O que são os direitos? Algumas lições da luta

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Em agosto de 1838, um jovem chamado Frederick Bailey escapou da escravidão em Baltimore, na costa leste dos Estados Unidos. Menos de três semanas depois, passando por sua nova cidade, New Bedford, no estado de Massachusetts, ele viu uma pilha de carvão que havia sido entregue em frente a uma casa. Bailey ofereceu seus serviços para levá-la com segurança até o local de armazenamento. Quando o trabalho terminou, a dona da casa colocou duas moedas de prata de cinquenta centavos de dólares na mão dele.

Mais de quatro décadas depois, Bailey (que já havia se tornado internacionalmente famoso como o orador, escritor e ativista antiescravidão Frederick Douglass) ainda mal conseguia expressar o êxtase que sentira ao receber aquele dinheiro. De repente, tinha entendido completamente: “Nenhum senhor podia tirar aquilo de mim – era meu – as minhas mãos eram minhas e poderiam ganhar mais da preciosa moeda”. (1)

Em outubro de 2016, em um auditório lotado na capital do Equador, Quito, um jovem líder indígena quéchua da Amazônia equatoriana se levantou para transmitir uma mensagem aparentemente diferente.

Com paciência, o jovem repetiu para o público (que estava discutindo estratégia anticapitalista), algo que seus irmãos e irmãs indígenas vinham tentando explicar havia anos. Os povos indígenas não só não se enxergavam como donos da terra, das árvores e dos rios; eles também não consideravam que seres humanos individuais fossem donos do que faziam na vida cotidiana. As mãos das pessoas não eram delas. Eram parte da pachamama. (2)

Mais de 175 anos, muitos milhares de quilômetros e diferentes heranças quase inimagináveis separam esses dois guerreiros da luta pela libertação nas Américas. O que também os separa são os direitos que buscavam. Para Douglass, conquistar o direito de vender sua própria mão de obra era um passo claro em direção à justiça. Para o ativista quéchua, era mais urgente afirmar o direito de defender seu povo contra a expansão precisamente daquele tipo de propriedade privada.

Mas será que esses dois ativistas são tão diferentes assim? Se pudessem se encontrar, eles não conseguiriam se entender?

Uma coisa sobre a qual eles podem concordar é o significado real dos direitos. Tanto para Douglass quanto para o ativista quéchua, os direitos não são uma herança única e harmoniosa com a qual todos os seres humanos nascem ou que esperam alcançar. Diferentes direitos prevalecem em diferentes momentos e em lugares diferentes. Lutar por um direito muitas vezes significa lutar contra outro, e as batalhas específicas são sempre apenas uma parte das lutas políticas mais amplas.

Para adquirir o direito de ser dono de sua própria mão de obra e cancelar o direito de seu antigo dono a ela, Douglass teve que fugir de Maryland para Massachusetts. Foram necessárias décadas de duras campanhas políticas e uma guerra civil para que outros conquistassem esse direito. E ainda hoje ele não está garantido, pois os Estados Unidos cada vez mais voltam a usar sua população carcerária enorme e desproporcionalmente negra como mão de obra escrava, enquanto novas formas de escravidão também estão em ascensão em outros lugares. (3)

Os esforços do líder quéchua para impedir que as atividades vitais de sua própria comunidade sejam transformadas em propriedade privada já o situam na vanguarda da oposição política contemporânea ao próprio capitalismo, o qual se baseia em infinitas tentativas de dividir a Terra em natureza desprovida do humano (recursos, serviços ecossistêmicos, áreas protegidas) e seres humanos desprovidos da natureza, cujo tempo de trabalho está disponível para venda.

Inevitavelmente, o destino da luta defendida pelo líder quéchua está vinculada à dos moradores urbanos não indígenas que hoje tentam reconstruir as defesas da classe trabalhadora contra esforços para torná-la cada vez mais dependente das empresas. Contestar a conversão da atividade humana em propriedade privada também é contestar o controle privado sobre a natureza extra-humana que a sustenta. No final das contas, questões florestais são sempre questões de trabalho. E as questões de trabalho frequentemente também são questões florestais. Não foi por coincidência que Karl Marx, o grande crítico moderno da criação do trabalho assalariado, começou sua carreira de ativista defendendo os bens comuns florestais da Alemanha, onde os moradores coletavam frutas silvestres e lenha, contra a apropriação indevida pelo Estado. (4) (5)

Frederick Douglass também teria entendido isso. Antes da escravidão que derrubou as florestas de norte a sul da América para abrir caminho para um mundo emergente de operários e donas de casa – uma escravidão da qual os escravos tentaram escapar com muita frequência, muitas vezes para as próprias florestas – eram os bens comuns e territórios criados também por povos indígenas, dos quais essas florestas surgiram. (6)

Portanto, não surpreende que, quando os intelectuais aparecem nas atuais comunidades rurais do Benin, da Índia ou de Samoa para exortá-las a afirmar teóricos “direitos humanos” reconhecidos por algum Estado ou órgão da ONU, muitos ativistas locais preferem mudar de assunto, para a defesa e a reconstrução de práticas concretas relacionadas aos bens comuns: compartilhamento comunal da terra, das sementes e do trabalho. (7) Eles sabem que a melhor defesa dos direitos de que precisam contra a invasão de direitos hostis reside no terreno acidentado das práticas “consuetudinárias” vivas, que envolvem terra, trabalho e preservação da floresta. Falar de direitos nada significa sem o cultivo de espaços necessários para defender a vida e os meios de subsistência.

As empresas privadas também sabem disso. Durante mais de um século, seus defensores têm feito um jogo político sujo para garantir que uma emenda constitucional dos Estados Unidos destinada a conceder direitos iguais aos escravos libertados após a Guerra Civil seja interpretada, na prática, a conceder às empresas os mesmos direitos. Agora, as empresas privadas estão agindo para garantir ainda mais desses direitos para si. Elas investem milhões em campanhas internacionais e negociações de tratados, e empregam uma violência ilimitada para substituir os bens comuns existentes por regimes que lhes confiram direitos jurídicos sobre sementes agrícolas, carbono florestal, propriedade intelectual e “lucros futuros” hipotéticos. Até o Facebook está mobilizando a tecnologia e a lei para tentar se atribuir direitos privados sobre nossas informações pessoais, que vão se sobrepor a quaisquer direitos anteriores que possamos ter achado que tínhamos sobre elas.

Feliz ou infelizmente, no entanto, nenhum direito é conquistado ou perdido para sempre. Muitos movimentos sociais estão atualmente fazendo campanhas para reverter os direitos de propriedade privada inventados durante eras anteriores do capitalismo. Ao mesmo tempo, eles estão lançando um olhar mais crítico a alguns direitos pelos quais eles próprios lutaram anteriormente.

Há 20 anos, por exemplo, pode ter tido sentido que os ativistas tentassem institucionalizar o direito ao “consentimento livre, prévio e informado” (CPLI) que permitisse às comunidades impedir invasões indesejadas de suas terras por projetos de desenvolvimento. Mas os tempos mudaram. Tendo perdido sua batalha para parar o FPIC de forma definitiva, as empresas o cooptaram. Hoje, ele se transformou, em grande parte, no que Alexander Dunlap chama de “armadilha burocrática” que empresas e governos usam para desviar reivindicações pela tomada democrática de decisões. (8) Talvez seja hora de os ativistas também mudarem de estratégia.

Assim sendo, é importante não fetichizar os direitos nem permitir que eles nos distraiam de questões mais amplas. Em dezembro de 2016, um líder indígena karen, do distrito de Mae Chaem, norte da Tailândia, lembrou que, quando membros do governo chegaram à sua aldeia para propor um projeto que mediria e conservaria o carbono da floresta, eles não disseram absolutamente nada sobre o significado real do projeto: criar direitos de poluir, que o Departamento Florestal poderia algum dia vir a vender para indústrias no exterior. Em vez disso, a conversa foi sobre o que os funcionários descreveram – em inglês incompreensível – como “proteções” para os moradores locais. Nessa atmosfera, fica impossível discutir o que realmente importa.

Tudo isso sugere que antes de receber de braços abertos o especialista branco (ou marrom) que entra na comunidade florestal dizendo que a chave para uma luta bem sucedida é “proteger seus direitos” (9) ou adotar uma “abordagem baseada em direitos”, pode ser prudente fazer algumas perguntas – o mais educadamente possível, é claro.

Perguntas como: “quais direitos?” e “como esses direitos vão mudar as coisas?”. Além de: “o que mais você está vendendo?”

Larry Lohmann, larrylohmann [at] gn.apc.org

The Corner House, http://www.thecornerhouse.org.uk

(1) Frederick Douglass, Life and Times of Frederick Douglass, Boston, 1893, disponível gratuitamente em book4you.org/dl/1066271/17bead.

(2) Deusa-mãe cultuada pelos povos indígenas dos Andes.

(3) Ava DuVernay, 13th, vídeo disponível em http://123hulu.com/watch/qd7Qy1xK-13th.html.

(4) Peter Linebaugh, Stop, Thief! The Commons, Enclosures, and Resistance, Oakland, 2014, disponível gratuitamente em https://libcom.org/library/stop-thief-commons-enclosures-resistance.

(5) Peter Linebaugh, The Magna Carta Manifesto: Liberty and Commons for All, Berkeley, 2008, disponível gratuitamente em http://provisionaluniversity.files.wordpress.com/2012/12/peter-linebaugh-the-magna-carta-manifesto-liberties-and-commons-for-all-2008.pdf.

(6) Peter Linebaugh e Marcus Rediker, The Many-Headed Hydra: Sailors, Slaves, Commoners and the Hidden History of the Revolutionary Atlantic, Boston, 2002, disponível gratuitamente em https://libcom.org/library/many-headed-hydra-peter-linebaugh-marcus-rediker.

(7) GRAIN, “What’s Wrong with ‘Rights’?”, Seedling, outubro de 2007, disponível gratuitamente em https://www.grain.org/article/entries/627-october-2007.pdf.

(8) Alexander Dunlap, “‘A Bureaucratic Trap:’ Free, Prior and Informed Consent (FPIC) e Wind Energy Development in Juchitán, Mexico,” Capitalism Nature Socialism, junho de 2017.

(9) The World Bank, Land Tenure Policy: Securing Rights to Reduce Poverty and Promote Rural Growth, Washington, 2011, http://documents.worldbank.org/curated/en/437601468331908360/pdf/831990WP0LandT00Box379886B00PUBLIC0.pdf ; The Munden Project, “IAN: Managing Tenure Risk”, 2016, http://rightsandresources.org/wp-content/uploads/RRI_IAN_Managing-Tenure-Risk.pdf e “The Financial Risks of Insecure Land Tenure: An Investment View”, dezembro de 2012, http://rightsandresources.org/wp-content/uploads/2014/01/doc_5715.pdf (recomendando que empresas extrativas e outras apoiem políticas para “garantir os direitos à terra dos ocupantes históricos” como uma maneira melhor para minimizar o risco financeiro do que as estratégias clássicas de coerção e indenizações).