Verbas oriundas do esquema de Florestamento Compensatório do governo Indiano vêm sendo alocadas a medidas de alívio aos impactos da Covid-19. O esquema financiou plantações de árvores que invadem terras comunitárias e causou despejos ilegais em lugares que foram declaradas “Áreas Protegidas”. O processo não foi interrompido durante o confinamento, e agora, esses ataques devem aumentar.
Em meados de maio de 2020, o Ministro das Finanças da Índia anunciou a alocação de 6 mil crores de rúpias (cerca de 1 bilhão de dólares) ao Fundo de Florestamento Compensatório (CAF, na sigla em inglês), mais conhecido como CAMPA (Agência de Planejamento e Gestão do Fundo de Florestamento Compensatório), como parte do tão aguardado pacote voltado a aliviar os impactos da Covid-19. É importante ressaltar que, desde que chegou ao poder em 2014, o atual governo tornou a vida da esmagadora maioria dos cidadãos da Índia mais vulnerável e insegura, pincipalmente adivasis (povos indígenas), dalits (castas oprimidas), minorias religiosas, camponeses, trabalhadores e pobres urbanos. Políticas econômicas insanas já paralisaram a economia, como a desmonetização de 2016 (quando o governo decidiu retirar do mercado, de repente, notas de determinados valores, causando imensos problemas ao povo), além da concessão de benesses vergonhosas a certos interesses empresariais. As pessoas são perseguidas e assediadas rotineiramente em nome do desenvolvimento, da segurança nacional e da religião. Os pobres e os trabalhadores do país estão literalmente sitiados desde o final de março, quando o primeiro-ministro declarou a Covid-19 como um “desastre nacional” e colocou o país sob confinamento rígido e abrupto.
Examinemos a situação de florestas e comunidades que dependem das florestas. Ignorando todas as objeções e os protestos de movimentos sociais e ativistas que lutam por direitos, o governo indiano prosseguiu com sua agenda de mercantilizar as florestas do país: em 2014, foi anunciado o Projeto de Política Nacional de REDD+ (atualmente concluído), seguido pelas Diretrizes de 2015 sobre o repasse de florestas “degradadas” a agentes privados, principalmente para a criação de plantações, (1) a Lei do Fundo de Florestamento Compensatório de 2016 (ou CAMPA), o Projeto de Política Nacional de Florestas em 2018, (2) e, por fim, as Propostas de Emenda à Lei Florestal da Índia, de 2019, que ainda estão na agenda. Em conjunto, todas essas medidas constituem a arquitetura de políticas voltadas a cercar, monetizar e vender as vastas florestas comunitárias do país. A pandemia de Covid-19 e as medidas tomadas pelo governo são mais uma ameaça – a mais recente em um cenário sombrio, em termos gerais. Infelizmente, essa nova ameaça apareceu em um momento em que ainda não se enfrentou a privação generalizada nas áreas tribais: uma paralisante falta de serviços públicos de saúde que limita em muito as possibilidades de conter a propagação do vírus, dezenas de milhares de trabalhadores migrantes retidos nas cidades, ausência de mecanismos institucionais e acesso para aquisição e distribuição de produtos florestais não madeireiros (PFNM), (3) desmatamento desenfreado que serve ao desvio de terras florestais sem consentimento das comunidades, descumprimento e não implementação de legislações avançadas, como a Lei dos Direitos à Floresta (FRA) de 2006 e a Lei das Panchayats (Extensão a Áreas Reconhecidas), de 1996 (PESA).
Em vez de respeitar a autonomia e a dignidade das comunidades tribais e de outras comunidades indianas que dependem das florestas, as verbas para alívio aos impactos da Covid-19 foram aprovadas dentro do antigo esquema de Florestamento Compensatório. (4) Esse mecanismo tem sido contestado por defensores dos direitos à floresta e organizações tribais, na Índia e internacionalmente, desde que a polêmica Lei do Fundo Compensatório foi cogitada pela primeira vez, em 2015. Mostraram que o Reflorestamento Compensatório é basicamente uma farsa e, na melhor das hipóteses, uma tentativa de fazer lavagem verde no desmatamento organizado e autorizado na Índia. Além disso, canalizar dinheiro ilimitado para a burocracia florestal colonial pode destruir os meios de subsistência de milhões de habitantes da floresta, causando graves danos ecológicos e agravando o deslocamento e a exploração de comunidades florestais.
O Fundo também foi questionado pelo Ministério de Assuntos Tribais (MoTA) do governo indiano. Em uma carta ao Ministério do Meio Ambiente, Florestas e Mudanças Climáticas (MoEFCC), escrita em março de 2018, o MoTA argumentou que o projeto de regras do CAF dilui as disposições da Lei de Direitos à Floresta (FRA).
O anúncio da liberação das verbas de Florestamento Compensatório aos estados, para “geração de empregos”, ignora as preocupações levantadas por movimentos e grupos ativistas sobre as violações permanentes aos direitos à floresta pelas plantações de árvores estabelecidas pela CAMPA, de um lado, e por uma intensa devastação de florestas, de outro. Os movimentos/grupos que se opõem à Lei e às Regras do Fundo de Florestamento Compensatório também são contrários à ação atual. O Florestamento Compensatório permite o desmatamento organizado ao desviar terras com florestas para fins não florestais sem o consentimento das comunidades, que deveria ser obrigatório, segundo a FRA. Isso resulta em uma perda geral de acesso às florestas comunitárias tradicionalmente usadas e conservadas pelas comunidades, cujas vidas dependem do sustento físico e cultural proporcionado por essas florestas. Além disso, as atividades de Florestamento Compensatório, que originalmente se destinavam a terras não registradas como florestas, aparecem com frequência em terras florestais de uso comunitário, campos de aldeias e terras comunitárias. Estas incluem terras em várias situações de posse, como florestas e terras comunitárias das aldeias (ambas conhecidas amplamente como nistar), antigas florestas zamindari (que tinham proprietários durante o período colonial) e terras do governo – todas embasando uma ampla gama de direitos de acesso e uso, registrados ou não, jurídicos ou consuetudinários, à coleta de lenha, ao pastoreio de animais e assim por diante. Segundo a FRA, esses direitos deveriam ser devidamente registrados e os títulos, concedidos a quem mora na floresta. Levantar plantações de Florestamento Compensatório em áreas florestais de uso comum e terras comunitárias só faz prejudicar a Lei dos Direitos Florestais (FRA) e, por fim, ajuda a perpetuar a injustiça histórica que ela promete corrigir.
Desde que o projeto de lei do CAF foi apresentado, em 2015, movimentos sociais e ativistas dos direitos vêm exigindo a transferência de fundos de Florestamento Compensatório às Gram Sabhas (assembleias de aldeia) e a garantia de que as atividades sejam realizadas apenas com o consentimento livre e prévio dessas instâncias, como previsto nas leis FRA e PESA. Essa reivindicação foi levantada novamente após a pandemia da Covid-19, para que as Gram Sabhas pudessem utilizar as verbas que atualmente alcançam uma enorme quantia de 55.000 crores de rúpias (cerca de 7,3 bilhões de dólares), (5) o que garantiria que as verbas respondessem às diversas necessidades geográficas e específicas das comunidades florestais da Índia.
No entanto, seguindo experiências anteriores, as autoridades florestais continuaram usando as verbas de Florestamento Compensatório para estabelecer plantações de árvores (principalmente de monoculturas e espécies comerciais) em terras cultivadas por comunidades que dependem da floresta e dentro de florestas comunitárias, transgredindo a autonomia e os direitos. As monoculturas também destruíram a biodiversidade, os produtos florestais não madeireiros (PFNMs) e os alimentos de origem florestal usados pelas comunidades. As verbas de Florestamento Compensatório também estão sendo usadas para despejar ilegalmente tribos e outras comunidades que dependem das florestas de Áreas Protegidas, como Reservas de Tigres, Parques Nacionais e Santuários da Vida Selvagem.
Ciente de que dinheiro de Florestamento Compensatório nas mãos de autoridades florestais só vai exacerbar as dificuldades que assolam as comunidades florestais, o governo indiano está anunciando essas verbas como uma medida voltada a favorecer as tribos e aliviar os problemas. Isso não apenas é irônico, mas também cheira a total desconsideração do atual governo com relação às realidades das pessoas e à decência humana. Além disso, o uso dessas verbas é obrigatório por lei, e a distribuição de dinheiro desse fundo não pode ser tratada, em nenhuma circunstância, como parte de um pacote econômico destinado explicitamente a combater os impactos da Covid-19.
Além disso, foi relatado que o departamento florestal está realizando atividades de plantio, bem como despejos de comunidades, durante o período de confinamento. Até o momento, elas incluem: autoridades oficiais derrubando florestas em Odisha, supostamente para criar plantações, (6) notificações de despejo entregues a moradores da floresta em Sikkim. (7) Em Madhya Pradesh, (8) Gujrat, (9) Manipur (10) e Odisha, (11) houve despejo forçado de comunidades cujas casas foram queimadas e demolidas durante o confinamento. Com essa nova liberação de fundos, esses ataques às pessoas devem aumentar.
Soumitra Ghosh
All India Forum of Forest Movements (AIFFM)
Este artigo é baseado, em grande parte, em uma nota à imprensa publicada em conjunto por movimentos e ativistas sociais indianos em 17 de maio, e em outra, do Fórum de Movimentos Florestais de Toda a Índia (AIFFFM), em 25 de março de 2020.
(1) Our Forests are not for Sale! Stop Privatizing India’s Forests!, nota à imprensa do All India Forum of Forest Movements (AIFFM), 21 de setembro de 2015
(2) Ghosh. S., Attack on India’s Forests and Forest Communities: Draft National Forest Policy 2018, Ground Xero, abril de 2018
(3) Down to Earth, Silence grips forest, maio de 2020
(4) Press Information Bureau India, 14 de maio de 2020, Rs6000 crore employment push using CAMPA funds
(5) Business Standard, A Rs 56,000-cr afforestation fund threatens India’s indigenous communities, junho de 2019
(6) Sabrang, Odisha Forest Department cuts down traditional trees, destroys livelihoods of forest workers, maio de 2020
(7) United News of India, Dzuluk forest dwellers served with eviction notice amid lockdown, seek justice from government, abril de 2020
(8) The Hindu, Tribals in M.P.’s Burhanpur say foresters burnt hut, junho de 2020
(9) Down to Earth, Covid-19: Gujarat forest department officials allegedly torched huts, fields, abril de 2020
(10) The People’s Chronicle, Eviction drive turns ugly as cops and locals clash, abril de 2020
(11) GroundXero, Odisha government’s relentless persecution of Adivasis continues even during the Lockdown, abril de 2020