Erguendo-se pelo direito de dizer NÃO: Tribunal Permanente dos Povos da África Austral

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Comunidade Xolobeni, contra mineração. Foto: Paul Botes

O Tribunal Permanente tem sido uma ferramenta importante para as comunidades compartilharem suas lutas e construírem solidariedade, além de questionar o status quo, levantando-se para dizer NÃO ao poder das grandes empresas, à impunidade do Estado e a uma agenda de desenvolvimento destrutiva.

“Nós não queremos mineração. Não queremos os seus filhos. Não queremos suas avós. Não queremos suas famílias. Não temos nenhuma vontade de bater papo nem conversar com gente da mina.”

Essas palavras fortes foram proferidas por dois representantes do Comitê de Crise Amadiba, no Terceiro Tribunal Permanente dos Povos da África Austral sobre Empresas Transnacionais, realizado em novembro de 2018. O Comitê de Crise Amadiba representa a comunidade Xolobeni, que vem lutando há dezesseis anos para impedir que o conglomerado australiano Transworld Energy and Minerals (TEM) faça mineração de areia rica em titânio ao longo da chamada Costa Selvagem da África do Sul. (1) Para o Comitê de Crise Amadiba, a terra é uma parte intrínseca da identidade da comunidade – passada, presente e futura. Nonhle Mbuthuma, membro fundador do grupo, diz: “Nós acreditamos que sabemos quem somos por causa da terra. Acreditamos que, perdendo a terra, perde-se a identidade”.

Em abril de 2018, o Comitê levou seu caso ao Supremo Tribunal da África do Sul, em um corajoso esforço por justiça. (2) Agora, meses mais tarde e pouco mais de uma semana depois do Tribunal dos Povos, a justiça decidiu a favor da comunidade, declarando que o Departamento de Recursos Minerais deve obter o consentimento “total e formal” da comunidade de Xolobeni antes de conceder direitos de mineração.

Em toda a África do Sul e além, a luta de Xolobeni tornou-se um caso emblemático para as comunidades que resistem às agendas de desenvolvimento baseadas no extrativismo de larga escala e lutam pelo direito de dizer NÃO. Essa vitória histórica já galvanizou comunidades em todo o continente, em um lembrete bem-vindo de que a justiça é possível através de organização sustentada, construção de movimento e solidariedade.

Foi esse exato espírito de solidariedade e corajosa resistência contra o poder das empresas que impulsionou a terceira sessão do Tribunal Permanente dos Povos da África Austral sobre Empresas Transnacionais. (3) Este foi o último ano de um processo de audiências que durou três anos, no qual as comunidades apresentaram denúncias contra corporações transnacionais, expondo as violações de direitos humanos e coletivos que elas causam e a superexploração e a destruição sem limites de territórios. As corporações, em conluio com Estados e instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial, propagam essa devastadora agenda de desenvolvimento extrativista que prioriza o lucro em detrimento das pessoas e do planeta – tudo em nome do “progresso”.

“Ficamos impressionados com a amplitude da extração, da desapropriação, do desalojamento e da brutalidade implacáveis demonstradas pelas corporações transnacionais em busca de lucro”, diz a declaração dos jurados ao final da sessão do tribunal, que durou três dias. “Tudo isso tem sido feito, frequentemente, com a anuência do Estado e de seus atores e organizações na execução da repressão e, em alguns casos, de massacres de cidadãos.”

Durante os procedimentos do tribunal, as comunidades apresentaram um total de vinte denúncias contra as empresas transacionais em Madagascar, Malauí, Ilhas Maurício, Moçambique, África do Sul, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue. Esses casos envolvem desde empresas de mineração e mega-hidrelétricas até agronegócio e apropriação e concentração de terras – e cada um deles fala da cumplicidade entre corporações, governos e instituições financeiras para sustentar um sistema de impunidade global. (Leia sobre os casos aqui)

Lutando contra as mega-hidrelétricas: Parem Inga 3!

Um dos casos apresentados no Tribunal foi o de comunidades que se manifestaram contra o projeto da mega-hidrelétrica de Grand Inga, na República Democrática do Congo (RDC). (4) Com suas promessas de “energizar e desbloquear a industrialização regional” através da eletrificação da RDC e do continente africano, o Regime Hidroelétrico de Inga (Inga 1 e 2) já desalojou comunidades na RDC. Se Inga 3 for adiante como planejado, cerca de 37.000 pessoas cuja subsistência é baseada no rio Congo terão o mesmo destino.

As mineradoras são as que mais se beneficiaram da eletricidade gerada pelos dois primeiros projetos Inga, deixando muitas comunidades sem fornecimento confiável de energia. Atualmente, 85% da população da RDC não tem acesso à eletricidade. (5) O recém-lançado Plano de Recursos Integrados sul-africano está avançando com um acordo RDC-África do Sul que garantirá 2500 MW de eletricidade para o segundo país, até 2030. (6) Entretanto, as pessoas mais diretamente impactadas por esse megaprojeto não receberão nenhum dos benefícios, enquanto a eletricidade é enviada através de seis países para alimentar a mineração e outras indústrias extrativas da África do Sul. “Nós dormimos no local da represa de Inga, mas vivemos no escuro”, disse Jane*, uma líder ativista congolesa que falou no Tribunal dos Povos.

No tribunal, os ativistas também enfatizaram o fardo específico que as mulheres carregam quando se trata de megaprojetos como o Inga, que ameaçam vidas e meios de subsistência. Uma ativista afirmou: “Nós dependemos da agricultura – como vamos nos alimentar? Como vamos alimentar nossos filhos? Como vamos sobreviver? Nós, mulheres que vivem em Inga, dependemos da agricultura – isso é o que nos permite alimentar nossos filhos. Agora estamos tendo uma seca por causa da represa. Nossa produção de alimentos diminuiu devido à infraestrutura. Meu marido tem que ir à próxima aldeia encontrar pequenos animais para caçar porque os daqui começaram a desaparecer. Nós moramos perto da represa, mas não temos eletricidade”.

As comunidades que lutam contra a barragem de Inga 3 já enfrentaram os Estados envolvidos, escrevendo uma carta ao governo sul-africano. Elas também lançaram uma campanha chamada “Parem Inga 3” (Stop Inga 3; o abaixo-assinado em apoio e solidariedade está aqui). Elas estão exigindo a retirada de empresas chinesas, espanholas e sul-africanas, bem como qualquer envolvimento do Estado no esquema. Sua resistência é inspiradora. Elas trabalham em um contexto cada vez mais repressivo para lutar pelo direito de dizer NÃO e reivindicar uma indenização para quem foi desalojado pelas hidrelétricas de Inga 1 e 2.

As comunidades da África do Sul já começaram a responder a esse apelo, enxergando a clara oportunidade de implementar estratégias conjuntas e construir solidariedade, responsabilizando o governo sul-africano. Caroline Ntaopane, da Rede Mulheres africanas contra a extração destrutiva de recursos (WoMin Alliance), disse: “O rio Congo pertence ao povo, mas foi tirado dele. As comunidades nunca foram consultadas. A nós, na África do Sul, nunca foi dito que receberíamos eletricidade da RDC. E mesmo que recebêssemos como membros da comunidade, não poderíamos desfrutar disso sabendo da violência, da militarização e da destruição que está ocorrendo na República Democrática do Congo”.

O Tribunal dos Povos tem sido uma plataforma importante para as comunidades do sul da África compartilharem suas lutas e construírem solidariedade, apresentarem casos importantes de violações por parte das empresas e questionarem o status quo expondo a instabilidade e a insustentabilidade brutais do chamado “desenvolvimento”.

Atualmente, essas comunidades e muitas outras estão trabalhando juntas para construir uma campanha pelo Direito de Dizer Não. Essa campanha representa “uma mobilização e uma convergência amplas de ativismo e solidariedade transnacionais”. Ela se baseia nos princípios do consentimento livre, prévio e informado. (CLPI) e na organização dinâmica de movimentos, sindicatos, organizações de mulheres e muitas outras em comunidades como Xolobeni, na África do Sul, e Inga, na RDC, que estão se erguendo para dizer NÃO ao poder corporativo, à impunidade do Estado e a uma agenda de desenvolvimento que prejudica as pessoas e o planeta.

Maggie Mapondera
WoMin African Alliance, http://www.womin.org.za/

* O nome da líder ativista foi alterado por motivos de segurança

(1) CIDSE, Xolobeni Community and the Struggle for Consent, novembro de 2017
(2) The Guardian, South African community wins court battle over mining rights, novembro de 2018
(3) https://www.stopcorporateimpunity.org/permanent-peoples-tribunal-transnational-southern-africa/
(4) Daily Maverick, SA does not need the Grand Inga Project, novembro de 2018
(5) No to Inga 3, Yes to accessible energy across Congo
(6) South African government releases Integrated Resource Plan draft, agosto de 2018