Apesar dos 17 mil quilômetros que separam o Brasil da Indonésia, os dois países têm muito em comum, como alguns dos maiores remanescentes de florestas tropicais do mundo. Também compartilham uma semelhança específica: em algum momento, durante a era pós-colonial, seus governantes tiveram a ideia de construir uma nova capital. Enquanto os governantes brasileiros colocaram a ideia em prática há cerca de 60 anos, erigindo Brasília, as obras da nova capital da Indonésia estão em andamento. Em 2019, o parlamento nacional começou a colocar a ideia em prática ao aprovar sua construção na ilha de Kalimantan. Que paralelos podem ser traçados entre os dois projetos e, mais importante, que lições podem ser aprendidas para as lutas sociais na Indonésia e no Brasil?
Uma nova capital: o argumento enganoso de romper com o colonialismo
No Brasil, a ideia de construir uma nova capital existe desde a independência do país em relação a Portugal, em 1822. As elites pós-coloniais argumentavam, entre outras coisas, que o Rio de Janeiro, capital desde 1763, era um símbolo da influência dos colonizadores e que uma nova capital marcaria uma ruptura com esse passado. Também afirmavam que estabelecer a capital no centro do país fortaleceria a unidade nacional e traria progresso e desenvolvimento a toda uma nação cuja maioria da população vivia perto do litoral. Como resultado de disputas entre as elites sobre onde edificar a nova capital, Brasília só foi construída na década de 1950, sob a presidência de Juscelino Kubitschek. (1)
A Indonésia, por sua vez, tornou-se independente da Holanda em 1945. Desde então, vários presidentes manifestaram o desejo de construir uma nova capital, longe de Jacarta. Em 2019, sob a presidência de Jokowi-Ma’ruf Amin, o parlamento nacional aprovou a Lei da Capital do Estado, um projeto para a construção da capital (Ibu Kota Nusantara – IKN) em Kalimantan Oriental. As obras de infraestrutura já começaram. Os argumentos usados pelo governo de Jokowi apresentam paralelos com o discurso dos governantes brasileiros: a Indonésia deveria ter uma nova capital como parte de sua própria história, nova e independente. E como se afirmou no caso de Brasília, a ideia de transferir a capital para Kalimantan Oriental, no centro do arquipélago, desenvolveria ainda mais todo o país, (2) já que a maior parte de sua população e suas atividades econômicas está concentrada atualmente na ilha de Java, onde fica Jacarta.
Desmatamento e energia
No caso de Brasília, 73% do Cerrado então existente foram destruídos durante as obras da nova capital: prédios do governo, áreas empresariais, residenciais e comerciais, a infraestrutura de transporte necessária. A nova capital, no entanto, desencadeou um amplo processo de desmatamento, que continua até hoje. A abertura de rodovias para ligar Brasília aos diferentes estados da federação teve papel fundamental nesse processo. Uma das primeiras estradas foi a Transbrasiliana, que liga Brasília à cidade amazônica de Belém, capital do estado do Pará. (3) Além da destruição de uma área significativa de floresta para construir essa estrada de 2.000 km, a obra também abriu a parte leste da região amazônica, expondo comunidades, principalmente os povos indígenas e seus territórios, a diferentes formas de violência e atividades destrutivas, como extração de madeira, pecuária, plantações de soja e outras monoculturas, atividades de mineração e usinas hidrelétricas.
Essas hidrelétricas, responsáveis por inundar e destruir amplas áreas florestais, são a espinha dorsal do fornecimento de eletricidade a Brasília. A usina de Itaipu, segunda maior do mundo em produção de energia elétrica, garante 20% do abastecimento, enquanto os 80% restantes são fornecidos pelo sistema FURNAS, também baseado em grandes hidrelétricas.
A Indonésia está iniciando o projeto de sua nova capital em um contexto muito diferente de quando Brasília foi construída. Desde então, o amplo desmatamento em todos os continentes reduziu significativamente as florestas (tropicais). Os governantes indonésios, incluindo suas elites e investidores, e instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial, têm incentivado ativamente a destruição da floresta em nome do “desenvolvimento” nas últimas décadas, principalmente em Kalimantan e Sumatra. A crise climática também gera impactos mais graves nos territórios a cada ano. Diante dela, as elites globais, grandes empresas e instituições financeiras basicamente reinventaram a economia capitalista dependente de combustíveis fósseis, apresentando-a como a chamada economia “verde” ou “de baixo carbono”. Mas por trás da nova imagem reluzente da economia “verde” se esconde uma lógica de expansão capitalista e o aprofundamento da exploração de florestas, seus povos e seus territórios, com o objetivo de aumentar os lucros das empresas e os benefícios das elites. Apesar de os combustíveis fósseis serem o principal motor das crises climáticas, é dentro desse marco capitalista que grandes empresas e governos formulam a maioria das políticas e compromissos relacionados ao clima e às florestas.
Isso ajuda a explicar por que o governo indonésio está promovendo sua nova capital como uma cidade “inteligente, verde e florestal”. Argumenta-se que a cidade (IKN) faz parte da solução para a crise global e ajudará a Indonésia a atingir sua meta de “emissão líquida zero”, usando energia renovável para atender à sua demanda de eletricidade e um sistema de transporte elétrico, baseado em baterias. (4)
No entanto, os 256 mil hectares supostamente necessários para construir a nova capital, que tem seis vezes o tamanho da atual, Jacarta, incluem áreas florestais que serão destruídas. Além disso, o fornecimento de eletricidade “renovável” virá da maior usina hidrelétrica ainda a ser construída (PLTA, em bahasa indonésio) no Sudeste Asiático, alimentada por cinco barragens no rio Kayan, no distrito de Peso, regência de Bulungan, em Kalimantan do Norte. De acordo com a ONG indonésia JATAM, em Kalimantan Oriental “existem seis aldeias que se tornarão vítimas desse projeto hidrelétrico do rio Kayan: Long Lejuh, Long Peso, Long Bia e Long Pelban, às margens do rio Kayan, bem como sítios arqueológicos nas aldeias de Long Pelbane, Muara Pangiang e Long Lian. Duas aldeias serão realocadas ou despejadas: Long Pelban e Long Lejuh. Existem sítios importantes para a comunidade indígena Bulungan e túmulos sagrados (Salung) nas aldeias de Muara Pangean, Long Lejuh, Long Pelban e Long Lian, que sofrem as mesmas ameaças. O patrimônio histórico de Bulungan, ‘Lahai Bara’, uma tumba ou local sagrado na aldeia de Long Pelban, também está sendo ameaçado”. (5)
Além disso, a construção da nova capital impulsionará ainda mais a expansão das indústrias extrativistas destrutivas. Além da areia e do carste, os blocos de pedra são necessários para a infraestrutura, aumentando a destruição causada por esse tipo de mineração em Sulawesi Ocidental e Central. Várias ilhas e as suas populações do lado oriental do arquipélago também vão sofrer com a devastação causada pela extração de níquel, uma das principais matérias-primas usadas na produção de baterias para veículos elétricos. Vale observar que essas fundições de níquel na Indonésia são alimentadas por usinas termoelétricas a carvão (PLTU, em bahasa indonésio). (6)
Apartheid social
Quando começou a construir Brasília, o governo Kubitschek promoveu fortemente o argumento de que a nova capital representava uma terra de sonhos e oportunidades. Propagou a ideia de que todas as pessoas, independentemente da classe social em que houvessem nascido, compartilhariam o mesmo espaço. Assim, realizar o sonho de uma nova capital também significaria realizar o sonho de uma sociedade nova e igualitária.
Nada poderia estar mais longe da verdade. Para começar, a construção de Brasília destruiu e reduziu territórios e a vegetação de Cerrado dos quais as comunidades quilombolas e os povos indígenas que ocupam toda a região desde tempos imemoriais dependiam para sua sobrevivência. Nove anos após a inauguração da capital, cerca de 79 mil pessoas viviam em 14.600 barracos espalhados por Brasília. Na tentativa de conter a migração de mais trabalhadores atraídos pelas supostas oportunidades que a cidade lhes ofereceria, o governo começou a retirar as pessoas desses acampamentos para uma área separada, que mais tarde se tornou uma nova unidade administrativa chamada Ceilândia. O processo foi comparável às práticas do regime de segregação racial do apartheid, da África do Sul.
Hoje, em comparação com as outras 26 capitais brasileiras, Brasília é a mais desigual. Em 2018, os moradores do Lago Sul, um bairro nobre cheio de mansões, pontos turísticos e restaurantes caros, tinham renda média mensal de R$ 7.654,91. Já no bairro Cidade Estrutural, a apenas 15 km do Lago Sul, a renda média era de R$ 485,97, que é 16 vezes menos do que no Lago Sul. Em contraste com Lago Sul, as pessoas que moram no Estrutural travam uma luta diária para sobreviver. Com meios de transporte precários e caros para chegar aos seus locais de trabalho, elas enfrentam todo o tipo de problemas para atender às suas necessidades básicas, incluindo alimentação a preços acessíveis, acesso à água, energia, saneamento, serviços de saúde, etc. (7)
Embora ainda em sua fase inicial, a construção da nova capital da Indonésia, em Kalimantan, parece seguir um caminho semelhante. Está destruindo e reduzindo os espaços de vida do povo indígena Balik e de outras comunidades da região, principalmente daqueles que vivem no chamado Anel 1, a área mais importante da nova capital, reservada a altos funcionários do governo e outras elites. Os Anéis 2 e 3 serão destinados a comércio e indústria, respectivamente, e a bairros residenciais. Até agora, no que será o Anel 1, as mulheres indígenas Balik, cujas vidas e meios de subsistência estão interligados ao rio Sepaku, vêm sendo particularmente afetadas pelos trabalhos iniciais de construção. Plantações, hortas e sepulturas ancestrais foram destruídas. Seu conhecimento ancestral sobre os telhados trançados com folhas de palmeira nipa está fadado a desaparecer se continuar o projeto de represamento de rios para atender ao futuro abastecimento de água da capital, devido à destruição das áreas onde a palmeira ocorre. (8)
Quem está pagando a conta?
A única cifra oficial que informa quanto custou a construção de Brasília, estimada pelo então ministro da Fazenda do Brasil, Eugênio Gudin, em 1960, é de US$ 1,5 bilhão, equivalente a cerca de US$ 13 bilhões atualmente, ou cerca de R$ 70 bilhões de reais brasileiros.
Parece uma soma relativamente pequena, mas, em comparação com o produto nacional bruto (PNB) de 1960, a construção de Brasília consumiu 10% do orçamento nacional. Dez por cento do PIB representariam hoje cerca de US$ 140 bilhões ou R$ 750 bilhões, valor bem mais significativo. Esse montante, no entanto, ainda não oferece um quadro completo, uma vez que muitas obras ocorreram após 1960.
Com essa conta, surgiu outro problema: o governo brasileiro simplesmente não tinha dinheiro suficiente para pagá-la. A “solução” adotada foi criar mais dinheiro, o que, por sua vez, contribuiu para uma das maiores taxas de inflação da história do país, levando a aumentos consideráveis nos preços de alimentos e outros produtos básicos. Também contribuiu para um período de instabilidade política que foi precursor do golpe militar de 1964, o qual instalou uma ditadura que durou até 1985. (9)
A Indonésia já é um país altamente endividado. Quem vai pagar a conta desse megaprojeto, orçado em cerca de US$ 32,7 bilhões? (10) O governo prometeu que cobrirá “apenas” 20% do custo, enquanto investidores pagarão o restante. O governo também afirma que muitos investidores estão interessados, mas eles provavelmente investirão em parcerias público-privadas nas quais o governo precisa desempenhar o papel de “gerente de marketing”, fornecendo incentivos e isenções fiscais para garantir retornos e lucros aos investidores. No final das contas, o custo será pago pelo povo da Indonésia. (11)
Parem a IKN, a nova capital que irá recolonizar o país
Até hoje, e há mais de 60 anos, a comunidade quilombola que foi despejada para a construção de Brasília luta para demarcar pelo menos uma ínfima parte do que um dia foram seus territórios. (12) Da mesma forma, os povos indígenas Balik que estão enfrentando a construção da nova capital na Indonésia continuam a erguer suas vozes.
Dahlia é dançarina de uma comunidade Balik na área onde a nova capital está planejada. Ela diz: “Não consigo imaginar o que vai acontecer quando o projeto estiver pronto para ser implementado,” (...), “Ninguém quer ouvir nossas vozes. Eu tenho vontade de chorar e gritar. Eu me sinto colonizada, mesmo estando em um país livre e independente.” (13)
Um paralelo marcante entre as histórias das duas novas capitais é como os dois projetos apenas reforçam um Estado colonial, apesar de seus defensores afirmarem o contrário. Ambos dominam e destroem os espaços de vida e os territórios das comunidades da floresta por interesses econômicos e políticos. E as duas capitais novas também promovem políticas de apartheid social.
Ambas as histórias, no entanto, também mostram o papel das lutas sociais como forma de interromper e reverter uma história de colonialismo e outras opressões estruturais que incluem racismo, capitalismo e patriarcado. Por trás dos discursos dos presidentes e da falsa propaganda sobre as novas capitais, as comunidades dos dois países são protagonistas das lutas pela defesa e a recuperação de terras, rios e florestas dos quais dependem sua cultura e sua identidade.
Quando a ditadura militar brasileira “abriu” o país, a partir de 1964, para garantir lucros para as elites nacionais e, em particular, internacionais, seu projeto era “matar” a cultura e a identidade dos Povos Indígenas e de outras comunidades tradicionais, integrando-os à força à sociedade como um todo, a chamada “moderna”. Mas os povos indígenas continuaram resistindo. Em 1980, foi fundada a primeira organização indígena no estado amazônico do Acre, chamada UNI, e cerca de 500 outras vieram nos anos seguintes. Juntamente com outros movimentos sociais, sua resistência se fortaleceu a ponto de derrubar os militares que estavam no poder. Uma nova Constituição lançou as bases para reparar uma pequena parte da dívida histórica com as comunidades indígenas e tradicionais. Porém, o fato de 26% do território amazônico ser controlado hoje por povos indígenas não se deve apenas a essa nova Constituição. É resultado, sobretudo, de lutas sociais que seguem exercendo pressão sobre uma estrutura de Estado que continua governando para os interesses privados dos ricos e mantém muitos traços coloniais.
O governo da Indonésia ainda está no estágio inicial de construção de sua nova capital e, portanto, ainda há a chance de cancelar o projeto. Como mostra o exemplo de Brasília, uma nova capital nada tem a ver com um país independente e o rompimento com o colonialismo. Os Povos Indígenas são a chave do entendimento sobre o que é necessário para romper com o passado colonial. Isso inclui uma mudança fundamental na relação do Estado com as pessoas que vivem nos territórios e com os próprios territórios, em que o Estado precisa deixar de ouvir os investidores nacionais e estrangeiros ricos. Esse poderia ser um verdadeiro passo inicial rumo à descolonização do país.
Secretariado Internacional do WRM
(1) Vermelho, Brasília e a mudança da capital para o Planalto Central, 2010.
(2) The Guardian, Why is Indonesia moving its capital city? Everything you need to know, 2019.
(3) Andrade, 2019. Vencidas a distância e a floresta: a Transbrasiliana e a Amazônia Desenvolvimentista.
(4) Jatam East Kalimantan. Factsheet: How Indonesia’s New Capital Megaproject invoked climate disaster and destroyed indigenous people and women of Suka Balik in East Kalimantan, 2022
(5) Ibid 4
(6) Ibid 4
(7) Poder360, Brasília tem bairro com “renda europeia” e regiões tão pobres como a África, 2020, e Poder360, Implantação de Ceilândia foi o apartheid de Brasília, 2020,
(8) Ibid 4; e Oxfam, For richer or poorer: from Brazil to Indonesia, 2016.
(9) Poder360, Construção de Brasília custou US$ 1,5 bilhão em valor de 1960, 2020, e Caos Planejado, Brasília: uma cidade que não faríamos de novo, 2019.
(10) Ibid 2
(11) Ibid 4
(12) BBC News Brasil, 2018. A história do quilombo que ajudou a erguer Brasília – e teme perder as terras para condomínios de luxo.
(13) WRM, A coerção do megaprojeto da nova capital da Indonésia e o descaso com as vozes do povo Balik, 2022.