Chile: megaincêndios florestais, crimes empresariais e impunidade

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incendios Chile

Na região centro-sul do Chile, têm se expandido progressivamente os megaincêndios florestais, que abalam o país de tempos em tempos, relacionados às plantações industriais de monoculturas de espécies exóticas de pínus e eucalipto. O último deles aconteceu no verão de 2017 e, no início de fevereiro, registrava quase 600 mil hectares devastados, distribuídos em algumas áreas da Região de O’Higgins, em todo o Maule e em grande parte do Bio Bio. Em sua maioria, os focos foram gerados intencionalmente nas plantações, deixando onze pessoas mortas, 1.551 propriedades queimadas, 6.162 danificadas, e perdas econômicas e materiais milionárias, além de danos ambientais profundos. (1)

Três teses foram levantadas na agenda pública em relação a intencionalidade. A primeira está relacionada à chamada rede internacional de corrupção para o lucro, que se beneficiaria dos megaincêndios. (2) A outra é um fato que não foi considerado oficialmente como motivador dos incêndios, apesar de ser conhecido em instituições públicas: as pragas descontroladas nos plantios de monoculturas, que estavam em áreas devastadas. (3) A terceira é a que foi levantada por certos grupos de ultradireita, relacionada a atos de “Terrorismo Mapuche”. Eles criaram uma campanha de notícias falsas (4) que visa a desviar a responsabilidade de empresas de plantação, acusando comunidades indígenas Mapuche, embora, desta vez, os incêndios tenham ocorrido em áreas onde praticamente não há comunidades mapuches.

Na visão de várias organizações, há uma ação orquestrada, com intenção clara. A maioria das áreas afetadas por incêndios estava plantada, em grande parte, com monoculturas de pínus e eucaliptos que foram afetadas por pragas. (5) Algumas dessas pragas estavam absolutamente fora de controle e continuaram aumentando em todo o centro-sul do Chile, como no caso da chamada “vespa da madeira ou Sirex noctilio”. (6) Isso vem sendo denunciado desde 2012 (7), no contexto dos focos de incêndio da temporada de verão, que, na ocasião, deixaram cerca de 60 mil hectares arrasados e sete membros de brigadas florestais mortos. (8) Um grupo de políticos também tentou apontar “causas mapuches” por meio de uma campanha na mídia, incluindo a aplicação de lei antiterrorista contra as comunidades indígenas. Assim, instrumentalizam-se os históricos conflitos latentes com comunidades mapuches em função da concentração de terras por parte das empresas de plantação, gerando uma grave onda de racismo, intolerância e xenofobia, cujo contexto foi objeto de uma investigação jornalística e da publicação de um livro em 2014. (9)

Estima-se que haja três milhões de hectares de plantações florestais no centro-sul do Chile, dos quais 750 mil hectares correspondem ao consórcio CMPC, cuja empresa principal é a Florestal Mininco, controlada pelo grupo Matte, que tem uma fortuna superior a 11,5 bilhões de dólares. A outra empresa que está presente concentra mais de 1,2 milhão de hectares e corresponde ao consórcio Copec-Antar Chile, cuja principal empresa do setor florestal é a Celco-Arauco, do grupo Angelini, também com uma fortuna de bilhões de dólares. Ambos os grupos econômicos estão ligados, no Chile, a situações de corrupção, saques, conspirações e conluio. (10)

As empresas florestais receberam bilhões de pesos dos cofres do Estado todos os anos. Em 2017, em meio a grandes manifestações, mais de uma centena de organizações apontavam: “Fazemos um chamado aos responsáveis ​​pelo poder político do Estado para acabar com o modelo de monoculturas que está levando todos e todas a um abismo, cujo desastre vem aumentando progressivamente em meio à ineficácia das instituições públicas e ao apadrinhamento político, e às redes de corrupção geradas pelos grupos econômicos ligados a plantações de monoculturas. São bilhões de pesos do Erário destinados anualmente aos interesses dos principais grupos econômicos do país, para gastos como: custos de produção, pesquisa científica nas universidades públicas, membros das brigadas da Conaf [Corporação Nacional Florestal] para apagar seus incêndios, forças públicas para proteger suas terras, melhoria das estradas diante da destruição causada ​​pelo tráfego pesado de caminhões que transportam os cultivos, anexação de terras de agricultores e comunidades a seus interesses, distribuição de milhares de litros de água a zonas onde há crise hídrica localizada em áreas de maior concentração de monoculturas, desenvolvimento de biotecnologia para melhorar espécies e torná-las mais resistentes a mudanças climáticas, por exemplo, em áreas de cordilheira, ou para maior sucção de lençóis subterrâneos. (...) Esse saque estatal não pode continuar”(11).

Também é importante considerar os recursos estatais usados para criminalizar membros do povo Mapuche no contexto de conflitos de terras ancestrais, principalmente nas zonas de Arauco, Malleco, Cautín e Los Ríos. Isso envolve vários casos de violência, incluindo graves ações contra as crianças mapuches. (12)

Outro elemento não menos importante é o fato de que o pínus e o eucalipto são considerados espécies “pirófitas”, com alto risco de combustão e propagação. O eucalipto produz um óleo altamente inflamável, e por isso é chamado de “árvore-gasolina”. O mesmo acontece com o pínus, devido à grande quantidade de resina. Plantadas em monocultura, ambas as espécies contribuíram para a expansão dos megaincêndios no Chile, em meio a uma enorme crise hídrica também gerada por essas plantações no centro-sul do país. (13)

Impunidade das empresas em incêndios criminosos

Em setembro de 2015, várias organizações – entre elas, a Rede pela Defesa dos Territórios, o Observatório Latino-Americano de Conflitos Ambientais (OLCA) e representantes estudantis e ambientais – foram à Procuradoria Nacional para entregar uma pasta com mais de 300 páginas de documentos sobre autoatentados ou a relação dos atentados com grupos mercenários ligados a interesses de empresas de monoculturas. (14)

Parte do conteúdo apresentados incluía: depoimentos de ex-guardas vinculados a empresas de vigilância em áreas de plantações de monoculturas; confissões de trabalhadores pagos para cometer ataques e incriminar os líderes mapuches; laudos inacabados e processos judiciais abandonados relacionados a atentados florestais e grupos mercenários; ex-agentes do serviço de inteligência da ditadura militar prestando serviços de vigilância para empresas; testemunhos públicos de parlamentares; investigações jornalísticas e pareceres jurídicos.

Além disso, foram entregues dados sobre a relação entre os incêndios nas plantações e as pragas existentes, e informações sobre a existência de grupos mercenários que pretendem criminalizar e reprimir o povo Mapuche, bem como cobrança de seguros e conluio de setores empresariais, políticos e judiciários na Região de Araucanía.

É inconcebível que o Ministério Público nunca tenha estabelecido linhas de investigação para determinar os atos e as responsabilidades relacionados aos interesses das empresas de plantação, principalmente a Mininco e a Arauco. Em vez disso, os promotores preferiram, com preconceito e racismo, iniciar uma perseguição aberta ao povo mapuche.

As organizações denunciaram que existem vínculos diretos entre operadores da justiça e interesses políticos ligados à indústria de plantações, referindo-se ao ex-promotor regional na Araucanía Francisco Ljubetic e ao ex-promotor Luis Chamorro, que durante anos moveu ações de criminalização contra vários membros das comunidades mapuche. Chamorro renunciou ao cargo em 2014, alegando motivos de saúde, e passou a prestar serviços como lobista à Arauco. (15)

Após as denúncias, o Ministério Público decidiu realizar uma investigação nas regiões do Bio Bio e da Araucanía, mas até o momento, nada foi investigado.

Em meio à devastação dos megaincêndios de 2017, em 31 de janeiro daquele ano, 110 organizações apresentaram ao Conselho de Defesa do Estado diversos antecedentes relacionados a atentados incendiários que beneficiavam os interesses da indústria de monoculturas nas regiões de Maule, Bio Bio e Araucanía. O Conselho deve zelar pelo interesse público e é um ator nacional relevante no cumprimento da legislação ambiental. Portanto, por meio de um pedido formal, foi-lhe solicitado expressamente que assumisse uma investigação e tomasse medidas jurídicas sobre a responsabilidade que as empresas teriam nos incêndios florestais. (11)

No entanto, em 22 de fevereiro de 2017, o Conselho indicou que “não tem os poderes de investigação necessários (...) para intervir nessa questão”, e acrescentou que “os antecedentes apresentados foram entregues à Unidade Ambiental deste Serviço para estudo e análise, a fim de reunir mais informações e atuar de acordo com as funções e poderes legais”. O documento foi assinado por Carlos Mackenney, presidente em exercício do Conselho de Defesa do Estado. (16)

Para as organizações, fica claro que o Conselho de Defesa do Estado não quis agir porque há conflitos de interesse. Elas denunciaram que o presidente do Conselho (Juan Ignacio Piña Rochefort) era um representante de confiança do ex-presidente Sebastián Piñera durante seu governo. Piñera, por sua vez, tem uma relação próxima com as empresas florestais. O ex-presidente foi sócio do consórcio florestal Angelini, na Antar Chile, e mantém um relacionamento próximo com o grupo Matte, da Forestal Mininco. Também não é possível omitir as redes de corrupção envolvendo amplos setores da oposição e do governo, incluindo vários representantes ligados ao governo de Bachelet e aos interesses das empresas. “O Conselho de Defesa do Estado simplesmente lavou as mãos”, disseram as organizações.

Depois dos incêndios de 2017, veio à tona na mídia que o Ministério Público na região de Maule estava investigando a relação entre os incêndios e as plantações florestais. Em julho de 2017, observou-se que “o promotor Mauricio Richards, encarregado do caso, investiga a relação desse desastre nacional com um decreto emitido pelo Serviço Agrícola e Pecuário (SAG) um mês antes do início dos focos de incêndio, que colocou em quarentena muitas das plantações de pínus destruídas devido a uma praga de vespa da madeira que inutilizou centenas de hectares – posteriormente afetados pelos incêndios. Mais uma vez, a suspeita recai sobre a indústria florestal, já que os seguros que cobrem a terra afetada pelas chamas não teriam coberto os danos causados ​​pela praga.” (17)

Após os rumores da imprensa, o Ministério Público emitiu uma declaração negando essa investigação e afirmando que “as investigações estão agora voltadas a outros assuntos, o que não significa que, se houver denúncias graves e específicas sobre possíveis pagamentos indevidos de seguros em função da presença da vespa, estas não serão investigadas com os mesmos rigor e profissionalismo com que são investigadas todas as denúncias que chegam ao conhecimento do Ministério Público.” (18) A recusa a investigar confirmou as alegações que explicam a cumplicidade do Ministério Público com as empresas.

O Ministério Público do Chile – um órgão supostamente autônomo cuja função é direcionar a investigação de crimes, levar os acusados aos tribunais, se for o caso, e oferecer proteção a vítimas e testemunhas – é acusado de fazer parte e ser cúmplice dos crimes relacionados às empresas de plantação, ligando seus funcionários aos interesses dessas corporações privadas. Uma situação semelhante recai sobre o Conselho de Defesa do Estado – outro organismo que, apesar de ter os poderes, prefere se omitir e descumprir suas obrigações, deixando impunes crimes cometidos no contexto dos megaincêndios florestais que devastaram o centro-sul do Chile nos últimos anos.

Em vários territórios, mantém-se resistência constante ao modelo da indústria de monoculturas. Em uma reunião realizada em Temuco, em maio de 2018, foi anunciado que persistirão as denúncias em vários órgãos políticos e de direitos humanos em níveis local e internacional para acabar com a impunidade.

Alfredo Seguel, Mapuexpress

 

(1) ¿Quiénes incendiaron Chile?
(2) La red internacional de corrupción que se beneficiaría con los megaincendios en Chile
(3) Resoluciones del SAG y estudio Conaf confirman plagas en amplias extensiones de plantaciones forestales
(4) El “Terrorismo Mapuche”: La campaña de desinformación para desviar responsabilidades en mega incendios forestales
(5) Resoluciones del SAG y estudio Conaf confirman plagas en amplias extensiones de plantaciones forestales
(6) Sirex noctilio o avispa de la madera del pino
(7) Las plagas que desde 2001 arrasan con las forestales del sur de Chile
(8) Chile: Incendio en Carahue deja 7 brigadistas muertos
(9) Libro “VIDAS DE PAPEL. Negocio de la Madera y conflicto Intercultural en Chile” (2014)
(10) Especial conflicto forestal en Chile: Colusión, saqueo, corrupción, conspiraciones
(11) Organizaciones responsabilizan a empresarios por incendios y piden fin del modelo forestal
(12) Conflicto forestal y violencia hacia la infancia Mapuche
(13) Pinos y eucaliptus como especies pirrófitas
(14) Organizaciones acusan a la Fiscalía de Chile de estigmatizar a la comunidad mapuche
(15) Ex Fiscal “antimapuche”, Luis Chamorro, aparece registrado como lobbista de brazo forestal del grupo Angelini
(16) Respuesta del Consejo de Defensa del Estado
(17) Investigan relación de incendios forestales con plaga de avispas y pago de seguros
(18) Fiscalía Regional del Maule niega investigación sobre incendios forestales vinculada a avispas taladradoras