A Hidrovia Amazônica no Peru: contra os rios que caminham

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Rio Marañón. Foto: Leonardo Tello Imaina

A Hidrovia afirma querer conectar a Amazônia ao mundo, mas esse argumento parte da ideia de que nós estamos desconectados, e isso não é verdade. O que realmente se quer é colocar a Amazônia a serviço do capital, arrastando as pessoas que convivem com suas florestas e rios.

“E quando a grande árvore de Lupuna caiu, deu origem aos grandes e aos pequenos rios, e de suas folhas, nasceram os peixes.”
– História do povo Kukama – Loreto, Peru
O megaprojeto da Hidrovia Amazônica procura criar um megacorredor conectando os mercados brasileiros ao porto fluvial de Yurimaguas, na região amazônica de Loreto, e este, por sua vez, à rodovia interoceânica e ao porto de Paita, no litoral norte do Peru, visando os mercados da Ásia e da Austrália.

A hidrovia pretende escavar o fundo dos rios em 13 trechos pouco profundos, chamados de “malos pasos” (passagens inadequadas), para garantir a navegabilidade nos principais rios da Amazônia durante todo o ano: Amazonas, Ucayali, Marañon e Huallaga. A remoção de rochas e sedimentos do fundo dos rios permitiria que embarcações de grandes dimensões e tonelagem pudessem navegar neles. (1)

O objetivo declarado é conectar a Amazônia ao mundo, mas esse argumento parte da ideia de que, na Amazônia, estamos desconectados. Isso não é verdade. Lá existem inúmeras rotas de intercâmbio e redes de comércio antigas. Os grandes intercâmbios interculturais entre as comunidades indígenas da floresta central do Peru, que ocorreram no cerro do sal, no Ampiyacu, entre outros, mostram não apenas que estávamos e estamos conectados, mas também que havia um intercâmbio comercial e cultural de primeira ordem. (2) A ideia de uma Amazônia desconectada visa apenas o propósito econômico de colocá-la a serviço do capital – uma ideia que nem leva em conta as pessoas que convivem com ela.

O rio é a própria vida e o mundo onde vivemos nós, do povo Kukama, nas florestas tropicais do que hoje é conhecido como Loreto, no nordeste do Peru. Como povo, nosso território abrange espaços que vão além do físico. O rio é um ser, com vida e vontade próprias.

O rio e o povo Kukama

O povo Kukama depende da pesca para sua sobrevivência física e dos rios para sua sobrevivência espiritual e cultural.

O fundo do rio é muito importante para os espíritos que vivem na água, como a purawa (a cobra) ou os karuara, que são as pessoas que habitam as profundezas do rio, sendo transportadas pelos espíritos da água. Os que foram viver no mundo da água se comunicam através dos sonhos com suas famílias, as quais vivem no mundo da terra. As piscinas formadas nas margens dos rios, que permitem que a água continue dando voltas, são o local de vida de nossos ancestrais. Nesse sentido, os Kukama têm uma relação pessoal e profunda com os rios.

Além disso, o fundo do rio é muito complexo para outros sistemas de vida. Muitos peixes vivem, se reproduzem e se alimentam em seu leito. No fundo, há altos e baixos relevos, como as dunas de um deserto, que influenciam a corrente dos rios, às vezes formando remansos e redemoinhos. Isso faz com que diferentes espécies de flora e fauna estejam associadas às dinâmicas do rio.

O rio, ou a “cobra grande”, não pode ser visto como um caminho fixo, e está sempre em mudança e em intercâmbio com a floresta e seus muitos sistemas de vida. O rio tem uma época de inundação e outra de seca. Em tempos de inundação, a água entra na floresta com seus sedimentos, moldando as áreas úmidas, onde é o principal fator controlador da vida. As inundações deixam sedimentos que geram habitats específicos e trazem nutrientes que fertilizam as terras. Além disso, essas inundações também ajudam a conectar os diferentes cursos d’água que alimentam a floresta. Isso contribui para o desenvolvimento de plantas, arbustos e árvores frutíferas necessárias para sustentar a vida na floresta ao longo dos rios. Muitos peixes, além de se alimentarem, desparasitam-se com os frutos de algumas árvores para estar saudáveis ​​durante o verão. As terras fertilizadas também são usadas em diferentes épocas do ano para os cultivos do povo Kukama.

Até os troncos de árvores que caem, derrubados ou pela erosão, são um importante elemento para esses rios. Os restos de árvores – por exemplo, quando os troncos vão para o meio do rio quando caem, onde há mais corrente – contêm a velocidade da água e criam um remanso onde os peixes grandes descansam, cumprindo um papel muito importante. Da mesma forma, as paliçadas que ficam nas margens do rio servem como lugar de reprodução para muitos peixes.

Os rios e a selva são uma coisa só, tudo está unido, nada está separado. Pensar nos rios e protegê-los é pensar em nossas vidas e defendê-las. Os rios falam, sentem e se expressam. Os Kukamas, no entanto, têm que lidar com o ceticismo de engenheiros e concessionários do projeto da Hidrovia, incluindo o Estado.

Rusbel Casternoque, apu ou chefe da comunidade Kukama de Tarapacá, no rio Amazonas, disse (3): “Quando os ocidentais falam sobre as passagens inadequadas, nós continuamos enxergando o que já sabemos: ali pode estar a cauda ou a cabeça da purawa. Quando há uma praia no meio do rio, ali está a Raya Mama. Como de costume, eles ficam em um lugar, e nele se amontoa areia ou o barro, e surge a praia. Portanto, para nós, povos indígenas, a dragagem do rio é uma ameaça que acarreta o risco de que, com o tempo, esses seres sejam retirados dos rios”.

Converter rios em rotas do mercado global

O projeto estabelece uma concessão de 20 anos, para obras de dragagem, ao consórcio COHIDRO, que é a aliança entre a empresa chinesa Sinohydro Corporation e a peruana Construcción y Administración S. A. (CASA). Vale destacar que a Sinohydro Corporation tem um histórico de obras mal executadas e relações de corrupção na região.

Durante o questionado processo de consulta realizado com mais de dez povos indígenas que serão afetados por esse projeto, os funcionários do Ministério dos Transportes e Comunicações prometeram “oferendas” ao povo Kukama, como compensação por afetar a “espiritualidade dos rios”. Levando-se em conta a forte relação dos Kukama com os rios, o que foi feito pelo Ministério representa um profundo desrespeito à coexistência e ao modo de vida desse povo em relação a seu entorno.

Atualmente, o Serviço Nacional de Certificação Ambiental (Senace) está avaliando o Estudo de Impacto Ambiental do megaprojeto.

O projeto Hidrovia, no entanto, ameaça afetar profundamente ao povo Kukama, rompendo crenças ancestrais, bem como meios de vida e sustento.

Onde está a mãe, agora que os maisangara [espíritos maus] chegaram?
Onde está o pai, agora que esses seres estranhos chegaram?
Onde estão os avós? Sinto falta de suas histórias nesta solidão.
A mãe foi levada como escrava à casa do patrão.
O pai foi condenado às estradas, para sangrar com as árvores até morrer.
A avó e o avô choraram e em árvore se converteram.
Fui levado ao fundo do rio.
Tenho uma lança nas mãos.
Tenho um arco e umas flechas
O patrão passa na minha frente e não consegue me ver
Meus pés se transformam em raízes
Meu corpo, uma árvore
Não consegue me ver
Eu me transformo em tigre
Eu me transformo em inseto
Não consegue me ver
Grita o padrão irritado
Não consegue me ver
Um galho da árvore sobe lentamente
Outro galho da árvore sustenta o arco
A flecha atravessa, como um raio, a alma do patrão.

Leonardo Tello Imaina,
Rádio Ucamara, http://radioucamara.net/
Nauta, Loreto
A rádio Ucamara foi fundada em 1992 e chega a ouvintes de mais de 40 comunidades indígenas e ribeirinhas, além da cidade de Nauta. Sua missão é resgatar a cultura e a língua Kukama e socializar informações para reforçar a identidade indígena e fortalecer as comunidades que enfrentam mudanças e processos intensos e bruscos.
Assista à série de vídeos “Rio que caminha” em: http://radio-ucamara.blogspot.com/

(1) AIDESEP, ¡El dragado No Va! y SERVINDI, ¿A qué juega el Senace?
(2) Veja uma nota sobre “El célebre Cerro de la Sal”
(3) Alianza Biodiversidad, Perú Hidrovía Amazónica: Preocupaciones y expectativas del pueblo Kukama, 2018