Aprendizagens de lideranças indígenas Tupinikim do Brasil sobre a retomada de seus territórios: uma luta de mais de 40 anos

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Lideranças indígenas Tupinikim do Brasil relatam a experiência de seu povo na luta contra uma das maiores empresa de plantação de eucalipto e produção de celulose do mundo: a Aracruz Celulose – a atual Suzano Papel e Celulose. Falam sobre os aprendizagens de uma luta durante a qual os indígenas recuperaram 18.070 hectares de terras.

Esta é o primeiro artigo numa série sobre a experiência de comunidades que retomaram seus territórios, invadidas por monocultivos de árvores. Neste artigo, duas lideranças indígenas Tupinikim do Brasil relatam a experiência de seu povo na luta pela terra contra uma das maiores empresa de plantação de eucalipto e produção de celulose do mundo: a Aracruz Celulose – a atual Suzano Papel e Celulose. Falam sobre as principais aprendizagens, desafios e dificuldades.

Em 1500 quando a invasão do Brasil pelos colonizadores portugueses começou, os Tupinikim habitavam um trecho de milhares de quilômetros de litoral brasileiro, do Nordeste até o Sul do país. Depois de séculos de enfrentamentos, genocídio e massacres, nos anos 1960, eles restavam apenas num pequeno território no atual município de Aracruz, norte do estado do Espirito Santo, onde convivia em 40 aldeias numa área de mata atlântica. Foi nessa época que um grupo de indígenas Guaranis, em busca da Terra sem Males, se juntaram a eles.

Em 1967, em plena ditadura militar, a Aracruz Celulose invadiu este território e destruiu quase todas as aldeias indígenas, inclusive a aldeia Macacos, onde mais tarde seria construído o complexo de 3 fábricas de celulose da Aracruz. Os Tupinkim e Guarani ficaram confinadas a 3 aldeias apenas. Além de perder o território, a Aracruz derrubou a maior parte da floresta para plantar a monocultura de eucalipto.

O que parecia o golpe mortal, foi, na verdade, o início de uma luta de mais de 40 anos durante a qual, em 3 etapas, os indígenas recuperaram 18.070 hectares de terras. O governo federal reconheceu e demarcou 4.492 hectares em 1981, 2.568 hectares em 1998, e, por fim, outros 11.000 hectares em 2007 como Terra Indígena Tupinikim-Guarani.

Para isso acontecer, os indígenas tiveram que pressionar o governo para que ele assegurasse o direito dos Tupinikim-Guarani às terras tradicionalmente ocupadas, prevista na Constituição brasileira.  Para isso, em 1980, 1998 e 2005, os Tupinkim e Guaranis usaram a tática que chamam de “auto-demarcação”. Em base da identificação de terras feita anteriormente por um grupo técnico nomeado pelo governo federal, em conjunto com as comunidades, os indígenas derrubaram os eucaliptos da Aracruz para delimitar, por contra própria, seu território.

Apesar de ações violentas da polícia e da Aracruz que destruíram aldeias que os indígenas tinham reconstruída na área retomada; apesar de uma campanha racista promovida pela Aracruz alegando,  sugerindo que os Tupinikim não eram indígenas, os Tupinikim e Guarani se mantiveram firmes e continuaram na luta até o ministro da justiça assinou, em 2007,  a portaria de demarcação reconhecendo oficialmente suas terras.

Mas a luta ainda não acabou. O governo anti-indígena do Jaír Bolsonaro com outras forças anti-indígenas buscam adotar agora o chamado “marco temporal”, que sugere que só se pode demarcar terras indígenas onde os indígenas estavam presentes em 1988. Isso pode resultar na anulação da maior parte das terras dos Tupinikim e Guarani no Espirito Santo.

O WRM conversa sobre os 40 anos da luta pela terra Tupinikim-Guarani com Deusdeia Tupinikim, liderança mulher da aldeia de Pau Brasil, e Paulo Henrique, liderança Tupinikim da aldeia de Caieiras Velhas e coordenador da organização indígena APOINME que luta pelos direitos dos Povos Indígenas do Nordeste do Brasil e dos estados Minas Gerais e Espirito Santo.

WRM: Nesta luta de 40 anos vocês tiveram três momentos de luta em que fizeram a auto-demarcação do território. Como começou esta luta e o que é a auto-demarcação?

Paulo: primeiro agradecer poder falar com vocês e repassar para as comunidades que estão com esse desafio de retomar seu território um pouco do que nós fizemos. Aqui no Brasil, a luta pela terra ainda é um gargalo e desafio para muitos povos, comunidades e movimentos sociais. Nós conseguimos, mesmo sabendo que estes 18.070 hectares de terras não é o território integral, mas é o que foi pleiteado na época pelas lideranças junto com a FUNAI [órgão governamental para assuntos indígenas] e foi considerado o mínimo suficiente para a reprodução física e cultural dos povos indígenas aqui na região. Na primeira luta, eu era criança ainda. Na segunda participei um pouco e na terceira eu participei mais intensamente.

Para iniciar uma luta pela terra, o principal é saber o que você quer e ter provas concretas como subsídio para que você possa entrar numa luta dessa de forma respaldada. Nós tínhamos documentos históricos comprovando nossa ocupação tradicional do território, inclusive um documento de 1610 que mostra que a Coroa Portuguesa tinha doado uma sesmaria de terras aos Tupinikim, nas terras invadidas pela Aracruz Florestal depois.

A gente fez a auto-demarcação três vezes, em 1980, 1998 e 2005. Significa demarcar nos mesmos nosso território.  Em cada momento que fizemos isso, sabíamos que a gente tinha que fazer algo, partir para luta, porque o governo tinha paralisado, arquivado nosso processo. A gente tinha que forçar o governo para eles retomar o processo e reconhecer e demarcar nosso território. Fizemos a auto-demarcação com todas as comunidades participando.

Deusdeia: entramos na luta pela terra porque para nós foi muito importante a questão da água: as restingas, as nascentes, os olhos d´água. A gente começou também a identificar, separar algumas terras para a natureza ter a liberdade para voltar. Também precisávamos de mais espaço porque hoje só aqui na aldeia de Pau Brasil, nós temos mais de 200 famílias. Então nosso maior sonho era ter esse espaço para que nossos filhos e netos pudessem construir suas casas, ter liberdade de sair, ter liberdade de pescar, liberdade de plantar, e cuidar do meio ambiente porque até então, a Aracruz plantava eucalipto até nas grotas, na beira e dentro dos córregos e rios. Em função da nossa luta, vários córregos nos lugares onde não tem mais a plantação de eucalipto começaram a voltar.

WRM: Quais foram as principais lições que vocês tiraram desta luta tão longa?

Paulo: A primeira lição que tiro é que nada é impossível. Lutamos contra uma empresa multinacional. Fomos muito criticados, sofremos retaliações por parte do governo, sofremos perseguições, preconceito e discriminação, mas não baixamos a cabeça.

Segunda lição é a união dos povos, deixar as diferenças de lado que existem entre alguns e se juntar e lutar contra um inimigo maior que naquela ocasião era a Aracruz Celulose. E não existia ninguém maior, ninguém menor, todos estávamos no mesmo barco. Se um levasse um tiro, todos iriam levar, se um pudesse comer, todos iam comer. Essa igualdade foi muito importante.

A terceira lição é a importância de ter um único objetivo. Nosso objetivo era a conquista do território e em momento algum nos desviamos deste objetivo. Poderíamos traçar diferentes planos para alcançar nosso objetivo mas o objetivo era claro e único.

Deusdeia:  Esta luta foi um grande aprendizado e ao longo dos anos a gente foi crescendo, vendo como a gente podia melhorar a luta. A cada luta, os caciques junto com as comunidades tinham mais noção das leis, de como se podia reunir e fazer as estratégias. Uma das coisas que marcou para mim foram as lutas de 1998 e 2005 porque foi quando nos, mulheres, nos envolvemos bem.

WRM: Quais foram os desafios para as mulheres indígenas entrarem nesta luta? Como é que vocês tomaram coragem de estar lá na ocupação, junto aos homens?

Deusdeia: Eu me recordo bem quando nos reunimos [no 1º.  dia da auto-demarcação em 2005, quando a polícia estava chegando] quando os caciques e lideranças, pelos quais eu tenho muito respeito, falaram que quem quiser ir para casa que fosse para casa e que eles iam ficar até o fim. Estávamos em muita gente. O que a gente fez de tomar a atitude de não deixar os caciques só, eu não sei. Acho que nosso deus Tupã, ele nos encorajou muito, para nos tomarmos coragem juntamente com nossos líderes. E quando você tem certeza que daquilo [a terra] é meu, você vai sem medo de errar. Então, foi quando nós mulheres, falamos que nós viemos até aqui e que nos só ia sair daqui com tudo mundo quando conquistamos a terra.

Lembro que quando ocupamos a fábrica da Aracruz, nós mulheres e as crianças ficamos mais de frente. Falaram que não fizeram nada com os homens por causa da presença das mulheres e das crianças e isso nos fortaleceu enquanto mulher. Em todas as ações que fizemos, nós estávamos lá, com nosso arco e flecha, com nossos cocares, e quando nós nos colocamos na frente a gente via que eles [os policiais] não enfrentavam. Quando eles chegaram lá em Olho d´Agua com aquele trator para destruir a aldeia, a casa de reza, nós não estávamos ali na hora.

Até hoje dentro das reuniões nas comunidades, a gente tem voz, e a gente fala. E isso fortaleceu as mulheres. Aquilo de antigamente quando as mulheres ficaram nos bastidores, hoje não acontece mais. Hoje estamos lado a lado aqui na luta. E se tiver que ir à luta de novo, com certeza estarei lá se puder. Aqueles jovens que viajaram para Brasília agora lutar contra o “marco temporal”, eles mandavam mensagens para mim: “olha mulher, você é uma guerreira, nos estamos aqui porque nós nos inspiramos em você”. Isso para mim é uma honra, de saber que através da nossa luta, não só minha luta  mas a luta de muitas mulheres das quais algumas já partiram enquanto outras continuam na luta, que os jovens de hoje se inspiram.

WRM: Quais foram os principais desafios, dificuldades que tiveram nesta luta?

Paulo: O principal desafio para iniciar a última luta em 2005 foi de colocar na nossa cabeça que o território era mais importante do que um acordo que tinha sido feito em 1998 com a Aracruz Celulose. As lideranças, as comunidades, eles estavam pegados a este Acordo que demarcou um pedaço do nosso território, repassava dinheiro e alguns outros benefícios para as comunidades e, em troca, deixava boa parte de nossas terras com a Aracruz. Foi um desafio enorme e eu senti isso na pele porque era um dos poucos que questionava este Acordo. Mas fizemos este trabalho nas comunidades, de conversar com as pessoas, até que obtivemos uma liderança em todas as comunidades que entendia que nossa luta era pelo território.

Outro desafio, relacionado com este Acordo, era de desapegar das coisas que tínhamos conseguido em 1998, eram vagas na faculdade, eram projetos de agricultura, era dinheiro repassado para as famílias da venda de eucalipto plantada nas terras indígenas para Aracruz Celulose, desapegar disso para então ir para a luta pelo território. Fomos muito criticados, dizendo que nós estávamos acabando com tudo, que não ia ter mais nada, mas ficamos firmes e conseguimos mostrar que o território era de extrema importância.

Isso acarretou num desafio ainda maior que foi juntar todas as comunidades para poder ir para luta. Fizemos uma assembleia geral e sobretudo a fala dos mais velhos foi de extrema importância porque conseguiram mostrar para as pessoas a importância da luta pela terra e aí conseguimos juntar e convencer todas as comunidades para se juntar e entrar nesta luta.

Claro que tivemos muitos outros desafios. Lembro em plena luta, pessoas falando: ‘para que estamos aqui, lutando por essas terras. Vamos deixar essas terras com a Aracruz e ficar ganhando dinheiro com eucalipto’ e tentando influenciar a cabeça das outras pessoas desistirem. Então a gente tinha que fazer um trabalho constante de conscientização da comunidade estarem juntos com as lideranças na luta.

Outro desafio foi em janeiro de 2006 quando a polícia invadiu nosso território (retomado) e desmanchou nossa aldeia Olho d´Água que nós tínhamos reconstruído. Lembro que fui o primeiro a chegar lá, tentando conversar com o comandante da polícia que estava de frente para não fazer aquilo e tentar intermediar e enfim, acarretou em toda essa violência que aconteceu lá. Mas nós somos índios, somos teimosos, e nós fomos lá e reconstruímos Olho d´Água outra vez e está lá hoje graças a deus.

WRM: Foi nesta última demarcação que vocês não só demarcaram o território, mas decidiram ocupa-lo, reconstruindo algumas das antigas aldeias extintas como Olho d´Agua. Porque vocês acharam importante ocupar o território?

Deusdeia: Segundo os depoimentos dos nossos mais velhos, tinha cerca de 40 aldeias indígenas antes da chegada da empresa. Quando começamos a luta, nos saímos com os mais velhos, por exemplo, o Sr. Antonino da minha aldeia. Ele levou nos aonde ele morou, na aldeia de Cantagalo. Na época quando ele morou lá, tinha um rio grande, por isso a gente achou uma quantidade imensa de casca de ostra. Aquela casca era como nossa identidade que estava lá, mostrando que lá tinha sido moradia do povo indígena. Hoje não tem mais eucalipto lá, felizmente.

Quando nós decidimos tomar posse desse território, era para o mundo ver essas aldeias extintas, ver todo esse grande território que é dos povos indígenas, e quando essas aldeias foram resgatadas, por exemplo no caso de Olho d´Água, tem uma história. Eu falo de Olho d´Água como um filho pedindo socorro. Porque quando foi plantado o eucalipto lá, aquele olho d´água nunca secou, continuou vivo, mas pedindo por socorro. Mesmo com a plantação de eucalipto, ela não se calou. O resgate daquela aldeia foi como um sonho.

Paulo: Mesmo irreconhecível para os olhos de alguns, aquelas aldeias antigas para os olhos dos indígenas mais velhos não estavam irreconhecíveis, eles tinham uma relação íntima com aquele espaço. Por isso, era importante reconstruir elas para poder recomeçar a ocupação o território. Ou seja, não é apenas importante demarcar. Decidimos ocupar para poder mostrar que a gente estava aí não apenas brigando por terra, mas brigando por nossos espaços sagrados, onde viviam nossos antepassados. Um terceiro ponto é que as três aldeias que reconstruímos, Areal, Olho d´Água e Córrego d´Ouro, eram pontos estratégicos dentro do território retomado para mantermos a vigilância, o monitoramento do nosso espaço, para gente saber quem estava entrando e quem estava saindo do nosso território.

WRM: houve um processo de aprendizagem ao longo desta luta de 40 anos?

Paulo: Sim, e gostaria de destacar que teve entre uma demarcação e outra, processos de cooptação de lideranças que estavam à frente da luta, principalmente no período de 1998 a 2005 que mais acompanhei. Porque eu penso que a gente tinha condições naquele momento, em 1998, de ter terminado a demarcação do território. Mas infelizmente, durante a auto-demarcação, as lideranças foram pressionadas e levadas para Brasilia, foram cooptados e decidiram aceitar um Acordo trocando terras por dinheiro e então parar com a luta. Mas em 2005 decidimos retomar a luta porque entendemos que a terra era mais importante que o dinheiro. Por isso eu falo da importância do objetivo e que tem que ser comum a todos. E com isso, aprendemos muito, a luta pela terra foi como se fosse uma escola que nos habilitou também travar outras lutas. Até porque nossa luta não acabou, ela continuará porque há novas ameaças ao nosso território.

WRM: Como a luta pela terra tem a ver com a luta pelo resgate e fortalecimento da identidade cultural dos Tupinikim?

Paulo: a luta pela terra faz parte desta luta de resgate da nossa cultura. Primeiro porque é uma terra tradicional Tupinikim, mas antes de tudo, queria dizer que a demarcação do território indígena deveria ser visto por nossos povos como a principal bandeira de luta e por nossos governantes como a principal política pública para os povos indígenas. Isso porque o território ele é o princípio de tudo. Se eu não tenho o território garantido, eu não tenho uma educação, uma saúde de qualidade, eu não tenho um meio ambiente que garante minha sobrevivência, minha subsistência, eu não vou ter um espaço para fazer minhas práticas tradicionais. Então quando demarcamos, ocupamos e reconstruímos as aldeias para nós poder fazer nossas práticas, nossos rituais e cerimonias, é porque nosso território indígena é que proporciona isso. Nós precisamos ter essa relação com a terra, com os elementos da natureza.

Deusdeia: Quando nós começamos esta luta para reconquistar o território, começou também crescer um desejo de nos ter uma educação indígena nossa, com nossos educadores, e nos recuperar nossa língua. Conhecemos um professor de São Paulo, o Navarro, que faz este trabalho com diferentes povos de resgate da língua, e conseguimos também conhecer um índio do Povo Potiguara, que resgatou a língua, parecida com a nossa, e hoje já é a língua materna deste povo. Conseguimos trazer essas pessoas aqui e ter aulas com eles. Aproveitamos os mais velhos porque eles tinham palavras soltas. Começamos a fazer as pesquisas sobre a língua e minha avó disse na época primeiro que não ia falar para nós como que era antigamente a língua porque ela não queria que acontecesse conosco o que aconteceu com ela. Ela casou com uma pessoa não-indígena e apanhou muito para que ela falasse ´direito´. Foi o machismo querendo calar as mulheres para não falar sua língua. Mas a gente conseguiu anotar essas palavras soltas dela. Aí surgiu a necessidade de levar esse resgate para dentro da sala de aula com as crianças e professoras indígenas. Tudo isso foi um grande avanço e aconteceu junto com a luta pela terra.

WRM: Durante a última luta em 2005-2007, a Aracruz lançou uma campanha racista dizendo que vocês não eram Tupinikim, sugerindo que vocês não eram indígenas. Qual foi o impacto disso para vocês e para a luta?

Deusdeia: Aracruz ela tentou de tudo para mostrar para o governo, para o mundo, que nos não éramos daqui, e também que nós não éramos indígenas. Mas isso não nos intimidou, porque nós tínhamos certeza que somos deste território. A nossa segurança são os relatos dos mais velhos. Nós fomos muito firmes em nos nossos relatos. Nós realmente questionamos ela e continuamos a luta. Por exemplo, em 2006 fizemos uma ação e ocupação das fábricas da empresa. Nada que nos atingia lá dentro, muito pelo contrário. Nos sentamos aí com crianças, com mulheres, até as pessoas de idade também estavam lá. E quando nos saímos daí e quando nós íamos para um enfrentamento, nós tínhamos certeza de não morrer, mas sim de irmos para uma conquista. E quanto mais a Aracruz ela trazia estes depoimentos dela, sempre a gente tinha certeza, com pé no chão, de que essa mãe terra, ela estava alí nos sustentando e que os filhos dos nossos filhos elas estarão sendo enterradas aqui neste chão.

Paulo: Eu me recordo que uma vez eu fui na cidade de Aracruz, fazer compras no supermercado, e eu estava com corpo pintado e minha filha também, isso na verdade foi já um tempo depois da luta, mas só para você ver como isso ainda refletia na cabeça das pessoas aqui no município. Eu estava na fila para comprar carne entre outras pessoas, mas ninguém queria me atender. Eu disse: ‘só porque sou índio, só porque estou pintado, ninguém quer me atender?’ Peguei minhas coisas e saí. Aconteceu muitas coisas desse tipo. Tinha criança indo para escola fora da aldeia, e se estivesse pintado não entrava, mandavam embora porque era índio. Também sofremos perseguição e criminalização por lutar pela defesa por nosso território. Uma vez uma liderança foi perseguido por um segurança armado a serviço da Aracruz. Com outra liderança, fomos ao encontro dele, e tomamos a arma dele, entregamos na FUNAI. Aconteceu que nos tivemos que responder judicialmente, fomos processados por roubo de veículo, formação de quadrilha, sequestro, etc.,  como se nos fossemos os criminosos, enquanto este segurança poderia ter matado nossa liderança no meio da estrada.

Toda essa discriminação e perseguição perdurou ainda por muito tempo,  depois da luta terminar, porque a Aracruz tinha fomentado isso, que nós estávamos aqui para invadir as terras, tomar todo o município, que íamos até invadir as casas das pessoas, foi assim que as pessoas falavam da gente e começaram a se revoltar contra nos. Isso gerou uma situação muito ruim, constrangedora. Nossas crianças chegaram a dizer que não queriam ser índios. Mas nós conseguimos superar, trabalhar isso entre nos e estamos aí para poder mostrar que somos um povo resistente, que não fugimos à luta. Não conseguiram quebrar nossa resistência, porque estávamos determinadas no nosso objetivo e esse objetivo nos mantivemos até o final.

WRM: Como foi a relação com os apoios à luta, e porque estes apoios foram importantes?

Deusdeia: a importância destes apoios foi muito grande, porque acreditaram, tinham compromisso com a gente. Eram, organizações, movimentos, outras comunidades, professores, estudantes e também alguns políticos. Ajudaram muito a revelar ao mundo que os índios não estão mentindo, são originários daqui. Fizemos juntos folders sobre nós e nossa luta que foram enviados para dentro e  fora do país e, com isso, nosso apoio cresceu. Nossa conquista ela veio também por causa do apoio fora do Brasil reforçando o repudio contra a Aracruz. Mesmo que a Aracruz ela tinha muito dinheiro, muito poder, o dinheiro dela não  nos calou, não conseguiu comprar pessoas e organizações nos países que consumiu seu produto e se juntaram a nós. Isso para nos foi uma vitória muito grande. Confrontamos a empresa pelas beiradas e quando ela percebeu, já estava sendo cercada por aqueles que nos apoiavam lá fora e nos na mobilização dentro das comunidades. Se não fossem esses apoios, a gente tinha conquistado a terra também,  mas acredito que teria demorado mais.

Paulo: as pessoas que se sensibilizaram com a nossa luta, com a luta indígena, foram cruciais, aqueles que junto conosco decidiram entrar na luta e em momento algum arredar o pé dela. E isso só mostra a importância da articulação, de que uma luta grande como esta que nos tivemos aqui, a gente não ganha sozinha mas precisa de pessoas e organizações no Brasil e fora do Brasil, que estejam conosco para poder alcançar aquilo que queríamos.

WRM: O que você diria para outras comunidades que querem entrar numa luta de retomada de território. O que é importante cuidar e o que é melhor evitar?

Paulo: Além da importância de ir numa luta respaldada, de colocar pressão como nos fizemos fazendo nossa auto-demarcação, é de extrema importância também que estejam organizados. Não adianta você querer entrar numa luta quando você está desorganizada. Você precisa estar organizada. Se entrar desorganizada você não vai ter êxito na sua luta.

Outra coisa é se for mais de um grupo, comunidade ou povo, de ter um objetivo comum. Não adianta eu querer entrar com um objetivo de querer conquistar um território entendendo que ele é importante para minha sobrevivência, subsistência e existência, enquanto outros estão querendo entrar numa luta com interesses individuais, de querer se enriquecer, e que não são interesses que contribuem com o futuro, os interesses coletivos das comunidades. Porque a gente sabe que tem muito disso no nosso meio.

Por fim e não menos importante é pensar em estratégia. Você precisa ter uma estratégia de luta. Como você vai entrar numa luta sem você ter uma estratégia? Quando nos entramos na auto-demarcação já tínhamos tudo planejado, conversado, tínhamos uma estratégia.

Deusdeia: Acho que uma das primeiras atitudes é a unidade, união para mim é uma coisa. Unidade, é outra, é uma coisa que mistura e não tem como separar. É tudo mundo pensar igual, é ter uma estratégia, é buscar apoio que realmente ajuda nessa organização da própria comunidade reivindicar seu território. É através da união que podemos nos organizar e também resgatar e fortalecer nossa cultura, nos resgatamos muito da nossa cultura que tinha se perdido como artesanatos e nossas danças e língua que já falei.

A gente também precisa se unir com outras comunidades. Hoje, no Brasil inteiro, a gente está se unindo para defender nosso território, os indígenas, comunidades quilombolas, os ribeirinhos, o MST, contra a discriminação e perseguição contra nossas comunidades. Temos que fortalecer nossa identidade como faz o MST nos seus assentamentos, eles provam sua identidade através da plantação das culturas que saem das hortas deles e vêm para mesa da população, até mesmo dos governantes que hoje querem tirar o direito de eles sobreviver.

Então tem que se organizar, sentar com tudo mundo e ter estratégia, ter cuidado. Por exemplo, não deixar pessoas de fora entrar na comunidade e pegar qualquer um, não, tem que saber dizer com quem vai falar, porque foi assim também que a gente se organizou. Até isso a gente tem que ter estratégia, tem que ter cuidado. Mas com sabedoria, e com os conhecimentos tradicionais de cada povo, a gente consegue fazer a luta crescer ainda mais.

WRM: se o governo Bolsonaro consegue impor o “marco temporal” e que poderia implicar na perda de parte do território de vocês, os Tupinikim e Guarani vão abrir mão das terras?

Paulo: Não vamos abrir mão das terras, vamos lutar, vamos morrer até o ultimo indigena, porque é nossa terra, nosso território, e vamos defender ele a todo custo, ninguém tira isso de nós.