Direitos da natureza: um balanço nos dez anos de seu reconhecimento constitucional no Equador

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Naturaleza
Foto: grafiti em Aromo, costa ecuatoriana

 

É possível realmente romper o paradigma ocidental-colonial dominante, que vê a natureza como recursos a serem explorados ou como um espaço a ser dominado e controlado, com uma ferramenta de um sistema jurídico ou de uma justiça que provêm e estão intrinsecamente ligados a um pensamento que pertence a esse mesmo paradigma?

A resposta é NÃO. Mas o fato é que as ferramentas legais abrem fissuras no sistema dominante e em seu aparelho jurídico pelas quais podem navegar os movimentos sociais que promovem um pensamento crítico ou que sustentam práxis libertárias. Além disso, os direitos da natureza problematizam todo o mundo jurídico, que obviamente é e tem sido antropocêntrico (1), e permitem enfrentar um sistema e políticas dominantes.

Quando os direitos da natureza foram reconhecidos no Equador, em 2008, havia um debate paralelo sobre o sumak kawsay [“Bem Viver”] e a plurinacionalidade, dois temas complementares para entender e aplicar esses novos direitos. O objetivo do debate era questionar um modelo que se baseia na destruição da natureza, que é profundamente colonial e desconhece nossa matriz indígena, e vem daí o uso de termos indígenas quéchua para essa mudança de visão.

O sumak kawsay, além de ser uma crítica à ideia de desenvolvimento, é uma proposta para a organização da vida sob duas premissas centrais: a harmonia com a natureza e a comunidade como forma de exercício da vida social e política.

Os direitos da natureza estabelecidos na Constituição Nacional são: o direito à existência e a ter defensores e defensoras (Art. 71); o direito à restauração sem desconhecer o direito das comunidades à reparação integral (Art. 72); o direito à precaução e a aplicar restrições (Art. 73); o direito a não ser mercantilizado e a permitir atividades humanas e comunitárias no âmbito do sumak kawsay (Art. 74).

O Artigo 71 afirma: A natureza, ou Pacha Mama, onde a vida se reproduz e se realiza, tem direito a que se respeite integralmente sua existência, e à manutenção e à regeneração de seus ciclos de vida, suas estruturas, suas funções e seus processos evolutivos...

A margem de reflexão e de utilidade de cada um desses direitos nos contextos de destruição dos ecossistemas é ampla, pois eles dão sustentação à luta contra mineração e contra a indústria do petróleo, que alteram a estrutura da natureza e os processos biogeometabólicos do solo. Eles permitem enfrentar o debate contra os transgênicos que afetam os processos evolutivos ou contra as megarrepresas que afetam o direito do rio a fluir.

Além disso, no Equador, assim como na maioria dos países da região e provavelmente do mundo, há um aumento na repressão e da criminalização contra defensores da terra, da natureza e dos territórios.

Os direitos da natureza abrem novos cenários de defesa territorial, reconhecem o papel dos defensores e das defensoras e permitem refletir sobre as atividades que destroem a natureza. Uma coisa é ser vítimas de criminalização e outra ser defensores de direitos. Na verdade, a Assembleia Nacional Constituinte do Equador de 2008, no marco do reconhecimento aos direitos da natureza, concedeu anistia a 600 pessoas que haviam sido criminalizadas, reconhecendo que os líderes e comunidades acusados ​​de terrorismo e sabotagem por resistir a projetos de exploração eram, na verdade, defensores e defensoras da natureza e de suas comunidades.

O capitalismo conseguiu consolidar a ideia de que o “interesse geral” eram os projetos econômicos de expropriação, e que quem se opõe a eles não é apenas egoísta, mas terrorista. Uma natureza com direitos – inclusive o de ser defendida – contribui para mudar o sentido do interesse geral e cultivar na consciência cidadã a ideia de que “interesse geral” é precisamente a natureza.

No Equador, apesar da Constituição ser magnífica em nível institucional, todas as leis que foram emitidas desde a sua elaboração cercearam os direitos da natureza. A Lei de Mineração, de 2009, que permite a mineração em grande escala mesmo em áreas frágeis; a Lei Orgânica de Recursos Hídricos, Usos e Aproveitamento da Água, de 2014, que permite uma espécie de privatização da água e não respeita o fluxo ecológico dos rios; a Lei Orgânica das Terras Rurais e dos Territórios Ancestrais, de 2016, que reduz a natureza a meros serviços ambientais; a Lei das Sementes, de 2017, que abre a porta aos transgênicos, ou o Código Orgânico Ambiental, de 2017, que enfraquece as áreas protegidas e é bastante permissivo com as empresas.

No nível judicial, o panorama também não é bom. Em geral, os casos que apelam aos direitos da natureza e enfrentam atividades destruidoras da natureza não foram aceitos, em função de uma mistura de ignorância dos juízes e falta de independência judicial.

Um dos poucos casos aceitos foi em defesa do rio Vilcabamba, ao sul do Equador, afetado pela extração de pedras para a construção de uma rodovia. Nesse caso, o juiz disse que “dada a importância indiscutível, elementar e inalienável da natureza, e levando em conta seu processo de degradação como um fato notório ou óbvio, a ação de proteção é a única via adequada e efetiva para acabar com danos ambientais localizados e solucioná-los imediatamente”. (2)

Para além dos resultados dos processos que exigem o respeito pelos direitos da natureza perante os tribunais, o exercício que a sociedade está fazendo é importante, pois propõe novos horizontes e até mesmo novas geografias. Por exemplo, quando houve um derramamento de petróleo e um incêndio no Golfo do México, no Equador se levantou um processo contra a empresa que não opera no país, por um evento que não pertence à sua delimitação nacional. No entanto, o argumento apresentado era de que a natureza é uma só, tem direitos e deve ser protegida. (3)

Os direitos da natureza permearam rapidamente os processos sociais e irromperam nas agendas de muitos movimentos, em várias análises acadêmicas e na sociedade em geral.

Um processo que está em andamento no Equador, chamado “Rota pela Verdade e a Justiça para a Natureza e os Povos” (4), busca precisamente recuperar memórias sobre naturezas e territórios e analisar o que aconteceu nos últimos dez anos, bem como as omissões nas medidas relacionadas a atividades anteriores. Esse processo já tem um resultado encorajador, porque está permitindo construir pontes, tecer redes e analisar os problemas dos diferentes territórios com maior grau de complexidade em relação aos direitos, tanto humanos quanto da natureza.

Um primeiro balanço da rota é que a natureza está mais visível. Está entrando lentamente nos programas de formação das escolas e nos discursos da administração pública, se expressa com mais frequência na arte e nas redes sociais e, acima de tudo, está muito presente nos movimentos sociais. Alguma influência nisso teve o desbloqueio mental que pode reconhecer à natureza seus próprios direitos.

No relato dos povos, fica claro que as relações de harmonia com a natureza inspiram e respiram nas lutas dos povos, e mesmo que o capitalismo invada todos os espaços da vida, ainda se mantêm vivas, resistem e se reorganizam. Portanto, na relação com o Estado, essas expressões de resistência ou a recuperação de relações devem ser fortalecidas, protegidas e reconhecidas.

Esperanza Martínez, esperanza [at] accionecologica.org

Ação Ecológica, Equador

 (1) Antropocêntrico, isto é, que situa o ser humano no centro, desconhecendo todo o resto e, portanto, justificando a destruição da natureza.

(2) Número do arquivo: julgamento N. 11121-2011-0010

(3) Ação de Proteção No. 0523-201/17111-2013-00002

(4) www.verdadparalavida.org