A apropriação corporativa da luta das mulheres: Maquiagem lilás na atuação das grandes ONGs

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Ilustração: Helena Zelic/SOF

Cada vez mais mulheres se identificam como feministas ao redor do mundo. O crescimento do feminismo nos últimos anos veio acompanhado de uma captura do movimento por parte do capitalismo. Neste sentido, cresceu o número de empresas e organizações transnacionais como The Nature Conservancy (TNC), Conservation International (CI) e World Wide Fund for Nature (WWF). que incorporam em sua atuação os discursos do “empoderamento” individual das mulheres e da diversidade sexual. 

É cada vez mais comum que estas organizações se coloquem como as responsáveis por melhorar as condições de vida das mulheres, dando a elas mais oportunidades e visibilidade. Vinculam, assim, a liberdade das mulheres ao fato delas ocuparem posições de poder na lógica capitalista. O feminismo popular parte do pressuposto de que a emancipação das mulheres jamais será completa em uma sociedade em que o trabalho da maior parte da população é apropriado por uma minoria capitalista; territórios de uso coletivo são apropriados por interesses privados; e grande parte da população é estruturalmente explorada. Por isso, o feminismo precisa ser anticapitalista, antirracista e anticolonial para realmente servir como ferramenta de emancipação das mulheres. Acreditamos no feminismo que aposta na auto-organização popular e constrói alianças com outros sujeitos em luta, caminhando juntos para um horizonte de transformação. 

O capitalismo “colorido” das empresas e ONGs transnacionais, por outro lado, não dá reais respostas ao problema da exploração das mulheres e dos povos ao redor do mundo, e apenas continua expandindo a exploração do trabalho e a incorporação da natureza no seu processo de acumulação. Aumentam seus lucros, inclusive, com base na exploração do trabalho feminino sem direitos. Esse processo de apropriação do feminismo é conhecido como “maquiagem lilás”: uma estratégia de apropriação das lutas que serve para melhorar a imagem das empresas para o grande público, ao mesmo tempo que impulsiona um processo de mercantilização e neutralização da crítica feminista ao sistema. 

Este “neoliberalismo multicultural com ‘face humana’” é um tipo de estratégia onde os Estados e agências internacionais incorporaram organizações feministas profissionalizadas para integrar a dimensão de gênero em seus programas (1). Deste processo saem, por exemplo, as “políticas de igualdade de gênero”, documentos que todas as grandes organizações conservacionistas possuem, cheios de boa intenção, mas vazios de compromisso político real. É uma forma sagaz de despolitizar os conflitos e reduzir a crítica ao capitalismo patriarcal a um questionamento ao “machismo” presente nos comportamentos individuais nas organizações, tirando o caráter sistêmico da opressão (2). Nessa lógica, a (falsa) solução para a desigualdade de gênero está no mercado, por seus projetos “sociais”. Ou seja, os investimentos em “programas de gênero” têm, ao fim e ao cabo, como sempre, o intuito de atuar positivamente no lucro das empresas através da limpeza de sua imagem (3).

Um exemplo é a petroleira Chevron, uma das maiores violadoras de direitos dos povos indígenas ao redor do mundo, estabeleceu parceria com um fundo feminista no Brasil, o fundo ELAS, para o desenvolvimento de projetos de empreendedorismo econômico com mulheres de comunidades locais (4).  Essa dinâmica de financiamento corporativo das ações feministas é uma armadilha. São estratégias que fortalecem dois tipos de discursos que são enganosos. Um é o de que não existe alternativa fora da lógica empresarial, e que atuar estrategicamente nestas parcerias poderia mudar o comportamento das empresas. Outro argumento é o de que é melhor que as empresas invistam nas mulheres do que continuar seguindo a mesma lógica de ter apenas lideranças masculinas. São raciocínios que guardam alguma esperança em relação a atuação das empresas e grandes organizações transnacionais. As violações sistemáticas de direitos das comunidades ao redor do mundo não nos deixam esquecer, no entanto, que não existe espaço para ingenuidade em relação a atuação destes atores. O objetivo de ampliar a autonomia das mulheres e das comunidades sobre seus corpos-territórios é sempre incompatível com a lógica intrínseca a qualquer corporação capitalista, isto é, a de buscar continuamente a ampliação do seu controle sobre os ‘recursos naturais’ e sobre o trabalho alheio.

As “políticas de gênero” das grandes ONGs 

Já falamos em boletins anteriores do WRM sobre como as grandes ONGs conservacionistas se comportam, na prática, como empresas (5). Não é diferente no caso da maquiagem lilás. Assim como as empresas transnacionais, as grandes organizações não governamentais têm apostado cada vez mais em vender uma imagem feminista para o mundo.

Essa tendência pode ser vista nas grandes ONGs da área de conservação, como The Nature Conservancy (TNC), Conservation International (CI) e World Wide Fund for Nature (WWF). Também acontece em organizações menores, como é o caso de Solidaridad . 

Todas estas organizações têm suas próprias “políticas de gênero”, documentos onde registram seus supostos compromissos com a igualdade entre homens e mulheres. Conservation International, por exemplo, afirma que constrói a igualdade de gênero direcionando os benefícios dos projetos igualmente para homens e mulheres, aumentando o acesso e controle das mulheres aos recursos e promovendo mulheres a papéis de lideranças. Um dos estudos da organização, sobre uma área protegida nas Filipinas, afirma que “as iniciativas de conservação não se dedicam suficientemente à garantia dos direitos das mulheres de participar e se beneficiar de programas, políticas e projetos de conservação”. (6) A organização também criou um programa de apoio a lideranças mulheres indígenas de países da Amazônia, com o intuito de “promover as ideias e ações das mulheres indígenas para conservar a Amazônia e manter a estabilidade climática.” (7)

No entanto, quando analisamos as ações de Conservation International nos territórios, vemos que sua conduta não vai no sentido de fortalecer as comunidades respeitando suas práticas e saberes. A organização já foi acusada pela Associação de Povos Ameríndios (APA) de desrespeitar os direitos territoriais com os povos indígenas da Guiana, por estar envolvida na criação de uma área sob proteção no sul do país sem consultar os povos da região. (8) Um caso mais recente, no Peru, mostra que um projeto liderado pela Conservation International é propagandeado com um caso de sucesso, mas acarretou despejos forçados, perda de meios de subsistência, destruição de cerca de dezenas de casas (a maioria em pleno dia das mães) e outros impactos sobre comunidades. (9) Como seria possível apoiar as organizações locais de mulheres e ter uma ação “feminista” sem nem mesmo respeitar a autodeterminação dos povos sobre seu território?

Para dar outro exemplo, a The Nature Conservancy lançou sua iniciativa “Mulheres no Clima”, que pretende reunir lideranças femininas nos esforços contra as mudanças climáticas. (10) A página da iniciativa começa com um discurso sobre a importância da participação política das mulheres e a inserção de mulheres de todas as orientações sexuais, afirmando uma postura “feminista”. No entanto, quando chegamos ao plano estratégico do programa, vemos que a perspectiva é de fazer negócios como sempre: se baseia nas metas da Agenda 2030 – um grande fracasso do sistema ONU (11) – e reforça a importância das ditas soluções baseadas na natureza, o novo nome para a mercantilização e financeirização da natureza e dos bens comuns. (12) 

A atuação das ONGs pode ainda ir no sentido de fazer uma maquiagem lilás sobre o agronegócio. É o caso por exemplo de um projeto da ONG Solidaridad, de origem holandesa, que atua para garantir a rastreabilidade e a produção de baixo carbono da soja no Brasil. Além disso, se preocupa em garantir a “participação feminina” no agronegócio.

Uma das iniciativas que a ONG apoia é a produção da Fazenda Laruna, comandanda pela produtora rural Claudia Liciane Sulzbach, localizada em Balsas, no Maranhão. A Fazenda Laruna conta uma área de produção de 1.100 hectares dedicados ao cultivo de grãos: soja, milho e feijão. Em entrevista, a produtora reforça que tem uma grande preocupação com “boas práticas” de produção, certificação socioambiental e com a afirmação da “força da mulher no agro”. É um exemplo muito elucidativo da junção da “maquiagem verde” do agronegócio com a “maquiagem lilás”, que supostamente promove o “empoderamento das mulheres”. Não é um tipo de iniciativa isolada, considerando que há no Brasil anualmente o evento “Congresso Nacional das Mulheres do Agro” onde empreendedoras como Cláudia ganham destaque contando suas histórias.

Na prática, sabemos que a produção de soja é um dos principais causadores de conflitos socioambientais no Maranhão, e que a produção de “soja sustentável” e de baixo carbono não passa de um conto de fadas. (13) Este tipo de agricultura “climaticamente inteligente” perpetua as mesmas injustiças que o agronegócio “clássico”, mantendo a distribuição injusta de terras no Brasil, as desigualdades socioeconômicas e o poder das empresas transnacionais. 

As experiências das mulheres de “sucesso” do agronegócio são grandes exceções e não tem nada a ver com a experiência dos milhões de mulheres camponesas, trabalhadoras do campo, em sua maioria negras, que não tem acesso à terra e lutam incessantemente pelo seu direito à terra e contra as monoculturas de soja do agronegócio. (14) 

Enquanto as ditas “mulheres de sucesso” se promovem em cima destas iniciativas, a esmagadora maioria das mulheres continuam sofrendo os impactos da destruição da natureza e da exploração do trabalho nos territórios. Ou, como coloca Tica Moreno, as ações das empresas “se dirigem a furar o “teto de vidro”, enquanto a grande maioria das mulheres é cada vez mais presa em pisos pegajosos, que mais parecem areias movediças” (15).

Natália Lobo – Sempreviva Organização Feminista (SOF) 


(1) ALVAREZ, Sonia. Neoliberalismos e as trajetórias do feminismo  latino-americano. In: MORENO, Renata (Org.). Feminismo, economia e  política: debates para a construção da igualdade e autonomia das  mulheres. São Paulo: SOF, 2014.
(2) FARIA, Nalu.—. Desafios feministas frente à ofensiva neoliberal. Caderno Sempreviva. São Paulo: SOF, 2019.    
(3) MILLER, Julia; ARUTYUNOVA, Angelika; CLARK, Cindy. Actores nuevos, dinero nuevo, diálogos nuevos – un mapeo de las iniciativas recientes para las mujeres y las niñas. Toronto, Awid, 2013.
(4) Idem
(5) https://www.wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim/alem-das-florestas-ongs-conservacionistas-se-transformam-em-empresas
(6) https://www.conservation.org/docs/default-source/publication-pdfs/tabangay-westerman---policy-matters-issue-20.pdf?sfvrsn=1c03f4f4_3
(7) https://www.conservation.org/about/fellowships/women-fellowship-opportunity-for-indigenous-women-leaders-in-environmental-solutions-in-the-amazon
(8) https://www.wrm.org.uy/pt/node/13339 
(9) https://www.theguardian.com/environment/2023/jan/18/forest-communities-alto-mayo-peru-carbon-offsetting-aoe 
(10) https://www.nature.org/en-us/what-we-do/our-priorities/tackle-climate-change/climate-change-stories/women-on-climate/ 
(11) https://www.wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim/a-agenda-das-grandes-ongs-de-conservacao-em-tempos-de-crise
(12) https://www.wrm.org.uy/pt/declaracoes/declaracao-nao-as-solucoes-baseadas-na-natureza
(13) https://www.brasildefato.com.br/2023/12/06/soja-sustentavel-avanca-no-maranhao-para-pesquisadores-conceito-e-conto-de-fadas 
(14) https://www.miqcb.org/post/empres%C3%A1rios-da-soja-usam-corrent%C3%A3o-para-desmatar-territ%C3%B3rio-quilombola-no-cerrado-maranhense
(15) MORENO, Tica. Armadilhas do poder corporativo: maquiagem lilás e mercantilização das lutas.  In: MORENO, Renata (org.). Crítica feminista ao poder corporativo.  São Paulo: Sof Sempreviva Organização Feminista, 2020.  p. 130-154. https://www.sof.org.br/critica-feminista-poder-corporativo/