Este artigo faz parte da publicação "15 anos de REDD:
Um esquema corrompido em sua essência"
Para refletir sobre o que REDD+ significou para os Povos Indígenas e suas lutas, é necessário inserir esse mecanismo em uma reflexão muito mais ampla sobre a história dos Povos Indígenas. Uma história marcada pela resistência à colonização e ao racismo, bem como ao capitalismo e à globalização neoliberal. Nessa perspectiva, a resistência ao REDD+ não é um problema apenas dos Povos Indígenas nas florestas tropicais; ela tem a ver com sua luta global histórica por justiça.
O WRM conversa com Tom Goldtooth, da Rede Ambiental Indígena (Environmental Indigenous Network, IEN) dos EUA e membro do Comitê Consultivo do WRM.
WRM: Por favor, apresente-se e explique por que e como você se envolveu com a questão do REDD+, considerando que vem de uma região sem florestas tropicais nem projetos de REDD+.
Tom: Eu recebi a tarefa de alguns povos, líderes espirituais e grupos indígenas de base em 1998, quando tivemos uma reunião sobre mudanças climáticas na Environmental Indigenous Network (IEN), que eu estava representando. Acho que é bom as pessoas saberem que o governo dos Estados Unidos reconhece todas as nossas 574 tribos, incluindo os nativos do Alasca, e alguns aspectos de nossa soberania. A IEN é uma organização comunitária de base da qual participamos. Não somos representantes da liderança indígena eleita. Quando uso a palavra tradicional, quero dizer formas originais.
Nos séculos XVI e XVII, houve um conflito muito intenso com a chegada dos colonos, os colonizadores europeus. No início, fomos muito simpáticos com os colonos; é a nossa natureza, nós somos assim. Mas depois de um tempo, descobrimos que essas pessoas tinham sua própria agenda: se apropriar das nossas terras. E sempre se reconheceu, no Norte, que com a colonização, sempre vem a Igreja. A Igreja precisa dar a sua bênção à conquista de todo um país, basicamente por colonizadores europeus. O direito internacional da época se baseava nas leis da Europa, mas era ilegal conquistar um continente inteiro sem a bênção da Igreja. Eles diziam que éramos incivilizados. Na verdade, eles diziam que não tínhamos almas, a-l-m-a-s, que éramos menos que humanos. Isso faz parte do processo de colonização. É fundamental compreender um pouco da história dos Povos Indígenas do Norte. Mas ocorreu basicamente o mesmo processo nas terras e territórios da Amazônia e nas florestas tropicais com os Povos originais de lá, Povos Indígenas, habitantes.
Portanto, há uma longa história de colonização e apropriação de terras, a-p-r-o-p-r-i-a-ç-ã-o. A questão sempre foi a terra. E isso inclui todos os diferentes recursos e conceitos de como olhar a natureza. Por exemplo, os colonizadores que vieram para a América do Norte queriam as árvores da Costa Leste para construir suas frotas de navios. Essas frotas eram operadas como negócios do Estado, de pessoas físicas ou de empresas. E muita gente não sabe que, ao longo de centenas de milhares de anos, eles devastaram suas próprias florestas na Europa. Então, eles estavam procurando mais madeira para seus navios e outros produtos. Os espanhóis procuravam minérios, por exemplo, e os holandeses tinham seus próprios interesses, mas tudo baseado no colonialismo.
Portanto, com isso em mente, nossa Organização (IEN) recebeu a responsabilidade de começar a trabalhar com as mudanças climáticas em 1998. Buenos Aires foi minha primeira reunião climática da ONU, e havia apenas cinco Povos Indígenas presentes. Eu não estava familiarizado com as questões relacionadas aos mecanismos de compensação de carbono, mas à medida que continuei participando dessas reuniões, logo ouvi falar do comércio de emissões e soube mais sobre o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), e isso me interessou, porque a IEN não se limita aos Estados Unidos ou o Canadá. Na formação da nossa Rede, em 1990, tivemos a participação de Povos Indígenas do Sul global, principalmente no que diz respeito à proteção da biodiversidade. Aqueles foram os anos iniciais de formação da Convenção da Diversidade Biológica (CDB) da ONU. Naqueles primeiros anos da década de 1990, a maioria das questões importantes estava relacionada a produtos químicos tóxicos em torno de aterros sanitários, lixões tóxicos e despejo de lixo nuclear em terras indígenas. Mas, à medida que continuamos, começamos a identificar a terminologia de injustiça ambiental e racismo ambiental, o que ampliou o diálogo com nossas 574 tribos e além, com nosso povo no chamado Canadá.
Essas terminologias criaram um de nossos marcos para abordar as questões de desigualdade que estávamos enfrentando diante do governo dos Estados Unidos. Estávamos tratando de como manter nossos ecossistemas saudáveis, mas eles só enxergavam os chamados recursos. Os povos indígenas que foram e são praticantes do conhecimento indígena, dos modos de vida indígenas, sempre nos aconselharam a não olhar a natureza como recursos naturais e a não considerá-la como um recurso. Assim, fomos orientados pelos que detêm conhecimentos tradicionais, que sempre disseram que não devemos participar da visão colonialista, que enxerga a natureza de uma perspectiva capitalista ou monetária. Nossa Rede foi formada por esse tipo de representantes comunitários de nossas tribos, membros que ainda são portadores de nosso conhecimento tradicional indígena, das nossas instruções originais, que nos foram dadas desde o início dos tempos.
Como tivemos a participação de Povos Indígenas da América Latina, da África e das Filipinas na formação da IEN, sempre nos colocamos em uma posição de que também é necessário investigar quais são os problemas deles. Queremos enfrentar problemas que possam desrespeitar os direitos humanos dos irmãos e irmãs do Sul global. É por isso que eu aceitei o convite para ir a Durban [participar da reunião climática da ONU]. Comecei a ver que os planos de mitigação estavam se fundindo em nível da ONU, e que eles falavam como se esses planos dos mercados de carbono fossem salvar a Mãe Terra, salvar o nosso povo, e nos levar a um nível onde não precisássemos nos preocupar com o aquecimento global, com as mudanças no clima. Eu sempre agi com cautela em relação ao governo federal aqui nos Estados Unidos, mas tenho ainda mais cautela com as reuniões da ONU em que trazem governos, mas também o Banco Mundial, grandes ONGs e grandes empresas. Soam todos os meus alertas. Foi nessas reuniões da ONU que eu ouvi falar de Kyoto e alguns dos debates em torno das florestas, e que havia uma luta para evitar que se transformassem em um esquema de compensação. Eu aprendi como o MDL se tornou o maior esquema de compensação do mundo e, mais tarde, todas essas coisas se juntaram, incluindo as florestas como sumidouros de carbono. Isso realmente passou a ser uma preocupação para mim.
Eu venho de uma região florestada aqui nos Grandes Lagos, ao longo da fronteira dos Estados Unidos e do Canadá. Estou cercado por florestas. Eu entendo a relação com as árvores. As árvores têm espírito. De acordo com nosso conhecimento tradicional, nós entendemos como as árvores respiram, então eu entendo o conceito de carbono. Mas eu logo aprendi que as pessoas que vivem nas florestas do Sul global estão realmente correndo um risco enorme, e que haveria problemas graves, como concentração de terras, se a floresta fosse incluída não apenas nesses sumidouros de carbono, mas também como um MDL. E eu tive que conhecer uma nova terminologia, como os conceitos de florestamento e reflorestamento, e como eles poderiam ser considerados como metodologia no MDL. Mas chamá-los diretamente de crédito de carbono florestal foi algo em torno do qual começamos a nos organizar, mas depois de um tempo veio o RED, com um D, que se tornou REDD, e depois, REDD+.
Assim como o MDL, o REDD+ foi lançado pelo Banco Mundial. Comecei a observar os mecanismos financeiros que sustentavam essa falsa solução, as instituições de fomento. E foi aí que eu comecei a fazer a ligação com a forma como nós, a IEN, podemos ajudar a apoiar os direitos de nossos irmãos e irmãs indígenas do Sul global, em áreas florestadas. Porque nós também estávamos nos envolvendo, desde 1996, com a Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD). E na ida à CDB é que essas questões preocupantes começaram a fazer sentido, e fomos entendendo o papel do Banco Mundial e das instituições de desenvolvimento. Eles estão por trás de algo que conhecemos muito aqui no Norte: a globalização neoliberal que começou a mostrar sua cara feia. Eu me lembro de que usamos esse termo, globalização econômica, e sua ligação com o capitalismo.
Naquela época, parte da IEN também estava construindo alianças com outras pessoas não brancas marginalizadas aqui nos Estados Unidos, e trabalhando e estabelecendo redes globais com organizações que estão lutando contra o capitalismo, lutando contra a globalização econômica. Então, tudo começou fazer sentido para nós, e começamos a nos envolver mais, e tentar acabar com o REDD+ se tornou um símbolo da nossa resistência. De muitas maneiras, as lutas contra essa globalização econômica e contra os mercados de carbono são a mesma luta. Eu gosto de enfatizar isso. E se para nós, os mercados de carbono fazem parte da continuidade da colonização, não foi uma surpresa que durante a reunião climática da ONU em 2007, em Bali, o Banco Mundial, a ONU e o paradigma de desenvolvimento tenham encontrado uma maneira de contornar as compensações florestais, expressas em uma sigla e uma linguagem estranhas, como o REDD+. Acho que foi para criar confusão e conflito, com muita desinformação climática.
É claro que as organizações de conservação, como o WWF, estavam por trás disso, e já começamos a ser considerados os vilões da história. Mesmo naquela época, as ONGs tentavam encontrar Povos Indígenas favoráveis, que trabalhassem com elas, e tentavam nos colocar uns contra os outros, não só aqui nas Américas, mas também no Sudeste da Ásia, na Indonésia e em um encontro da ONU sobre o clima, em Bali. Não me surpreendeu que as ONGs conservacionistas que estavam por trás disso começassem a agir como “verificadoras independentes”, e que isso tenha começado a mostrar que elas iriam ganhar dinheiro com o REDD+. E elas têm ganhado dinheiro: Conservation International (CI), WWF, Environmental Defense Fund (EDF) e outras com sede aqui em Washington construíram suas organizações nas últimas décadas para estabelecer compensações de carbono e verificar esses programas falsos. Essa é a minha resposta à sua pergunta.
WRM: Você disse que o REDD+ se tornou um símbolo em sua luta de resistência mais ampla. O que faz você afirmar isso?
Eu mencionei o colonialismo, a colonização. Esses programas de colonização, como o REDD+, estão baseados na lógica do desenvolvimento. São construídos com base no princípio de que os países do Sul global podem seguir o exemplo ocidental de expansão capitalista e ser retirados da pobreza. Mas, como membro de Povos Indígenas do Norte, eu sei que isso não é verdade. Sabemos que essa é a mentira contada desde a Segunda Guerra Mundial. Então, eu acho que foi benéfico para mim, que venho do ventre da besta, dos Estados Unidos, poder entender esse vínculo com a colonização, com a lógica colonialista do desenvolvimento.
Os impactos sobre os povos indígenas são profundos e complexos. O REDD+ é apenas uma continuação da mesma lógica colonial, capitalista e patriarcal que levou este planeta à beira da violência e da destruição. É quase impossível dizer quais foram os impactos do REDD+ nos últimos 15 anos porque ele faz parte de um sistema que remonta a mais de 500 anos. Do meu ponto de vista, no Norte, isso traz à tona aquele trauma histórico que vem com o que aconteceu desde a colonização das nossas terras no Norte. Não se trata apenas da apropriação da terra, das nossas árvores e da nossa água, das nossas montanhas e dos nossos campos, mas da apropriação de nossa identidade. É a substituição de nossas cerimônias tradicionais indígenas pelo cristianismo; é se apropriar da nossa linguagem. Isso vem literalmente com o estupro das nossas crianças, o trauma histórico que está documentado no Canadá, nos colégios internos fundados pela Igreja. Essa é uma questão séria. Se compararmos 15 anos de uma iniciativa global que tem um grande impacto nas vidas e no futuro de nossos Povos Indígenas das florestas tropicais, não é diferente dos últimos 500 anos para nós.
Estou preocupado com a forma como esses mecanismos de mercado de carbono que prometem compartilhar os benefícios estão resultando na divisão de nossos Povos Indígenas, e isso dói profundamente, porque impacta nossa solidariedade nacional, regional e global, e a forma como trabalhamos juntos. Muitos de nós trabalharam durante 19 anos na elaboração da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que não foi fácil de fazer, e depois vemos iniciativas como o REDD+ se tornando ferramentas de divisão, uma estratégia de dividir para conquistar. Mas, novamente, esses não são impactos novos, há um histórico desse tipo de tática sendo usado por governos coloniais e seus agentes, as grandes empresas. Esse nível de racismo não é novo. Os Povos Indígenas têm as respostas para as mudanças climáticas. Mas se estivermos sendo divididos, não seremos capazes de liderar o rumo que o mundo precisa. As pessoas que promovem o REDD+ estão realmente causando a crise climática, nesse sentido. Elas têm muito a responder.
WRM: Em resposta às críticas e aos impactos, os defensores do REDD+ criaram as salvaguardas de Cancún, melhores práticas, padrões de certificação, REDD+ participativo e assim por diante, argumentando que isso pode prevenir violações de direitos humanos.
Eu considero as salvaguardas como cortinas de fumaça usadas para nos silenciar, para silenciar nossos irmãos e irmãs indígenas. Para fazer parecer que vão assumir a responsabilidade. Eles criam salvaguardas para confundir e desviar a narrativa da destruição, da violência que vem com essa destruição, pela qual eles são responsáveis. Eles não dizem às pessoas na Amazônia que o dinheiro vem de empresas poluidoras. Não dizem a elas que em algum lugar distante pode haver uma refinaria, uma cidade de refinarias, que continuam emitindo substâncias químicas tóxicas e gases de efeito estufa que estão causando contaminação e doenças respiratórias para as comunidades locais onde essas refinarias de petróleo estão localizadas, matando pessoas. Eles não vão contar a elas sobre todos os impactos da violência e da destruição pelos quais o REDD+ é responsável.
Eu falei com alguns povos indígenas depois de organizações como a EDF ou a Conservation International (CI) fazerem workshops e perguntei: “Eles contaram a vocês de onde vem o dinheiro?” E a resposta foi: “Não, acho que vem do Banco Mundial”. E eu disse: “Não, vem da Chevron”, porque naquele caso era a Chevron. E eles ficaram surpresos, chocados. “Gazprom”, “Como?”, disseram. Então é assim que funciona. E eu também disse a eles: “vocês sabiam que existem povos indígenas, negros, brancos pobres, mexicanos que falam espanhol, que vivem perto da refinaria de petróleo em Richmond, Califórnia, na região de São Francisco, que estão morrendo de doenças respiratórias decorrentes das emissões dessas refinarias? E essas empresas estão dizendo às pessoas que se tornaram neutras em carbono. Elas estão dizendo às pessoas que estão investindo seu dinheiro na floresta amazônica para proteger as pessoas”.
No Norte, eu tive que explicar essa lavagem verde. As pessoas das florestas não entendem como isso funciona, mas sentem que estão sendo violadas, que estão sendo convencidas de que é bom aceitar dinheiro que vem do REDD+. É por isso que a única discussão sobre salvaguardas confunde e desvia a narrativa, afastando da violência e da destruição pelas quais esses cowboys do carbono são responsáveis e dos governos que estão promovendo isso. Muitas pessoas em organizações de conservação acreditam que o REDD+ pode funcionar. Elas estão confusas e não enxergam como o REDD+ e outros programas de compensação são racistas. Eu disse a elas que esses são mecanismos de certificação de roubo de terras, e elas não gostam que eu fale assim, sobre Certificação de Roubo de Terras. Salvaguardas para justificar mais combustíveis fósseis e poluição? É simplesmente uma loucura. Melhores Práticas? Para quê? Expropriação? É ridículo.
O multimilionário Jeff Bezos criou o Jeff Bezos Earth Fund. Ele investiu 100 milhões de dólares logo após a reunião climática da ONU em Bali, para financiar WWF, Environmental Defense Fund, CI e TNC. Por trás desse financiamento está a agenda para ajudar a impulsionar a compensação e os programas de conservação, captura e armazenamento de carbono. São 400 milhões de dólares no bolso de organizações que promovem essa agenda! A IEN e outras organizações ainda estão tentando montar campanhas para combater isso.
Continuará havendo violações dos direitos humanos, despejos. Quem responsabilizará o Presidente da República Democrática do Congo? Quem responsabilizará o presidente do Brasil? Eles querem apagar a história dos povos indígenas originais de seus países. Eles querem reescrever a história. Eles querem ignorar que os primeiros povos têm direitos inerentes. É disso que eles têm medo.
WRM: Algumas organizações indígenas têm trabalhado ativamente com o REDD+, resultando em propostas como “REDD+ Indígena” e campanhas como “Sem direitos, não há REDD”. Olhando retrospectivamente, você acha que é possível conciliar os direitos e os valores fundamentais defendidos pelos Povos Indígenas com o que REDD+ representa?
Pode-se dizer que toda essa história que eu tenho de trabalho com o REDD+ nos afetou. Sempre foi um problema que agora cobra seu preço. Eu fui convidado para o Fórum Social Mundial em Belém, no Brasil, em 2009. Uma pessoa me convidou para uma reunião com Povos Indígenas para explicar, da minha perspectiva, as preocupações e questões que temos em relação à implementação do REDD+. Quando eu apareci, Steve Schwartzmann, do EDF, me viu e perguntou: “Por que ele está aqui?” Ele já teve conflitos comigo. Foi nessa época que as ONGs começaram a tentar se aproximar dos nossos Povos Indígenas. O EDF tinha muito dinheiro e obteve o favoritismo de muitas lideranças da Amazônia, inclusive da COICA. (1) Então a COICA começou a trabalhar com as ONGs e desenvolveu o conceito de “REDD+ Indígena”.
Mas o caminho foi longo. Tenho uma longa história de trabalho nisso, e havia uma estratégia em Bangkok, na Tailândia, quando aconteceu uma reunião climática da ONU lá, e traçamos estratégias [sobre direitos e REDD]. Eu não achava naquela época, e ainda não acho, que os governos onde há comunidades, Povos Indigenas, que vivem na floresta, concederão direitos a esses Povos, ou seja, direitos à terra, títulos de suas terras e, na Amazônia, também os direitos de superfície. Mas, olhando retrospectivamente, acho que eu cometi um erro, porque havia uma estratégia na reunião da ONU na Tailândia, com o pessoal do sudeste asiático que tentava fazer o REDD+ funcionar, junto com outros delegados indígenas da Amazônia, a COICA, e nós elaboramos uma estratégia de protesto naquela reunião da ONU usando o slogan “Sem direitos não há REDD”, o que chamou alguma atenção. Até hoje, existem alguns debates sobre aquela estratégia. Era uma boa estratégia? Levantou a questão: há possibilidade no Peru, ou mesmo na Colômbia ou no Brasil, de conceder direitos aos Povos Indígenas? Direitos à terra em áreas florestais? Eu acho que não há. E essa estratégia está por trás da abordagem do “REDD+ Indígena”.
Eu tenho conversado com alguns povos indígenas sobre a questão: Como você pode conciliar com seus costumes indígenas, sua cosmovisão, sua espiritualidade, como você pode conciliar e participar de um sistema de mercado capitalista branco? Mesmo que consiga implementar uma iniciativa de REDD+ de base indígena, você ainda terá que participar da mercantilização e da privatização de suas florestas e do carbono de suas árvores. Não é o governo que está fazendo isso, nem entidades externas; vocês estão fazendo isso agora como povos indígenas. Parece muito contraditório quando nossos irmãos e irmãs indígenas da Amazônia estão lutando contra as concessões de petróleo e, em um projeto qualquer de REDD+ indígena, eles descobrem que o financiamento vem da Chevron e de outras poluidoras. É possível conciliar isso? Eu ainda faço essa pergunta. Eu não sei como eles conseguem conciliar. Isso significa que eles deixaram de lado esse conhecimento espiritual indígena para participar do capitalismo climático.
Quando eu aprofundo essa questão com pessoas de base na Amazônia, lá nas aldeias remotas, elas entendem; não é complicado. Elas geralmente não apoiam isso. E nos últimos anos, elas começaram a questionar as alianças indígenas da Amazônia que atuam como intermediárias e corretoras de projetos de REDD+. A questão é muito política na Amazônia, e também lá de onde eu venho, no Norte. No caso da IEN, eu sempre valorizo mecanismos reais que garantam uma participação significativa, e para essas questões complicadas de mercados de carbono e regimes de compensação, os princípios do Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) devem ser verdadeiramente implementados. As informações completas sobre todos os aspectos desses esquemas de REDD+, e agora as chamadas “Soluções baseadas na natureza”, são fundamentais nessas relações políticas complexas que existem na Amazônia. É uma estrutura política complexa. O cacique Ninawa Huni Kui, do Acre, tem sua perspectiva e sua posição, e há grupos que tentam dividir seu povo com relação a esse assunto. O mesmo aconteceu com Marlon Santi, dos Sarayako, no Equador, quando começou a falar sobre isso. Até mesmo Gloria Ushigua, dos Sápara, da Amazônia, no Equador, tem diferenças com seus parentes em sua aldeia, que são favoráveis a trazer um projeto de REDD+ para a região. Ter informações é muito importante. O princípio de implementação do CLPI é muito importante. Os Povos Indígenas e as comunidades que dependem da floresta devem ter um entendimento completo e profundo das complexidades dos projetos de REDD+ e como eles fazem com que que as indústrias poluidoras, na verdade, sejam donas do carbono nas florestas. Eu estou realmente preocupado, e rezo para que não haja derramamento de sangue nas aldeias por causa dessas questões.
WRM: Quais são os principais desafios enfrentados pelos Povos Indígenas com o novo impulso pelo REDD+, sob um nome de boa sonoridade: “Soluções baseadas na natureza”?
Eu venho pensando sobre isso e temos considerado como soluções falsas. Nosso desafio é: como podemos transmitir a ideia de que essa é uma espécie de última fronteira da colonização, que está sistematicamente assumindo o controle da Mãe Terra por meio da privatização e da mercantilização? Esse processo global está fazendo isso com mecanismos que separam e quantificam os ciclos e as funções da Mãe Terra, como carbono e biodiversidade, e os transforma em “unidades” a serem vendidas em mercados financeiros e especulativos.
Como podemos transmitir isso e desenvolver materiais de educação popular para ligar os pontos das estruturas de uma economia fóssil e a financeirização da natureza, que não tem qualquer respeito pelos direitos humanos e pelos direitos dos povos indígenas? Como construímos nosso movimento de resistência para que seja entendido pelos ativistas contra os oleodutos, os combatentes do petróleo e os defensores da terra das comunidades que resistem a estes projetos?
Os instrumentos dos governos dos países colonizados giram em torno dos direitos de propriedade. Portanto, as “Soluções baseadas na natureza” são compensações. Grandes empresas poluidoras fornecem o dinheiro para colocar terras como compensações, como compensações de conservação e, no final das contas, são as grandes empresas que possuem essas terras que foram separadas para este fim. Essa é a ideia por trás do plano 30 x 30 [cobrir 30% do território mundial com áreas protegidas até 2030]. Portanto, a mudança da marca REDD+ para “Soluções baseadas na natureza” é perigosa neste momento.
Morando aqui nos Estados Unidos, no ventre da besta, nós estamos testemunhando um grande impulso nesse sentido, em todo o mundo. Há um projeto de lei, uma legislação agora, chamada de “Lei de soluções climáticas crescentes”, que dá autoridade ao Departamento (Ministério) de Agricultura para criar um sistema de registro de compensação de carbono on-line que ajudará os agricultores a entrar no mercado voluntário de compensação. Então o REDD+ também está nessa situação. Mas ele também é encontrado em outros lugares, dentro dos sistemas de precificação de carbono, como na Colômbia. A grande questão agora é como vamos parar essa matriz que permite esses oleodutos e gasodutos. Esses programas, como a precificação do carbono, estão ficando cada vez mais complexos. São impostos com REDD+, bancos de carbono, títulos verdes, e assim por diante.
Todas essas compensações baseadas na terra estão sendo consideradas favoráveis à natureza. Como se pode argumentar contra algo que protege a natureza? Isso é o que as pessoas me perguntam. Estamos preocupados porque estamos perdendo a batalha, estamos perdendo a batalha aqui em Washington, com as falsas soluções que Biden defende, porque ele é neoliberal. E tudo isso tem a ver com capitalismo e colonialismo. E alguns dos grupos ambientalistas dizem: “Bom, não force a barra aqui, temos que trabalhar com o Biden”. Mas não podemos, continuamos atuando, com muitas campanhas educativas.
Além disso, existem as promessas de “emissão líquida zero” por parte de muitas empresas. E é importante vincular as questões e também falar sobre isso. Sob o guarda-chuva da “emissão líquida zero”, eles estão adotando duas abordagens. Eles vão comprar compensações terrestres que são chamadas de “Soluções baseadas na natureza” ou usar a captura e a armazenamento de carbono. Ambas as abordagens prolongam e sustentam a indústria de combustíveis fósseis. Isso não permite que as políticas dos Estados Unidos e do Canadá, da Europa e de outros países que têm combustíveis fósseis se afastem desses combustíveis. Não permite que eles os mantenham no solo, e sim que continuem lucrando com seus negócios, como se nada estivesse acontecendo. Então vamos continuar tendo oleodutos, vamos continuar tendo tráfego de petroleiros, vamos continuar tendo transporte de energia suja, de combustíveis fósseis, a não ser que chegarmos ao cerne da matriz, dos problemas: as “Soluções baseadas na natureza”, que é a privatização final da Mãe Terra da Natureza.