“Razões para agir juridicamente”: novas resistências para defender o patrimônio das comunidades indígenas da Guatemala

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A Guatemala está localizada no coração da Mesoamérica. Tem uma vasta diversidade cultural como legado histórico da cultura maia, onde as comunidades indígenas desenvolveram sistemas de pensamento organizacional e de governo próprio, sempre ligado a aprender com a cosmovisão, a espiritualidade e tudo o que se gerar ou regenerar a partir de sua relação com a Mãe Terra.

Atualmente, as comunidades enfrentam uma grave crise resultante dos novos cercamentos para o uso da biotecnologia, além dos requisitos socioeconômicos que definem uma maneira única de entender o tradicional e o cultural para a espoliação e a mercantilização da diversidade genética, das sementes, da flora, da fauna, etc. Isso tem promovido a perda dramática e irreversível de sistemas ancestrais, da agrobiodiversidade e do conhecimento tradicional associado a ela, onde a lógica da economia de mercado transnacional garante de forma estratégica ações jurídicas para a espoliação legalizada das comunidades.

A defesa da soberania organizacional e de governo das comunidades indígenas da Guatemala motivou autoridades ancestrais, agricultores(as), camponeses(as), parteiras e guias espirituais que, articulados com as organizações que integram a Rede Nacional de defesa da Soberania Alimentar e outras organizações sociais, reuniram-se para abordar as implicações dos compromissos de caráter econômico, político e jurídico que o Estado da Guatemala assumiu com outros Estados, sejam eles tratados, convenções, acordos ou protocolos internacionais cuja implementação resulta em violações dos direitos humanos e dos direitos coletivos dos povos indígenas.

Não era mais possível continuar permitindo que o Estado seguisse facilitando as condições para o saque e a pilhagem das terras das comunidades indígenas, porque já não se trata exclusivamente de projetos de extração de petróleo, mineração, hidrelétricas, monoculturas de dendê e cana de açúcar, entre outros, mas também pretendem arrebatar as sementes, a diversidade genética, os conhecimentos tradicionais e a biodiversidade.

À ação do governo se somam centros de pesquisa a favor da biotecnologia e, portanto, das empresas farmacêuticas e agroindústrias. Em 2014, elas promoveram conjuntamente uma série de congressos, seminários e oficinas onde defendiam a necessidade de “proteger” e “facilitar” as condições para que, em nome dos povos indígenas da Guatemala, aprovara-se uma série de projetos de leis para os quais o Congresso da Guatemala imediatamente facilitou as condições. É o caso da Lei de Novas Variedades Vegetais, o Protocolo de Nagoya e o Protocolo de Cartagena.

E com isso são facilitadas as condições já estabelecidas pelo governo e as empresas transnacionais onde se define o caminho da espoliação. Através de instituições governamentais que servem aos interesses do mercado, põe-se em marcha a aprovação da regulamentação dos Organismos Geneticamente Modificados, a política nacional de biossegurança para esses organismos, a política nacional de parteiras e o projeto da política de Acesso a Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais. O conteúdo de cada um desses instrumentos tem como foco argumentar que o Estado, em sua soberania, possa dispor de todos os “recursos” naturais, deixando de levar em conta os sistemas de governança das comunidades indígenas e tudo aquilo que constitui seu patrimônio coletivo.

Com essa série de instrumentos de caráter jurídico, não foram considerados os direitos coletivos próprios das comunidades em relação a avaliação, utilização, manipulação, intercâmbio e controle local dos elementos da natureza, que são inalienáveis e imprescritíveis.

Portanto, as autoridades ancestrais dos quatro pontos cardeais do país, por consenso, dispuseram-se a resistir a essa nova modalidade de espoliação silenciosa que já está afetando e alterando as formas de vida comunitária. Por essa razão, apresentaram uma ação de inconstitucionalidade contra o Decreto 6-2014, que aprova em nível nacional o “Protocolo de Nagoya sobre Acesso a Recursos Genéticos e Participação Justa e Igualitária nos Benefícios Decorrentes de sua Utilização”. (1) Denunciam que se trata de um instrumento que atenta contra a soberania dos povos indígenas ao validar mecanismos de espoliação “legalizada”, porque outorga patentes, concessões, pagamento de royalties e direitos de propriedade intelectual sobre a diversidade genética e conhecimentos tradicionais associados principalmente a sementes nativas, plantas medicinais, artesanato e gastronomia. Um dos motivos da ação diante do Tribunal Constitucional da Guatemala é a exigência do direito de consulta prévia, livre e informada e do respeito aos sistemas de organização, produção, salvaguarda e defesa dos meios de vida comunitária.

Por um lado, essa ação é importante em matéria constitucional, por conseguir, em 16 de junho deste ano, que o Tribunal Constitucional da Guatemala suspendesse provisoriamente o Decreto 6-2014, que aprovou o Protocolo de Nagoya. (2) Assim, o Estado não pode continuar aprovando leis, acordos, regulamentos e políticas que deliberem sobre a aprovação de pedidos de acesso ou sobre a concessão de patentes e direitos de propriedade intelectual envolvendo a diversidade genética e o conhecimento tradicional das comunidades indígenas da Guatemala. Por outro lado, também é uma vitória para as comunidades de todo o país, que conseguiram que uma reivindicação nacional liderada por suas autoridades ancestrais tenha sido atendida pelo Estado.

Nessa lógica, as resistências em defesa da vida e do território mostraram que as mobilizações pacíficas em nível nacional tiveram vitórias como a revogação, em 2014, do Decreto Lei 19-201 ou Lei de Espécies Vegetais (3), mais conhecida como a Lei Monsanto (4). Esse é um claro exemplo de unidade na diversidade, já que houve ampla participação de grupos sociais, incluindo movimentos e organizações camponeses, indígenas e ambientalistas, entre outros. (5)

Para muitas comunidades indígenas, essa ação representa manter os sistemas ancestrais, garantindo a vida e a soberania alimentar. Portanto, na Guatemala, a luta pela defesa do território continua e, para isso, as comunidades continuarão unindo laços de solidariedade, não como expressão “folclórica” nem como estatística do país, mas como o rosto de luta, resistência e denúncia diante da espoliação da identidade ancestral e territorial como aj ral Ch´ooch´ (Filhos/as da Mãe Terra).

Lourdes Gómez Willis, lourdes.gomez@congcoop.org.gt
Assistente de Pesquisa, Idear/CONGCOOP http://idear.congcoop.org.gt/

(1) O texto do Protocolo de Nagoya está disponível em:
https://www.cbd.int/abs/about/default.shtml e o texto da Convenção sobre a Diversidade Biológica, em: www.cbd.int/intro/default.shtml
(2) Acesse a Resolução de Inconstitucionalidade do Decreto 6-2014 sobre o Protocolo de Nagoya aqui: http://www.biodiversidadla.org/Objetos_Relacionados/Resolucion_de_Inconstitucionalidad_ante_aprobacion_de_Protocolo_de_Nagoya_-_GUATEMALA
(3) A Lei de Espécies Vegetais ameaçava a soberania alimentar e a vida ao abrir as portas à privatização de sementes nativas por empresas privadas, incluindo variantes de milho e feijão, e à introdução de sementes transgênicas. Ela fazia parte dos compromissos assumidos pelo Estado da Guatemala no âmbito do Tratado de Livre Comércio entre os Estados Unidos e a América Central (DR-CAFTA), assinado em 2005.
(4) “Lucha por la defensa de nuestras semillas, derogación total del Decreto 19-2014”, em: www.redsag.net/files/Boletn_tres_versin_final.pdf e “Postura de las autoridades ancestrales ante los organismos vivos modificados”, em: https://comunitariapress.wordpress.com/2016/07/23/postura-de-las-autoridades-ancestrales-ante-los-organismos-vivos-modificados//
(5) https://www.facebook.com/bancada.winaq/posts/1346052475462723