Incêndios florestais e desmatamento são instrumentos para a consolidação da grilagem de terras que acompanha a expansão da fronteira agrícola capitalista sobre territórios de povos indígenas e comunidades tradicionais.
Cinco chaves de leitura para entender os incêndios florestais que assolam o Brasil nos últimos anos.
Em agosto de 2019, fazendeiros combinaram de atear fogo na floresta amazônica brasileira, mais precisamente na região sudoeste do estado do Pará, no que ficou conhecido como Dia do Fogo. Mais ao sul dali, no ano seguinte, incêndios tiveram início em fazendas de gado que fornecem carne a grandes frigoríficos (1), se espalharam rapidamente e queimaram 4,1 milhões de hectares do Pantanal (2), área alagada que atravessa as fronteiras com o Paraguai e a Bolívia.
Nos últimos três anos, a devastação socioambiental esteve no centro da agenda pública brasileira, ao mesmo tempo em que assistimos atônitos a um governo que mente sobre as causas e sobre sua própria responsabilidade no ocorrido.
Dados monitorados pelo Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (INPE) indicam que em março de 2019 o Brasil teve a maior quantidade de focos de incêndio registrada na série histórica, iniciada em 1998, contabilizando 5.213 focos. Abril de 2020 também bateu recorde, registrando a máxima para o mesmo período, com 4.117 focos de incêndios.
E essa realidade não é somente brasileira. Em 2020, o cenário sobre a dinâmica dos incêndios na América do Sul agravou-se, com máximas de focos registadas desde 1998, nos meses de março (31.529 focos), abril (23.139) e maio (15.070).
Para além das imagens de satélite e números sobre os incêndios e o desmatamento, é importante qualificar o debate: de um lado, trazer a dimensão do que é vivido no chão da floresta e dos sertões; de outro, apontar o que está por trás do fogo e da motosserra e sua relação com o agronegócio.
Neste texto, apresentamos 5 chaves de leitura que consideramos fundamentais na articulação Agro é Fogo (3), uma coalizão de movimentos, organizações e pastorais sociais que atuam há décadas na defesa da Amazônia, Cerrado e Pantanal e seus povos e comunidades.
1) Incêndios florestais e desmatamento são instrumentos para a consolidação da grilagem de terras que acompanha a expansão da fronteira agrícola capitalista sobre territórios de povos indígenas e comunidades tradicionais.
Usualmente o desmatamento e os incêndios são tratados como uma problemática meramente ambiental. No entanto, o desmatamento opera como um instrumento de apropriação privada da terra e, portanto, se concentra nas terras públicas não destinadas, justamente as áreas passíveis de grilagem. (4) É a potencial regularização da área grilada, a partir de anistias a grileiros e desmatadores historicamente concedidas no Brasil por diversas mudanças normativas, que viabiliza esse processo. Essas mudanças se aceleraram após o golpe de 2016 e têm ganhado ainda mais intensidade no governo de Jair Bolsonaro. (5)
Todas essas áreas de florestas e matas sobre as quais o capital tenta avançar são territórios de um sem número de povos indígenas e comunidades tradicionais que as habitam e as protegem e que, em muitos casos, não tiveram seus direitos territoriais reconhecidos. Portanto, não dá pra tratar a questão ambiental dissociada da questão agrária e fundiária no Brasil. Ao contrário, diante desse entendimento, a reforma agrária - incluindo a titulação de territórios tradicionais - passa a ser vista não somente como uma questão ética e de direitos, mas também um imperativo ecológico.
2) A cadeia de relações do AGRO é global e tem responsabilidades compartilhadas com a devastação nos territórios. Por mais que o ambientalismo de mercado tente promover o greenwashing das commodities que o Brasil exporta, o sistema agroalimentar globalizado e controlado por poucas corporações transnacionais altamente financeirizadas é intrinsecamente insustentável.
O Brasil tem sua economia exportadora extremamente dependente do agronegócio, que ocupa espaços de poder e controla uma narrativa de pujança. Na maior emissora de televisão do país, assistimos todos os dias a propagandas que dizem que "O agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo!". Apesar da proclamada tecnologia, o agro expandiu em volume de produção ao longo das últimas décadas muito mais em razão da expansão da fronteira agrícola do que pelo aumento da produtividade. Nesse sentido, o agronegócio moderno depende, como sempre dependeu, da invasão de terras públicas para se territorializar: por meio do crime organizado da grilagem e do saqueio madeireiro, com uso intensivo de trabalho escravo e fraudes grosseiras (6). Ao mesmo tempo, em um ciclo vicioso, mantém uma relação de dependência extrema com o Estado, que dentro dessa lógica tem que estar sempre a seu serviço.
Essa cadeia de relações é global, conectada a gigantes da agroindústria – desde frigoríficos e processadoras de grãos, passando por grandes laboratórios, empresas de fertilizantes e agrotóxicos até exportadoras –, e deixa boa parte dos brasileiros em situação de insegurança alimentar, mesmo sendo o país um dos maiores produtores agrícolas do mundo. Ela é cada vez mais difusa e financeirizada, como no caso dos Fundos de Pensão (7) internacionais que investem em terras griladas no Cerrado brasileiro, obscurecendo as responsabilidades compartilhadas. O rastro do fogo do agronegócio brasileiro é global e a crítica em torno da insustentabilidade das commodities que dominam o sistema agroalimentar globalizado também deve vir de outras partes do mundo.
3) A cadeia do AGRO sempre utilizou o fogo para realizar desmatamento, grilagem e controle territorial, mas com o combustível bolsonarista tem havido um aumento acelerado do uso do fogo como arma para ameaçar e expulsar povos e comunidades de seus territórios de vida.
O fogo tem sido historicamente usado nesses processos como uma verdadeira arma de controle territorial contra povos e comunidades, buscando expulsá-los de suas terras tradicionalmente ocupadas. (8) Há, no entanto, claramente uma intensificação de ataques com o fogo nos fronts do projeto de destruição bolsonarista: o presidente Bolsonaro incentiva a ilegalidade, perpetrada por seus seguidores. O chamado Dia do Fogo no eixo da BR-163 em agosto de 2019 é provavelmente a expressão mais flagrante disso, mas não é um acontecimento isolado. Para exemplificar, vamos apontar alguns casos que estão nas diferentes regiões.
Na expansão da fronteira agrícola a partir do Cerrado, (9) está a Terra Indígena Gamela, no Piauí. A comunidade vem sofrendo com vários incêndios criminosos por parte de grileiros produtores de soja: em 2017 e 2020, casas foram queimadas, e, em 2021, houve destruição de cercas, retirada de bens, um incêndio em um galpão da família, além de ameaças de morte.
Na região centro-oeste do Brasil, na antiga fronteira agrícola entre o Cerrado e o Pantanal, nos incêndios avassaladores de 2020, a Terra Indígena Kadiwéu teve mais de 211 mil hectares queimados, 39,15% do território. Na comunidade de ribeirinhos Barra de São Lourenço, três famílias tiveram que ser resgatadas pelo Corpo de Bombeiros e cerca de 25 famílias ficaram dias convivendo com as águas barrentas e cheias de cinzas.
No conhecido “Arco do Desmatamento”, área de transição entre Cerrado e Amazônia, a Terra Indígena Parque Indígena do Araguaia, no estado de Tocantins, onde vivem 3.500 indígenas Avá-Canoeiro, Iny Karajá, Javaé e Tapirapé e indígenas isolados, em 2019, ficou entre os dez territórios indígenas mais afetados na Amazônia Legal pelos incêndios daquele ano. Em 2020, a terra indígena teve 8.792 focos de calor e, em 2021, mais uma vez os incêndios têm destruído o que restava de vegetação.
Os incêndios florestais são expressão dos conflitos territoriais. Se ainda há Pantanal, Cerrado e Amazônia em pé é porque tantos povos indígenas e comunidades tradicionais têm lutado incansavelmente para manter seus territórios. E é o manejo que esses povos e comunidades fazem que conserva as florestas e multiplica a sociobiodiversidade.
4) O fogo é um elemento da natureza manejado com sabedoria e cuidado pelos povos indígenas e comunidades quilombolas, tradicionais e de base camponesa na Amazônia, Cerrado e Pantanal há milênios, prática crescentemente criminalizada
A fala de Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU em setembro de 2020 de que são "o caboclo e o índio" que botam fogo na floresta é obviamente uma cínica cortina de fumaça para desviar a atenção da origem dos incêndios criminosos. “Caboclo” foi usado pelo presidente para se referir às pessoas descendentes de indígenas. Mesmo entre quem é solidário às lutas dos povos indígenas e comunidades tradicionais, há muito desconhecimento e preconceito com a agricultura de coivara (ou roça de toco) e outros usos do fogo nos sistemas tradicionais. (10)
Esses sistemas guardam uma fina conexão com saberes milenares, desenvolvidos e adaptados pelos antepassados desses povos e comunidades. Nesse sentido, fazem parte do manejo de longo prazo das paisagens agroflorestais, caracterizadas justamente pela alta biodiversidade, além de alimentar e gerar renda para milhares de famílias. Especialmente no Cerrado, o manejo de biomassa permite a prevenção de incêndios, um saber que os indígenas têm trazido também como brigadistas nos programas dos órgãos ambientais. (11) Todo esse conjunto de saberes compõem um patrimônio que deve ser valorizado, respeitado e não estigmatizado e criminalizado, como vem acontecendo. São usos do fogo implementados com cuidado e reverência por esse elemento da natureza, ao contrário do fogo capitalista - associado direta ou indiretamente ao ciclo do desmatamento e grilagem.
5) A intensificação do desmatamento e incêndios florestais nos últimos dois anos tem que ser entendida como um desafio comum na defesa da Amazônia, Cerrado e Pantanal
Por fim, há uma relação sociometabólica entre Amazônia, Cerrado e Pantanal. O histórico de devastação do Cerrado pressiona a expansão da fronteira agrícola rumo ao Pantanal e à Amazônia. E a devastação de mais de metade do Cerrado, em especial nas chapadas onde nascem os rios que alimentam diversas bacias hidrográficas, tem tudo a ver com a crise hídrica em diversas regiões do país e com a baixa das águas na planície pantaneira - não nos esqueçamos que o rio Paraguai nasce no Cerrado e deságua no Pantanal e banha outros países da região.
Ou seja, a defesa da Amazônia, Cerrado e Pantanal está conectada. A Articulação Agro é Fogo entendem isso e, portanto, constroem uma luta comum. Tentamos agora ampliar esse diálogo com aliados da América do Sul, pois essa teia sociometabólica obviamente se estende para além das fronteiras, na PanAmazônia, Chaco e Bosque Seco Chiquitano, onde intensos incêndios também têm acontecido na esteira da expansão da fronteira agrícola.
Diana Aguiar, pesquisadora de Pós-Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e assessora da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.
Bárbara Dias, secretária Executiva da Articulação Agro é Fogo e doutoranda em Antropologia Social no Museu Nacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ).
Carolina Motoki, coordenadora de pesquisa da Articulação Agro é Fogo e assessora da Campanha Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra.
Valéria Pereira Santos, articuladora da Comissão Pastoral da Terra no Cerrado e mestra em Demandas Populares e Dinâmicas Regionais pela UFT.
(1) https://reporterbrasil.org.br/2020/09/fogo-no-pantanal-mato-grossense-comecou-em-fazendas-de-pecuaristas-que-fornecem-para-gigantes-do-agronegocio/
(2) https://lasa.ufrj.br/noticias/area-queimada-pantanal-2020/
(3) http://www.agroefogo.org.br
(4) Sobre a relação entre desmatamento e grilagem ver mais aqui.
(5) Neste artigo você verá a linha do tempo que mostra legislações que facilitaram a concretização da grilagem.
(6) Sobre a relação entre desmatamento, grilagem e trabalho escravo ver aqui e aqui.
(7) Nestes artigos você lerá sobre a relação entre Estado e Agronegócio e no que ela implica. Ver aqui e aqui.
(8) Na seção “No rastro do Fogo” você poderá acompanhar os diversos conflitos sistematizados pela plataforma, onde o fogo é utilizado como arma para grilagem de terras públicas, intimidação e expulsão de comunidades e povos tradicionais.
(9) Para demonstrar de forma mais concreta a intensificação do uso do fogo como arma contra povos e comunidades tradicionais na Amazônia, Cerrado e Pantanal nos últimos anos, recorremos à base de dados de conflitos no campo da Comissão Pastoral da Terra e os conflitos territoriais do Dossiê Agro é Fogo.
(10) Sobre o manejo do fogo nas comunidades tradicionais ver aqui.
(11) Ver: https://apublica.org/2021/09/conhecimento-indigena-inova-estrategia-de-combate-a-incendios/