esperamos ter cumprido com esse objetivo.

Ricardo Carrere, Coordenador Internacional do WRM, Outubro 2010

(1) Lima, Walter de Paula (2010).- A silvicultura e a água : ciência, dogmas, desafios. Rio de Janeiro : Instituto BioAtlântica, Diálogo Florestal (Cadernos do Diálogo ; v. 01).
http://www.ipef.br/hidrologia/cadernos-do-dialogo-volume-1-agua-e-silvicultura.pdf

(2) Shiva, Vandana & Bandyopadhyay, J. (1987) Ecological Audit of Eucalyptus Cultivation, Dehra Dun: Research Foundation for Science and Ecology

(3) Do qual fazem parte, entre outras, as empresas Fibria (Aracruz), Veracel, Kablin, Stora Enso, Masisa, Rigesa, Suzano, Cenibra e a Associação Brasileira de Celulose e Papel.