RSPO: terceirizando a regulamentação ambiental para empresas e indústrias de dendê

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RSPO
Ilustração: Militante Rini Templeton. RiniArt.com

A certificação RSPO usou a crise de legitimidade do setor de óleo de dendê para reforçar seu papel em benefício dessa indústria, emitindo certificados que supostamente garantem padrões de sustentabilidade, mas são administrados por e para empresas relacionadas ao próprio setor de óleo de dendê.

Definições distorcidas de sustentabilidade estão transformando os pequenos agricultores em vilões. Os consumidores estão inadvertidamente colocando a sustentabilidade em risco e ajudando a canalizar o poder para mãos já poderosas, ao aceitar como válidos e, assim, legitimar os falsos padrões de sustentabilidade estabelecidos pelas grandes empresas.

O ecoconsumismo e a responsabilidade empresarial voluntária supostamente aumentam a eficiência do mercado, permitindo que os consumidores pressionem as empresas para que tenham melhores padrões de produção. A Mesa Redonda sobre Óleo de Dendê Sustentável (RSPO) é um exemplo disso. A RSPO fiscaliza o setor de óleo de dendê para a indústria e trata das preocupações da comunidade e das ONGs com relação a práticas de produção ambiental e socialmente prejudiciais, atuando como fiadora contra práticas destrutivas. (1) A RSPO surgiu de uma crise. A crise de instabilidade ecológica resultante da destruição causada por empresas contribuiu muito para a crise de legitimidade da prática e da ideologia do capitalismo, colocando em questão a hegemonia do sistema. A RSPO e outros programas semelhantes são capazes de usar essas crises não para mudar ou construir um sistema mais justo ou ecologicamente correto, mas para reforçar seu papel em benefício próprio.

Administrado por e para empresas do setor de óleo de dendê, o RSPO define os padrões de sustentabilidade pelos quais as práticas de produção são julgadas. Os membros da RSPO são auditados por auditores aprovados pelo RSPO e recebem um certificado de sustentabilidade, para que os consumidores, em sua maioria do Norte global, possam fazer compras com a consciência tranquila, sabendo que os biscoitos, a pasta de dente ou o xampu que estão comprando não causaram desmatamento, despejo de comunidades ou a morte de orangotangos.

Contudo, programas como a RSPO têm uma grande falha, conhecida na teoria econômica como “risco moral”: a RSPO permite que os próprios produtores, com interesse em reduzir ao máximo os custos e a complexidade da sua produção, definam os padrões éticos de operação e produção de forma que legitime suas operações. Os produtores que não os cumprem (ou não têm como cumprir) são punidos moralmente e excluídos da sociedade de mercado “aceitável”. Os próprios produtores definem os padrões pelos quais são julgados, e os consumidores passam a ter a “liberdade”, mas também (de forma confusa) a responsabilidade de escolher os produtos – dentro de uma estrutura de valor definida por quem deseja que o consumidor compre.

Para ver como e por que isso não é uma solução para o desmatamento, e por que, em termos mais amplos, o modelo como um todo é enganoso para se compreender a sustentabilidade ecológica, é importante entender algo sobre o conceito e a estrutura da RSPO.

O conceito: um crime previsto

A RSPO é um arranjo entre empresas e ONGs. A maior parte dos membros é de fabricantes de bens de consumo, fábricas de produtos de dendê e empresas do comércio, a maioria da Europa e dos Estados Unidos, (2) incluindo Walmart, Nestlé, Mondelez e L’Oréal. (3) Tudo começou em 2002, como uma cooperação informal do WWF (uma grande ONG ambiental internacional) com Aarhus United UK Ltd (produtora de óleos e gorduras), Migros (cadeia de supermercados suíça), Malaysian Palm Oil Association e Unilever (bens de consumo). Hoje em dia, inclui empresas do agronegócio e os principais compradores de óleo de dendê, com destaque para o WWF, Unilever e a Malaysian Palm Oil Association. (4) O óleo de dendê claramente é fundamental para a receita financeira da Unilever e da Malaysian Palm Oil Association, mas os leitores podem pensar: “Ah, está tudo bem, o WWF vai responsabilizá-los!”. No entanto, não se esqueça: o WWF depende de financiamento empresarial para sobreviver, como a maioria das ONGs conservacionistas, e é difícil responsabilizar as pessoas que nos dão o pão de cada dia. O WWF também tem sido particularmente influente na construção de uma narrativa de consumo responsável por meio de outros esquemas de certificação, incluindo o FSC, para produtos de madeira e papel, o MSC, para peixes e frutos do mar, a Mesa Redonda da Soja Responsável e outros. Há muito tempo, essa ONG ambiental global defende iniciativas pró-empresas e pró-crescimento. Mais uma vez, existe esse risco moral.

O processo de definição de padrões está repleto de riscos morais. A RSPO é uma iniciativa que define padrões. Não é uma instituição que fiscalize nem aplique a lei, caso em que seria responsável por rígidos controles jurídicos e códigos de conduta. Em vez disso, o mercado (aquele conceito nebuloso que está sempre mudando de forma) é quem estabelece os padrões, fiscaliza e aplica as regras.

Quem formula essas regras (ou seja, o grupo de empresas e ONGs que são membros da Mesa Redonda) também gerencia o processo de fiscalização e auditoria na RSPO, que são feitas por atores indicados pelo setor (e não pelo governo), e também são pagas pelas partes interessadas. Ou seja, um grande conflito de interesses. Seu caráter é voluntário, no sentido de que as empresas decidem se aderem ou não ao programa, mas o fato de não ser certificado coloca os produtores em uma zona cinzenta altamente subjetiva do ponto de vista moral, onde seus produtos são considerados “ruins” de acordo com padrões estabelecidos por atores que já dominam uma fatia do mercado. Na outra ponta da cadeia de produção, esse sistema de definição de padrões regulado pelo mercado também julga moralmente os consumidores de classe média que não compram seus produtos: “Você não compra óleo de dendê “sustentável”? Não compra xampu certificado? Isso é moralmente condenável, nem vou me misturar com você.”

Onde fazer a coisa certa?

Para aceitar o conceito de consumidor bem informado que orienta as redes de produção empresariais por meio de decisões ecologicamente responsáveis ​​no ponto de compra, também é preciso aceitar toda uma forma de pensar sobre “liberdade”.

Para ser justo, inicialmente, o consumo responsável (ou ecoconsumo) parece uma boa ideia, isto é, se você acredita em sufrágio universal, faz sentido votar com seu dinheiro. Essa é a lógica: se mostrarem que são “sustentáveis”, as empresas ganharão mais participação no mercado, enquanto as insustentáveis ​​se tornarão párias. A democracia do mercado é fortalecida para fazer cada euro, dólar e franco valerem no caixa do supermercado. Infelizmente, isso pressupõe que as escolhas tenham caráter comercial.

Os supermercados, onde os consumidores podem escolher produtos de óleo de dendê sustentáveis, são construídos para o consumo, como espaços “não criativos e antiescolha” onde pessoas confinadas são “livres” apenas para consumir. São lugares onde os compradores (não as pessoas) vêm para adquirir coisas. Eles não são projetados para melhorar o ambiente natural. Porém, as empresas inteligentemente incentivaram os consumidores a se sentirem culpados pelos problemas ambientais que, dizem elas, vêm do consumo excessivo. (6) Mas tudo bem! Existe uma coisa nova chamada de “consumo ético”, que redime o consumo excessivo! Assim, os espaços projetados e construídos para que consumamos foram ajustados, e agora oferecem perdão, por um preço – mais ou menos como a cesta da coleta da igreja. Porém, além de ser moralmente podre, essa solução conveniente nem é uma escolha comercial muito boa para os consumidores, pois eles vão julgar os produtos segundo os padrões e valores projetados pelas próprias empresas que os vendem. O que poderia dar errado?! É como se fraudadores e assassinos redefinissem as ideias de fraude e assassinato e depois convidassem um júri formado por seus amigos e pares para julgar seu comportamento.

A falha final e fatal da ideia do “consumidor responsável” é que a maioria dos consumidores não tem conhecimento, condições nem tempo para confirmar se um produto está rotulado corretamente, se os ingredientes foram produzidos ou processados ​​de forma sustentável ou se os objetivos “sustentáveis” das empresas produtoras são ecológica ou socialmente razoáveis. Essa não é uma declaração de valores: todo o processo de produção e avaliação da sustentabilidade é extremamente complexo.

Para que o conceito de “consumidor responsável” funcione, os consumidores também precisam agir coletivamente, em grande número, para mudar qualquer produto de que não tenham gostado. Gerenciar a pegada ecológica do planeta para que uma sociedade global infinitamente diversa viva de forma sustentável é uma questão complicada e especializada, que não pode ser resolvida com uma abordagem de “tamanho único”. Sua seriedade é comprometida pela ideia de que o público em geral pode ser o fiscal que vai proteger o meio ambiente e a sociedade, embora e ao mesmo tempo o setor de bens de consumo, os produtores de óleo de dendê e as ONGs sugiram que os consumidores devem ser os controladores finais de seu código de conduta. Insinuar, como fazem alguns membros da indústria, que os consumidores são responsáveis ​​pela degradação ambiental em função de suas “demandas” de consumo, incentiva essa lógica. (7)

À primeira vista, a RSPO transmite a ideia de que “está fazendo algo”, mas isso é enganoso e funciona como uma cortina de fumaça, ocultando as consequências ecologicamente danosas de toda a rede de produção e consumo que sustenta a indústria do dendê.

Um sistema lógico moralmente falido

A RSPO emite certificados garantindo padrões de sustentabilidade administrados pelos mesmos produtores que depois serão julgados por ela. Ao mesmo tempo, o argumento de que o mercado deve definir e avaliar o cumprimento dos padrões de sustentabilidade fragiliza a legitimidade do Estado para formular as leis e avaliar seu cumprimento. Legalmente, portanto, a legalidade julgada pelo mercado gera menos concorrência. Bacana.

Para piorar as coisas, os procedimentos operacionais redigidos por grandes conglomerados são complicados e caros para pequenas empresas, agricultores familiares e trabalhadores independentes. Com muita facilidade, os padrões criminalizam operadores pequenos e vulneráveis ​​que não podem se dar ao luxo de cumprir um sistema econômico e jurídico que foi construído para excluí-los.

Tudo isso já seria brutal se o resultado fosse um sistema ecologicamente mais sustentável. Mas nem isso acontece: ele apenas redistribui mais poder nas mãos dos já poderosos, precariza os atores menores e enfraquece ainda mais o conceito de sustentabilidade. Enquanto isso, as florestas continuam queimando.

A Dra. Bernice Maxton-Lee é autora de Forest Conservation and Sustainability in Indonesia: A Political Economy Study of International Governance Failure, publicado em 2020 pela Routledge, e A Chicken Can’t Lay a Duck Egg: How Covid-19 can solve the climate crisis, publicado em 2020 pela Changemakers Books.

(1) H. Rogers, Green Gone Wrong: Dispatches from the Front Lines of Eco-Capitalism (London: Verso, 2010), 185
(2) RSPO
(3) RSPO, ‘RSPO - Who We Are’, 2017
(4) B. Richardson, ‘Making a Market for Sustainability: The Commodification of Certified Palm Oil’, New Political Economy 20, no. 4 (2015): 545-68.
(5) A. Kenis and M. Lievens, ‘Greening the Economy or Economizing the Green Project? When Environmental Concerns Are Turned into a Means to Save the Market’, Review of Radical Political Economics 48, no. 2 (2016).
(6) I. Fontenelle, ‘From Politicisation to Redemption through Consumption: The Environmental Crisis and the Generation of Guilt in the Responsible Consumer as Constructed by the Business Media’, Ephemera: Theory & Politics in Organization 13, no. 2 (2013): 339-66.
(7) K. Ellison e K. Wellner, ‘Research, Ethics, and Society (RCR); Professionalism and Social Responsibility’, CITI Program | Collaborative Institutional Training Initiative, 19 de dezembro de 2013