O antes, o durante e o porvir da vitória pela defesa da vida no Panamá

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Photo: Radio Temblor.

A mobilização massiva e permanente do povo panamenho contra a mineração em uma parte ambientalmente relevante e sensível de seu território culminou com a declaração de inconstitucionalidade do contrato-lei 406. O contrato autorizava a operação da mineradora Cobre Panamá, subsidiária de uma das maiores empresas de extração desse mineral do planeta, a First Quantum Minerals FQM, com sede em Toronto, no Canadá. Entre outras coisas, esse desfecho implica a cessação das operações e o fechamento da mina.

Sem dúvida, o resultado abre um importante precedente para milhares de processos de defesa territorial em todo o planeta, confirmando que é possível conquistar a vitória, mesmo contra grandes empresas consideradas poderosas.

No entanto, isso não foi resultado das ações e mobilizações que ocorreram durante mais de cinco semanas, entre outubro e novembro de 2023. Os antecedentes têm mais de 25 anos, por isso é pertinente analisar o processo em retrospectiva.

O que aconteceu antes?

O problema nos remete ao início da década de 1990, quando começaram a prospecção e os estudos para a exploração de minérios e, em paralelo, as resistências por parte de comunidades e organizações preocupadas com os impactos que sabiam que poderiam ocorrer. Em 1996, a mineradora Petaquillo recebeu a concessão para extração de ouro, depois ampliada para exploração de cobre, e que acabou sendo transferida à Minera Panamá, subsidiária da FQM.

Entre outros motivos, a preocupação foi motivada pela localização da mina no meio de territórios com elevada diversidade biológica. A Mesoamérica une duas imensas massas continentais que estiveram separadas em épocas geológicas anteriores, mas, com o surgimento desse território, ganharam uma ponte para a conexão e o intercâmbio de populações de plantas e animais. O ponto mais estreito está precisamente no Panamá, sendo uma espécie de funil onde se concentra grande parte da biodiversidade do subcontinente. Esse cenário também é território de povos indígenas, comunidades locais e camponesas. Ou seja, a diversidade não é alta apenas em termos biológicos, mas também em termos culturais.

A partir do que vinha acontecendo, teve início a organização social. Há cerca de 20 anos, existia a comissão pró-fechamento da Petaquillo. Naquela época, o envolvimento era menor, pois as comunidades tinham esperança em relação às promessas de desenvolvimento, emprego e bem-estar da mineradora. Evidentemente, como é comum ocorrer com empresas extrativas, essas promessas não foram cumpridas, gerando o descontentamento, a indignação e a mobilização das últimas semanas. Em 2012, pretendeu-se sancionar uma lei popularmente conhecida como “Lei Chorizo”, que buscava aprovar a mineração nas regiões administrativas panamenhas conhecidas como comarcas, desencadeando maior mobilização social. Quando se estava saindo da pandemia, o governo impôs o discurso de dinamizar a mineração para recuperar a economia do país, fazendo soar todos os alertas. Por isso, em maio de 2021, foi formado o Movimento Panamá Vale Mais Sem Mineração, com mais de 40 organizações, explica Damaris Sánchez, ativista ambiental da Fundiccep. Nesse mesmo ano, foi apresentada uma proposta de moratória sobre a mineração de metais, que não foi aceita, enquanto o governo continuava comprometido com o seu projeto.

Embora se tratasse, em princípio, de uma área menor, o projeto que acaba de ser interrompido cobria 12.955 hectares e estava localizado em três áreas protegidas: o Parque Nacional General de Divisão Omar Torrijos, o Parque Nacional Santa Fé e a área de Uso Múltiplo de Donoso. Essas áreas protegidas fazem parte do Corredor Biológico Mesoamericano (CBM), uma estratégia criada no início dos anos 2000 com objetivos como garantir a conectividade dos ecossistemas desde Darién, no Panamá, até a Selva Maia, no México. O CBM liga áreas protegidas para reduzir ameaças à biodiversidade, e procura gerar oportunidades econômicas e sociais para as populações, embora pareça não estar funcionando como esperado.

A mina está em operação na área desde 1997, embora com interrupções, entre outros motivos, devido aos múltiplos processos judiciais contra si. Apesar disso, tem causado graves impactos ambientais. As comunidades do entorno da mina apresentaram denúncias e solicitações ao Ministério do Meio Ambiente do Panamá a respeito de mudanças nas características dos corpos hídricos, sem conseguir nem ao menos uma inspeção. Em 2021, ocorreu o rompimento de uma tubulação, gerando descargas no Rio Pifá. (1)

No âmbito do Dia da Terra em 2022, o Movimento Panamá Vale Mais sem Mineração apresentou a análise de diversos relatórios do Ministério do Meio Ambiente, nos quais o próprio órgão informa sobre múltiplos impactos e descumprimentos por parte do projeto Cobre Panamá.  (2) Entre as conclusões está o fato de a empresa lançar resíduos em corpos hídricos sem autorização do Ministério, potencialmente envolvendo contaminantes perigosos, como metais pesados. Até então, essas violações se somavam a mais de 200 outras identificadas em relatórios anteriores, e a empresa tinha uma dívida com o Ministério que chegava a mais de 11 milhões de dólares.

Chamam especial atenção os impactos sobre a floresta e a cobertura vegetal, incluindo o desmatamento de 876 hectares além da superfície que havia sido autorizada, chegando a quase 3 mil hectares afetados pelo projeto. Soma-se a isso o não cumprimento dos compromissos de reflorestamento, que fazem parte do estudo de impacto ambiental (EIA). Nesse sentido, foram identificadas falhas no reflorestamento de 1.300 hectares entre 2012 e 2015. (3) Ressalta-se que o referido reflorestamento está incluído como medida de compensação pela destruição da vegetação, denominada “desmatamento autorizado”. Em 2016, o WRM visitou a área antes de ter início o projeto atual, alertando sobre o uso da compensação como estratégia para viabilizar a exploração mineira em áreas protegidas. (4) As promessas da empresa incluíam seguir as normas da Corporação Financeira Internacional, nas quais ela baseou seus planos de compensação pela perda de biodiversidade, dizendo em seu site que “está comprometida com manter um impacto positivo líquido sobre a biodiversidade e em ser líder mundial na gestão da biodiversidade”.

Em 2017, foi declarada a inconstitucionalidade da autorização do projeto de mineração, mas a decisão não foi publicada no Diário Oficial do Estado, o que a tornou nula. A publicação só ocorreu em 2022, e a resposta do atual governo foi iniciar a negociação de um novo contrato com a mineradora, como explica o líder comunitário e ativista Rubén Bernal.

O que aconteceu durante?

Em outubro de 2023, teve início a mobilização social, que foi notícia internacional por sua magnitude e pela repressão e a criminalização que enfrentou, mas também por seus desfechos e resultados.

O que estava em curso era a tentativa do governo e da mineradora de validar um contrato inconstitucional, supostamente corrigindo os erros do anterior e recorrendo a uma agressiva campanha publicitária que mostrava, em diversos meios de comunicação, supostos benefícios para a população. No entanto, os motivos da inconstitucionalidade permaneceram. Durante os debates na Assembleia, houve intervenções a favor e contra, mas um aspecto positivo se destacou: as comunidades de todo o país tinham muita consciência do que estava acontecendo. Certamente por medo dessa situação, como explica Damaris Sanchéz, o processo foi interrompido e se organizaram visitas privadas à área do projeto. Ao se retomarem os debates, o público foi impedido de entrar, e em apenas três dias, foi concluído todo o processo que deveria ter demorado muito mais tempo, culminando com a sanção do contrato-lei em 20 de outubro. Dessa vez, tomou-se o cuidado de publicá-lo no Diário Oficial.

Com bastante dificuldade, as organizações e os movimentos sociais obtiveram e estudaram o texto do contrato e apresentaram seus problemas à sociedade panamenha, incluindo extensão do prazo por 60 anos, proibição de passagem pelo espaço aéreo do projeto, ampliação da concessão em 5 mil hectares, possibilidade de exploração não só de cobre, mas de ouro e outros materiais, proibição de mobilização da população – razões pelas quais elas acabaram considerando o projeto como um enclave colonial.

Enquanto isso, a juventude da Cidade do Panamá dinamizou a resistência, cumprindo um papel fundamental na vitória. Entre suas ações está o cerco estabelecido à sede da assembleia, exigindo que o povo fosse ouvido, o que serviu de pretexto para desencadear a repressão. Um dos jovens perdeu um olho devido à ação de agentes do Estado, aumentando a indignação da população, que já sofria com o alto custo de vida no país. No dia 23 de outubro, as pessoas foram às ruas, aos campos, às estradas e até ao mar, sem parar de se manifestar e se mobilizar até 28 de novembro, quando o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que o contrato-lei era inconstitucional.

A primeira semana, até 29 de outubro, foi fundamental. O presidente fez discursos, ameaçou judicializar a questão, propondo até um referendo, ao qual o povo respondeu que já estava nas ruas manifestando sua posição e sua decisão. A reação popular foi aumentar a resistência, que paralisou não só a capital, mas todas as principais atividades do país, e até mesmo a Rodovia Pan-Americana, principal estrada do Panamá, foi bloqueada.

A resistência assumiu diversas formas, como passeatas, vigílias e bloqueios, os barqueiros da zona portuária onde a mineradora operava atravessaram seus barcos para impedir que a empresa retirasse os minerais. Médicos e professores aderiram, escolas interromperam as aulas. As pessoas que moram em Colón e nos bairros de Donoso e Omar Torrijos, bem como uma parte de Veraguas, que em outros momentos não participaram do processo de resistência pelas esperanças de trabalho e bem-estar, naquele momento assumiram uma posição e uma resistência mais firmes. Estima-se que, em alguns dias, mais de 250 mil pessoas tenham se mobilizado. O país inteiro foi parado até que a vontade popular se tornasse efetiva.

Nem mesmo o rigor da repressão e da judicialização conseguiu afetar a mobilização, apesar de quatro pessoas terem sido assassinadas e mais de mil estarem registradas como detidas durante as manifestações.

A pressão e a vigilância sobre o Supremo Tribunal de Justiça foram impressionantes. Foi montado um acampamento ao redor da sua sede durante 12 dias, deixando evidente que seus membros estavam sendo observados e que se aguardava sua decisão. A mensagem era clara: se decidissem a favor da empresa, além da inconstitucionalidade, algo inesperado e com grande repercussão poderia acontecer nas ruas.

No dia 28 de novembro, o Tribunal decidiu que o contrato da Cobre Panamá é inconstitucional, legitimando a luta do povo nos campos, nos mares e nas ruas: 25 artigos do contrato eram contrários ao estipulado na constituição. As denúncias sobre o impacto ambiental foram levadas em consideração pelo Tribunal, assim como a falta de licitações públicas e de consulta aos cidadãos. A repercussão da decisão chega até mesmo à ordem de fechamento da mina, uma decisão inédita no país centro-americano.

Os desafios e o porvir

Por meio da Cobre Panamá, a mineradora afirmou que “a transparência e o cumprimento da lei sempre foram fundamentais para o desenvolvimento de suas operações, e a empresa permanece aberta ao diálogo construtivo para chegar a consensos.” O seguinte passo no que a empresa entende por “diálogo construtivo” foi a First Quantum processar o Panamá perante a Corte Internacional de Arbitragem da CCI. (5)

As divisões das comunidades, alimentadas por setores específicos, deixam um desafio de reconstruir o tecido social em alguns lugares. Apesar disso, a avaliação feita pela população é mais do que positiva.

A vitória do povo panamenho é um exemplo para todos aqueles que defendem as florestas, os territórios e a dignidade dos povos que os habitam, além de ser uma inspiração para as lutas e resistências em curso em todo o planeta.

O que aconteceu representa uma virada na história política e participativa do Panamá. A indiferença foi superada, quem não costumava participar se envolveu completamente no processo descrito, a comunicação foi de natureza popular, marcando a autonomia em relação aos meios de comunicação tradicionais e empresariais.

A luta continua no futuro, para que a mineração seja proibida na constituição.

 

Secretariado Internacional do WRM

 

(1) Artigo “Panamá: un grito por la justicia ambiental y contra la minería metálica”, em Hora Cero, de Krissia Girón, disponível aqui.
(2) Declaração do Movimento Panamá Vale Mais sem Mineração, disponível aqui.
(3) Idem 2.
(4) Artigo “As compensações ambientais no Panamá: uma estratégia que abre áreas protegidas à mineração”, do Boletim do WRM, de Teresa Pérez, disponível aqui
(5) Artigo “Panama Protestors Defeat First Quantum Minerals’ Copper Mine”, em CorpWatch, de Paula Reisdorf, disponível aqui.