Empresas destrutivas “criando mais biodiversidade”?

Já argumentamos, em boletins anteriores, que é absurdo aceitar a ideia de que empresas possam livremente destruir uma área para, por exemplo, realizar atividades de extração de minério, desde que “compensem” isso. O Banco Mundial, grandes corporações, ONGs conservacionistas e, cada vez mais, governos nacionais argumentam que é aceitável “compensar” a biodiversidade destruída pela mineração, desde que se proteja ou se recrie uma área “equivalente” em outro lugar. Mas o absurdo dessa ideia não para por aí. O Banco Mundial, através do seu braço privado, a IFC, orienta que esse tipo de projeto de “compensação” deveria resultar preferencialmente em “mais biodiversidade” (1): algo que em termos técnicos é chamado de “impacto líquido positivo”, mesmo que se desmatem milhares de hectares de floresta e, com isso, destrua-se a sustentação das comunidades que dependem dessa floresta.

A proposta da “compensação da biodiversidade” se baseia, em primeiro lugar, na aceitação de que atividades como a mineração e outras de caráter destrutivo são inevitáveis. Elas têm que continuar como se fossem a única maneira possível para se ter um “futuro melhor”, para promover o “progresso” – algumas das promessas feitas à população quando se anuncia outro grande projeto de desenvolvimento. A continuação da destruição é tão fundamental para a “compensação da biodiversidade” que essa proposta seria inviável, nem existiria, se não houvesse destruição. Trata-se de uma lógica perversa, já que qualquer pessoa com um pouco de bom senso buscaria sempre evitar a destruição, e não facilitar que a mesma pudesse continuar acontecendo. Mas para o atual sistema econômico capitalista, ela faz sentido, sim, na perspectiva de continuar destruindo para criar novas oportunidades de lucrar e ficar impune por isso.

Na lógica perversa da “compensação”, seus proponentes buscam uma área “equivalente” àquela que será destruída, no caso da “compensação da biodiversidade” na mesma região ou país. A seguir, inventam uma história – muito parecida com a que ocorre em projetos de REDD+ – de que essa área corre risco de ser destruída/desmatada futuramente, não pela empresa, mas pela população que usa a floresta. A empresa de mineração, geralmente assistida por grandes ONGs conservacionistas, aparece para “salvar” a área da “destruição” ao propor sua conservação, restringindo o acesso da comunidade local à floresta e às atividades tradicionais, como a agricultura. Um relatório que será lançado em breve (2) descreve o que isso significa para a população em uma área de “compensação” de um dos projetos de “compensação de biodiversidade” mais divulgados internacionalmente, promovido pela empresa de mineração Rio Tinto QMM em Madagascar. Enquanto culpam a população pela destruição total na área de “compensação”, impondo restrições a seus direitos de uso da floresta, a Rio Tinto QMM pode desmatar livremente 1.500 hectares para implantar uma mina e extrair o mineral ilmenita.

Mas a perversidade desse tipo de projeto não para por aí. Em certos casos, as empresas afirmam que inclusive “criam” “mais biodiversidade”, por exemplo, quando, além da proteção da área de “compensação”, implementam atividades complementares, como o plantio de árvores para “enriquecer a biodiversidade” da área. Isso torna o projeto mais perverso, porque elas acabam apresentando sua atividade de mineração – que é extremamente destrutiva – como uma atividade que acaba contribuindo positivamente para o meio ambiente. É mais perverso, também, porque as atividades de reflorestamento costumam ser divulgadas como projetos sociais, enquanto, na prática, paga-se muito pouco às pessoas da comunidade que participam, que nunca são todas, enquanto a comunidade se vê limitada em suas atividades de autossustentação, prejudicando sua soberania alimentar. Pior ainda é quando, como ocorre muitas vezes, o reflorestamento é feito na forma de monocultura de espécies de rápido crescimento, consumindo muita água e produtos químicos.

Ora, para essa lógica da “compensação” avançar, é fundamental que haja leis e regulamentos que protejam as empresas para que elas possam destruir legalmente, desde que façam a “compensação” – algo incentivado, por exemplo, pelo Banco Mundial. É sobre essas mudanças perigosas nas leis e regulamentos que o primeiro artigo deste boletim procura refletir, mostrando um pequeno panorama do avanço desse fenômeno em países do Sul. Outro artigo procura refletir sobre como essa lógica da economia verde, que busca descrever a “biodiversidade” e a “natureza” em geral como apenas um conjunto de espécies e “serviços ecossistêmicos”, aprofunda a impunidade da qual as empresas destruidoras se beneficiam. Outro artigo relata como tem sido o avanço dessa lógica no caso da Colômbia, no contexto das negociações de Paz para pôr fim ao conflito armado no país. Outro, ainda, faz uma reflexão crítica sobre as “consultas” às quais a população local é submetida, também em uma lógica de que o projeto destrutivo é inevitável, enquanto a decisão sobre esse projeto costuma ser tomada muito antes de a própria comunidade tomar conhecimento dele. Este boletim inclui também um artigo sobre como o mecanismo REDD é falho em termos de  proteger as florestas. Depois que o governo nigeriano implementou projetos REDD restringindo o uso tradicional das florestas pelas comunidades, o mesmo governo propôs a construção de uma mega-rodovia que destruirá não só as florestas e territórios comunais, mas vai atravessar as áreas de três dos projetos REDD. O último artigo, da Índia, mostra como os interesses corporativos da indústria extrativa passa por cima de direitos coletivos das comunidades, mesmo quando estes tenham sido legalmente reconhecidos.

A falsa promessa de atividades comprovadamente destruidoras, não só da “compensação”, mas também da sugerida situação final de “mais biodiversidade”, não ocorre apenas com a “compensação da biodiversidade”. Na última conferência do clima em Paris, diferentes versões da ideia da “Captura e Armazenamento de Carbono” atrelada a atividades como plantio de árvores, sugerem que seria possível promover projetos que resultem em “emissões negativas”. Essas ideias foram difundidas principalmente por interesses corporativos. Significa, por exemplo, que empresas de petróleo poderiam continuar queimando o produto, “capturar” o carbono emitido e “armazená-lo” em algum lugar por meio de determinadas tecnologias, muitas vezes duvidosas. E, se um projeto como esse for atrelado a outro de plantio, de uma grande monocultura de árvores que “armazena” carbono da atmosfera em algum país do Sul global, a empresa sugere que não só “compensou” suas emissões, mas também ajudou a resolver a crise do clima porque promoveu uma situação de “emissões negativas”. De fato, vimos planos ambiciosos sendo apresentados na conferência de Paris para “reflorestar” a África, e incluímos neste boletim um artigo sobre uma conferência que ocorrerá este mês em Gana e que busca divulgar mais essa ideia.

Um aspecto positivo desses planos é que, pelas ideias absurdas que inventam, também deixam mais evidente a inviabilidade do atual modelo destrutivo de produção e consumo que nos é, mostrado, didática e diariamente, pela crise de destruição ambiental cada vez mais grave e seus impactos. Cabe a nós continuar mostrando e denunciando esses caminhos cada vez mais absurdos e irracionais que esse grupo explora no intuito de preservar seus interesses.

  1. http://www.ifc.org/wps/wcm/connect/bff0a28049a790d6b835faa8c6a8312a/PS6_English_2012.pdf?MOD=AJPERES
  2. O relatório sobre o projeto do Rio Tinto em Madagascar e os impactos do projeto de “compensação por biodiversidade” da empresa, produção de Re:Common e WRM, será publicado em breve.