A usurpação do planeta: a concentração e a privatização de terra, água, ar continuam

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Fala-se muito das crises do planeta: climática, energética, alimentar, de perda de biodiversidade, financeira e mais. Sem dúvida são situações dramáticas cujas maiores repercussões recaem nas costas dos setores mais vulneráveis e despossuídos.

Mas, a estas alturas sabemos muito bem que não se trata de fenômenos naturais nem aleatórios. São manifestações do atual sistema capitalista e sua dinâmica de permanente expansão, que vê funcionalidade nessas crises, visto que elas permitem sua renovação e reciclagem. As bolhas que estouram permitem novos negócios e os investimentos incrementam-se ao amplificarem velhos mercados e criarem novos.

A debacle dos mercados financeiros em 2008 significou grandes perdas para os especuladores cuja necessidade de recuperação os levou a criar novos mercados e novos produtos. O planeta transformou-se assim no cenário de uma nova escalada do capital financeiro.

A “economia verde”, que surge com a proposta de novos mercados para investimentos em novos produtos, exige mais terra, mais água, mais ar, mais minérios.

O avanço sobre a terra

Se bem a apropriação e a concentração de terra não é um fenômeno novo, a crise financeira, e previamente, em 2007, o aumento abrupto dos preços dos alimentos provocado pela especulação nos produtos básicos (commodities), ocasionaram uma nova escalada.

Em pouco tempo, milhões de hectares trocaram de mãos, e também foi modificado o uso da terra. Das comunidades rurais passaram para investidores estrangeiros- e inclusive locais-, geralmente para a produção industrial e comercial de alimentos, ou para a extração de madeira, o comércio de carbono e a mineração, entre outros projetos.

A organização GRAIN- que vem acompanhando o processo e gerencia o site http://farmlandgrab.org que funciona como base de dados- identifica que “os contratos estão sendo assinados, os solos já estão sendo sulcados, a terra vem sendo cercada para manter as pessoas fora dela e as populações locais estão sendo expulsas de seus territórios com devastadoras consequências”. (1)

Por sua vez, conforme um recente relatório da organização GAIA (2), os investimentos nas indústrias extrativas experimentaram uma aceleração nos últimos 3 anos, e não só em metais, minérios, petróleo e gás mas também em seus derivados financeiros associados, isto é, no mercado financeiro associado. Nos últimos 10 anos a produção de ferro aumentou 180%, a de cobalto 165%, a de lítio 125% e a de carvão 44%.

Também estão aqueles que compram enormes extensões de terra para estabelecer áreas para a caça ou para o turismo, e há conservacionistas que pretendem manter áreas no seu estado original.

Seja qual for o caso, o que têm em comum todos eles é o requisito de que a terra esteja sem habitantes- no máximo com os trabalhadores trazidos pelos novos donos da terra. (3) Mas praticamente não há lugar no planeta que esteja desocupado, principalmente as terras férteis, e é por isso que as usurpações acabam expulsando pessoas, comunidades, povos inteiros, desarticulam seus tecidos sociais e até sua própria identidade, e geralmente o fazem de forma violenta. Também perderão as próximas gerações.

O processo de concentração de terras tem sido tão escandaloso que até os próprios organismos que propiciam o agronegócio u reconhecem: um relatório de 2010 do Banco Mundial registra que tão só em 2009 foram arrendados ou vendidos 47 milhões de hectareas.(4) Inclusive a FAO, se bem que trata a questão com bastante cuidado, admite a existência de transações de terras “de uma escala sem precedentes.” (5)

Por sua vez, a OXFAM informa que desde 2001 foram vendidos ou arrendados 227 milhões de hectares de terra nos países do Sul a investidores internacionais, em sua maioria nos últimos dois anos.(6)

Diversos relatórios coincidem que é na África onde houve mais aquisições, certamente porque lá os investidores encontram excelentes condições: grandes extensões de terra, preços baixos, Estados fracos e permissivos que facilitam as transações.

Contudo, não exclusivamente. O avanço sobre as terras chega também à Ásia, América Latina e Europa Oriental. E não só na forma de compra- venda ou arrendamento. Na Índia, a “Missão Nacional por uma Índia Ecológica” (GIM em inglês), que faz parte do Plano de Ação Nacional sobre a Mudança Climática (NAPCC) do governo, planeja plantar 5 milhões de hectares com árvores para a captura de carbono com o fim de associar-se a programas de compensação de carbono como REDD+ ou o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL)- programas que transformam em mercadoria a capacidade de reciclagem do carbono. Os planos implicariam incursionar em terras voltadas para outros usos, como, por exemplo, as terras “marginais”. Mas, as terras que a GIM define como terras agrícolas marginais ou abandonadas têm usos múltiplos, como a pastagem, ou fazem parte dos ciclos de cultivo itinerante. Se forem cobertas de árvores, as comunidades que delas dependem perderão seus meios de vida, conforme denuncia a organização indiana Kalpavriksh (vide Boletim Nº 172 do WRM).

Apropriando- se do ar

No caso do sistema de comércio de carbono- que abre as portas à privatização e à mercantilização das últimas florestas remanescentes- a usurpação estende-se, ainda, ao ar, considerado um “serviço ambiental”, uma mercadoria que pode ser trocada por poluição. O mercado de compensação de carbono introduziu o que se denomina “financeirização” da natureza, na qual as principais fontes de investimento provêm dos mercados de capital (fundos de investimento, bancos, comerciantes de energia e outros especuladores). (7)

Aqueles que poluem, mas não têm dinheiro para comprar bônus de carbono, apropriam-se, de alguma forma, do ar, porque essas licenças de emissão legitimam seu uso pessoal e irresponsável de um bem comum como é a atmosfera. Se a tendência atual continuar, é possível, inclusive, que assistamos à criação de um mercado formal do ar, com alcances inimagináveis.

Água privada

A concentração de terras, por outro lado, está intimamente ligada com a usurpação da água, cuja intensificação é apresentada pela organização Transnational Institute (TNI) também a partir da crise financeira de 2008.(8) Em ambos processos, a água é controlada por interesses poderosos que fazem um uso maciço para seus próprios negócios que têm o lucro como principal objetivo, em definhamento das comunidades locais cuja sobrevivência está baseada no uso comum da água e de seus ecossistemas associados.

Isso vem ocorrendo em um contexto em que, conforme dados da organização TNI, quase 3 bilhões de pessoas vivem em zonas onde a demanda de água é superior à quantidade de água disponível, e 700 milhões de pessoas em 43 países vivem de uma quantidade de água abaixo nível mínimo de água necessária de 1.700 m3 por pessoa ao ano, o que resulta na situação chamada de “stress hídrica”.

A água, um bem comum de acesso público passa a ser considerada uma matéria prima a mais, de caráter privado. Sua usurpação apresenta diversas formas, que incluem desde a apropriação do mar que expulsa os pescadores tradicionais por causa das explorações petroleiras, a pescaria industrial ou as granjas camaroneiras até a construção de mega barragens, e o uso e a poluição da água pela mineração- que tem maior alcance por causa da nova tecnologia da “fratura hidráulica”(9) - ou a produção industrial em grande escala de monoculturas com fins alimentares ou não alimentares, que exigem uso intensivo de água- pelo menos dez vezes maior que a exigência dos sistemas agrícolas diversos.

Entre as monoculturas existe uma crescente tendência de implantar plantações de árvores destinadas para a energia de biomassa, as quais, por sua vez, podem ser destinadas a outros mercados- madeira, celulose o créditos de carbono- conforme a conveniência dos preços. Além disso, crescem as plantações de biomassa, por exemplo, na região seca do nordeste brasileiro, para abastecer as usinas que geram energia a partir de madeira- algo que está sendo fomentado principalmente na Europa como energia “renovável”.Numerosos testemunhos confirmam as dramáticas situações que estas plantações provocam nas comunidades locais e nos ecossistemas, por causa da ocupação do território e o uso excludente das fontes de água. A situação se agrava quando não existem direitos sobre a terra legalmente reconhecidos, ainda mais para as mulheres, que costumam sofrer uma especial discriminação no reconhecimento de seus direitos à terra.

Não existe usurpação responsável

Neste novo colonialismo que se internacionalizou, os efeitos são evidentes e surge um divisor de águas no momento de identificar a saída. Na concentração tanto da terra, quanto da água, e do ar, o que subjaz é o modelo econômico extrativista industrial, em grande escala, especulativo e consumista do capitalismo com seu mais descarado rosto neoliberal.

As soluções que continuarem dentro desses parâmetros não serão soluções de jeito nenhum. É possível, por acaso, uma expulsão de terra “responsável”, uma poluição “responsável”, uma perda “responsável” da identidade e da dignidade como povo?

Contudo, há propostas nessa linha que- da mesma forma que os “selos verdes” da certificação, as mesas-redondas de produção sustentável, as iniciativas “transparentes”, acabam legitimando e dando uma aparência de “responsabilidade” a uma situação que é intrinsecamente “irresponsável”. É o caso dos sete “Princípios de Investimento Agrícola Responsável que Respeitem os Direitos, os Meios de Sustentação e os Recursos” (conhecidos pela sigla IAR), promovidos pelo Banco Mundial, e a partir de 2010, em forma conjunta com o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e a Organização para a Agricultura e a Alimentação (FAO). Os princípios, de caráter voluntário, podem ser usados por investidores no momento de adquirir terras agrícolas em grande escala como uma prova de sua boa disposição em realizar um empreendimento “responsável”.

Mas os princípios basicamente aceitam as transações de terras, equiparando a todas as “partes interessadas” como iguais. Falam de possíveis cenários nos quais “todos ganhem”, ignorando as questões políticas e as desigualdades estruturais.

E não falam em absoluto sobre a reforma agrária, uma medida amplamente reivindicada pelos movimentos sociais no contexto do direito humano à alimentação. A decisão de quem tem direitos sobre a terra, em definitivo, é- como afirma a Campanha Global pela Reforma Agrária /Rede de Investigação- Ação sobre a Terra, impulsionada pela Via Campesina, FIAN Internacional, Focus on the Global South, Rede Social pela Justiça e os Direitos Humanos- “essencialmente um problema político que envolve conflitos de interesses e relações de poder, e não só um problema técnico ou administrativo. (...) A história evidencia que quase sempre, quando é usado um enfoque técnico universal para os direitos da terra, prevalecem os interesses do capital dos ricos (e do Estado), que dá lugar a uma maior marginalização das classes trabalhadoras através do deslocamento ou do despojo.”(10)

Por outra parte, os IAR manejam o conceito de “segurança alimentar”, um conceito limitado que não coloca em xeque o modo de produção, distribuição e consumo que provocou a crise alimentar. Alimentos poderiam ser produzidos pela agricultura industrial, mas em detrimento do desmantelamento de comunidades rurais e de esgotar e poluir os solos e a água, além do ar. Por isso, a Via Campesina e outras organizações através da Campanha Global pela Reforma Agrária falam do direito à soberania alimentar. E a concentração de terras é incompatível com a soberania alimentar porque seu motor é o lucro em sua máxima expressão: promete aos investidores uma taxa de lucro de 20%, enquanto a produção alimentar dá lucros de 3 a 5%.

A discussão, portanto, não deve estar focalizada em mitigar os impactos negativos dos projetos de investimento em grande escala - o que geralmente se reduz a uma estratégia de relações publicas-, mas em identificar que tipo de investimentos são necessários para resolver a fome e apoiar os setores camponeses e as comunidades rurais em seus direitos sobre a terra.

A Via Campesina e a Rede de Camponeses/as e Produtores Agrícolas da África Ocidental (ROPPA) junto a outros grupos impulsionaram em 2011 o “Chamamento de Dakar contra a Concentração de Terras”, ao qual já aderiram numerosas organizações sociais. A iniciativa pretende transformar-se em “veículo para forjar amplas alianças em nível local, nacional e internacional e para abrir o caminho a grandes mobilizações que apoiem a todas as comunidades e organizações populares em sua defesa contra a concentração de terras. O chamamento clama por medidas imediatas para deter a concentração de terras e para restituir as terras subtraídas às comunidades locais. Além disso, inclui várias reclamações aos governos nacionais e organizações internacionais.”(11)

Não existe usurpação responsável. Essa é o divisor de águas.

1- “Es hora de prohibir el acaparamiento de tierras, no de darle una fachada de 'responsabilidad'”, Vía Campesina, GRAIN e outros,http://www.grain.org/article/entries/4229-es-hora-de-prohibir-el-acaparamiento-de-tierras-no-de-darle-una-fachada-de-responsabilidad

2- OPENING PANDORA'S BOX:The New Wave of Land Grabbing by the Extractive Industries and The Devastating Impact on Earth, The Gaia Foundation, 2012, http://www.gaiafoundation.org/sites/default/files/executivesummary.pdf

3- “The Land Grabbers”, Fred Pearce, citado por Gaia Vince em “Hungy for Land”, Conservation Magazine, março de 2012,http://www.conservationmagazine.org/2012/03/hungry-for-land/

4- Rising Global Interest in Farmland, http://siteresources.worldbank.org/INTARD/Resources/ESW_Sept7_final_final.pdf

5- “Land Grab Or Development Opportunity?”, FAO, IFAD, IIED, 2009, Capítulo “Trends and drivers”,ftp://ftp.fao.org/docrep/fao/011/ak241e/ak241e02.pdf

6- “Land and Power. The growing scandal surrounding the new wave of investments in land”, OXFAM, setiembre 2011,http://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/bp151-land-power-rights-acquisitions-220911-summ-en.pdf

7- “Mercados de carbono. La neoliberalización del clima”, Larry Lohmann, 2012, Edições Abya-Yala,http://www.wrm.org.uy/temas/REDD/mercados_de_carbono.pdf

8- “The Global Water Grab: A Primer”, Jennifer Franco e Sylvia Kay, Transnational Institute, março de 2012,http://www.tni.org/primer/global-water-grab-primer

9- A fratura hidráulica injeta água pressurizada com produtos químicos que fraturam as rochas dentro de um poço petrolífero para extrair o petróleo preso nas ramificações das fendas do subsolo. É uma técnica que polui o terreno e o lençol aquífero.

10- “Por qué nos oponemos a los Principios de Inversión Agrícola Responsable (IAR)”, Campanha Global pela Reforma Agrária / Rede de Investigação-Ação sobre a terra, FIAN Internacional, Focus on the Global South,La Vía Campesina, Rede Social pela Justiça e os Direitos Humanos, outubro de 2010, http://www.landaction.org/IMG/pdf/FINAL_Edited_why_we_oppose_rai_SP_0514p_.pdf

11- Chamamento de Dakar contra a Usurpação de Terras, http://www.petitiononline.com/dakares/petition.html