Livros escolares, lojas e subsídios: renegociação do consumo de papel

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Ashis Nandy, o psicólogo hindu e crítico social definiu o progresso como o “Crescimento na conscientização da opressão".

O que ele queria dizer, é que temos a sorte de que devido ao auge dos movimentos feministas hoje somos mais conscientes do que antigamente da forma em que as mulheres tem sido explotadas, de que devido às lutas anti-racistas, sabemos mais sobre muitas formas de opressão, que devido às longas horas que os eruditos radicais passam em suas bibliotecas, entendemos melhor a exploração econômica.

E quem poderia negar que o consumo de papel –materiais de escrita, livros- tem tido sua participação em tudo isso?

Mas isso quer dizer que podemos equiparar o consumo de papel com o progresso?

No mundo de hoje, é impossível até equiparar o consumo de papel com alfabetismo, sem falar do progresso. Os norte-americanos consomem atualmente 1,7 vezes mais papel per capita que os britânicos, quatro vezes mais que os malaios e 83 vezes mais que os hindus. Mas isso quer dizer que eles estão 83 vezes mais alfabetizados que os hindus, 4 vezes mais alfabetizados que os malaios e 1,7 vezes mais alfabetizados que os britânicos? Ou considere outro exemplo: o aumento num só ano no consumo per capita de papel entre 1993 e 1994 na Suécia foi o dobro que o total per capita na Indonésia.

Isso sugere que para entender o que é realmente o consumo de papel, precisamos ver qual é o uso do papel e as lutas de poder das quais os padrões atuais de seu
consumo tem desenvolvido.

Há dois séculos a máquina moderna de fazer papel foi inventada na França –por conta de seu próprio inventor, não para satisfazer a necessidade de livros escolares para as crianças, mas para tirar o poder aos artesãos do papel numa época de crise dos artesãos e colocá-lo nas mãos de financiadores e administradores de máquinas. Não foi até uma década depois, quando a invenção de polpas de madeira inaugurou a era do papel barato, que o consumo começou a aumentar e muitos dos usos do papel que conhecemos atualmente começaram a ser achados. Também foi nesse momento que a indústria de produção de papel começou a envolver-se com sua atual dinâmica de escala sempre crescente, intensidade de capital, florestamento industrial em grande escala e ciclos recorrentes de excesso de capacidade. Envolvida por essa dinâmica, a indústria tem estado constantemente enfeitiçada pelo que David Clark, um industrial europeu do papel tem chamado recentemente a “necessidade de criar nosso próprio crescimento [e] estimular a demanda".
Afortunadamente para a indústria, uma série de atores poderosos com suas próprias agendas políticas e econômicas têm ajudado continuamente.

Durante o século passado, por exemplo, os fabricantes de alimentos, sabão, medicinas e outros bens têm estado constantemente desenvolvendo ou redesenvolvendo uma invenção notável: a embalagem moderna de papel ou papelão.

Uma coisa que a embalagem fez foi eliminar pessoal das lojas; muitos fabricantes acharam, que se interpunha entre eles e os potenciais consumidores. Se você não tem que pedir a um vendedor os produtos, mas pode simplesmente pegá-los de uma prateleira e pagá-los, é geralmente bem mais fácil comprá-los. A embalagem de papel, com sus colorida publicidade, também fez possível uma explosão em compras impulsivas. Compras de coisas que a gente não sabia que queria até vê-las.

Não é de admirar então que durante o século 20, as lojas tenham se transformado progressivamente em armazéns de paquetes coloridos, embalados individualmente, que contêm seus próprios papos de venda e são constantemente reabastecidos por transporte de longa distância usando ainda outros tipos de embalagens de papel. O novo tipo de consumo estimulado pelos supermercados, logicamente, incrementou a demanda de ainda mais embalagens de papel.

Atualmente, de longe o maior uso de papel –mais de 40% da produção não é para livros, nem para jornais, nem para cadernos de crianças necessitadas, nem para os estudos dos estudantes universitários indigentes, mas para embalagens e envoltórios. Uma proporção crescente do resto é dedicado a publicidade, catálogos, mensagens não solicitadas, fraldas descartáveis e papel de computador. Ainda no Sul, onde há real escassez de materiais de leitura e escrita, o maior foco de marketing do papel não está em bens para ajudar ao alfabetismo, mas em fraldas descartáveis, lenços descartáveis e similares.

Uma outra parte da construção da demanda de papel tem consistido em simplesmente mover os efeitos da produção fora da vista. Para assegurar-se de que as pessoas afetadas pelas plantações de monoculturas estabelecidas para alimentar as fábricas de pasta de papel não sejam seus vizinhos e não tenham forma de contatar ou influenciar você para convencê-lo de repensar a fabricação do papel e os subsídios ao papel, a indústria se assegura que os fabricantes e consumidores não reflitam sobre o aumento no uso de papel.

Aproveitando a terra barata ou o trabalho forçado ou depósitos de resíduos subsidiados pelo governo, mover a produção ao redor do mundo ajuda a manter os preços ao consumidor baixos e fazer crescer o consumo. Dividir às pessoas de outras pessoas por linhas de poder, linhas de raça e linhas de gênero é parte do que compõe o consumo.

Portanto, quando os resíduos do fornecimento japonês da US Pacific Northwest de madeira barata para a indústria do papel começaram a escorregar-se, ameaçados pela oposição dos ambientalistas e escassez física, a empresa simplesmente expandiu suas operações para a Indonésia, Tailândia, Austrália, Papua Nova Guiné, Vietnã, Sibéria, Fiji, Chile, Brasil, Nova Zelândia, Hawaii e outras partes, deixando um trilho de destruição rural e conflito social ao redor da orla do Pacífico.

Portanto, a demanda de papel, como a demanda de muitos bens de consumo, não surge simplesmente dos desejos preexistentes das pessoas de necessidades básicas nem por progresso. Mas também não é imposto unilateralmente às pessoas pelas corporações e seus ajudantes. Sua construção é o resultado de dois séculos de luta social e de classes continuadas e manobras entre muito diferentes grupos sobre assuntos tão diversos quanto estrutura industrial, acesso a informação e significados culturais de tempo, trabalho e lazer.

Isso quer dizer que o consumo vai sofrer tantas mudanças no futuro quanto no passado. Não há razões para que essas mudanças, em vez de aumentar o consumo em formas ainda mais irracionais e degradantes, não possam levar o consumo de novo sob o controle humano.

A questão, logicamente, é como fazê-lo. Aqui deve haver muitas avenidas de experimentação. Mas todas elas estão destinadas a afirmar as conexões próximas entre políticas de consumo, produção e poder.

As companhias dedicam-se à política quando trabalham em manejar o consumo. Levar o consumo sob um controle mais democrático também requer de ação política.

Como mínimo isso significa revelar as conexões que as corporações às vezes trabalham para encobrir. Significa abrir canais de informação e contato entre os consumidores e as pessoas afetadas que têm sido blocados pelos interesses corporativos e as barreras culturais. Significa ajudar a fazer possível que os consumidores e as pessoas afetadas realizem uma nova e mais civilizada forma de negociação sobre o que o consumo razoável poderia significar –uma negociação menos dominada e medida pela indústria. Significa imaginar formas de fixar preços que levem em conta subsídios ocultos que causam repressão e violência ambiental.

Em resumo, o consumo é um assunto importante demais para ser deixado às corporações e aos próprios consumidores. As pessoas não são apenas consumidores mas atores políticos e cidadãos e com as partes políticas de seus cérebros é momento de ter novos pensamentos.

Não é suficiente dizer que “se quisermos mudanças é a nossa vez como consumidores individuais de alterar nossos hábitos de compra e introduzir novos estilos de vida”. Dizer isso pode ser uma boa forma de fazer sentir às pessoas culpadas ou confundidas. Mas qualquer ação que inspire, porque provavelmente surgirá da culpa pessoal em lugar de surgir do conhecimento ou da indignação perante a exploração ou da solidariedade com aqueles que estão sendo arrasados, provavelmente não será muito efetiva. Os problemas de consumo começam com você como indivíduo? E as soluções dependem apenas das escolhas que você faz como consumidor individual? Pensar isso provavelmente fará que você se retire da sociedade em vez de que se comprometa com ela.

Dizer que o consumo de papel pode ser manejado simplesmente com o instrumento impróprio de ficar na frente de uma prateleira de supermercado e decidir a marca que comprar –ou não comprar nada- é enganar-se. As etiquetas destes produtos podem pedir que você as compre, mas não podem dizer o que acontecerá se você compra ou não compra o produto.

Eles não permitirão que você negocie com as pessoas afetadas por sua produção e se a agência de publicidade da companhia ou firma de relações públicas têm feito seu trabalho, esconderá de você tanto quanto for possível a história política implicada no desenvolvimento do produto. Se quaisquer problemas requerem ação coletiva, é precisamente aqueles ocasionados pelo consumo moderno. As recriminações “de remorso” sobre o consumo individual provavelmente levarão a soluções “de tranqüilidade” superficiais, em vez de a uma ação social significativa.

Em vez de que os exagerados consumidores do Norte se culpem por ter ignorado os efeitos do consumo, é talvez o momento de que se unam com outras pessoas para neutralizar as estruturas que fazem isso. Em vez de dar por certo que seus interesses são necessariamente opostos àqueles de outras pessoas afastadas que produzem os bens ou matérias-primas que eles usam, talvez é o momento de assumir alguns projetos para ver quais as lutas em comum do Norte e do Sul. Em vez de assumir que o consumo crescente de tudo o que nos rodeia é destino biológico, é talvez o momento de trazer à tona mais do que Henry James chamou o “uso cívico da imaginação” em ver que outros futuros mais humanos poderiam as pessoas negociar para elas.

Por: Larry Lohmann, e-mail: larrylohmann@gn.apc.org (extraído de uma palestra sobre consumo dada em 1998 numa reunião de People and Planet, University of Warwick, Reino Unido)