Ao longo de sua cadeia de extração, produção e distribuição, cada “commodity” esconde muitas histórias de apropriação e destruição. De minerais a petróleo, de borracha a óleo de dendê, da madeira para celulose ao papelão e, hoje em dia, até mesmo créditos de compensação de carbono, água e biodiversidade estão ligados à violência e à apropriação indevida. Todos eles estão relacionados à terra que é tomada das comunidades e, muitas vezes, também, à poluição da terra, da água e do ar. A terra, principalmente para as comunidades camponesas e as que dependem das florestas, abrange muito mais do que o olhar comum consegue ver. Tomar sua terra e a água que a sustenta também significa tomar suas memórias, histórias, raízes e conexões. Terra e água são interligadas e inseparáveis, e nesse sentido, a água é um aspecto essencial da terra e da vida. Ela flui, transforma, nutre e está sendo nutrida por outros ciclos de vida. Portanto, a água é uma parte essencial das lutas das comunidades.
As consequências do envenenamento e/ou do saque da água são sentidas pelos sistemas de vida abundantes que dependem das muitas fontes de água e dos territórios que elas sustentam. Portanto, as operações extrativistas, os locais de produção e os corredores de transporte afetam áreas muito maiores do que os territórios ocupados por essas atividades poluentes em si. Sendo assim, seu impacto sobre a vida e as comunidades vai muito além dos locais de operação, produção e transporte.
Esses impactos devastadores são eles próprios muito profundos, como apontou Tom Goldtooth, da Indigenous Environmental Network, referindo-se aos impactos de projetos de compensação de carbono baseados em florestas, chamados de REDD+:
“Não se trata apenas da apropriação da terra, das nossas árvores e da nossa água, das nossas montanhas e dos nossos campos, mas da apropriação de nossa identidade. É a substituição de nossas cerimônias tradicionais indígenas pelo cristianismo; é se apropriar da nossa linguagem. Isso vem literalmente com o estupro das nossas crianças, o trauma histórico que está documentado no Canadá, nos colégios internos fundados pela Igreja. Essa é uma questão séria.”
15 anos de REDD: Um esquema corrompido em sua essência
Leonardo Tello Imaina, da Rádio Ucamará, de Nauta, no departamento peruano de Loreto, fala da ameaça que a “Hidrovia Amazônica” representa para os povos indígenas Kukuma. Esta Hidrovia é um megaprojeto que visa conectar os rios amazônicos aos mercados de capitais:
“O rio, ou a “cobra grande”, não pode ser visto como um caminho fixo, e está sempre em mudança e em intercâmbio com a floresta e seus muitos sistemas de vida. [...] O fundo do rio é muito importante para os espíritos que vivem na água, como a purawa (a cobra) ou os karuara, que são as pessoas que habitam as profundezas do rio, sendo transportadas pelos espíritos da água. Os que foram viver no mundo da água se comunicam através dos sonhos com suas famílias, as quais vivem no mundo da terra. As piscinas formadas nas margens dos rios, que permitem que a água continue dando voltas, são o local de vida de nossos ancestrais. Nesse sentido, os Kukama têm uma relação pessoal e profunda com os rios.”
Artigo do Boletim 244 do WRM, 2019
Maria Helena, da aldeia tupiniquim Pau-Brasil, no Espírito Santo, Brasil, destaca os impactos das plantações industriais de eucalipto sobre a água e, em particular, sua importância para as relações comunitárias, principalmente em relação às mulheres:
“E quando tinha um rio aqui, as mulheres pegavam suas trouxas de roupa… e era como uma festa na beira do rio, todas lavando roupa, principalmente aos sábados, e para quem tinha tempo, durante a semana. Era uma tarefa a menos, porque tinha toda aquela água no rio, e tudo era mais fácil. [...] Os problemas se agravaram quando começou todo esse processo, quando veio o eucalipto e começou a sugar toda a água do rio até chegar ao ponto que está hoje.”
Artigo do Boletim 128 do WRM, 2008
A poluição da água também tem um impacto devastador sobre as comunidades que lutam contra as plantações industriais de dendezeiros e madeira na Indonésia. “Mama Na”, que participa da luta contra as plantações industriais de dendezeiros em Kampung Subur, na regência de Boven Digul, em Papua, Indonésia, explica:
“A água está poluída. Há peixes mortos em toda a extensão dos rios Bian e Digul. Quando chegaram à região, eles construíram um hospital, o Korindo. É literalmente uma ‘casa para doentes’ (em indonésio, Rumah Sakit) porque a empresa chegou para nos deixar doentes. O dano penetra no subsolo, na água, e os peixes morrem. Quando usamos a água para cozinhar, a panela fica oleosa. Desde que a empresa chegou, a nossa sensação é de que perdemos a nossa cultura. Não temos mais as nossas tradições.”
Artigo do Boletim 253 do WRM, 2021
Uma mulher da comunidade Fulwaripara, no estado de Chattisgarh, na região central da Índia, onde muitas comunidades vivem com as florestas e enfrentam ameaças de expulsão devido a áreas de conservação, como reservas de tigres, reflete sobre como o acesso da comunidade à água e, com ela, a vida dessa comunidade, foram alterados tanto pela mudança climática quanto pelas restrições por uma área protegida de conservação:
“A estação das monções era boa naquela época, com muita chuva, mas agora surgiram as represas, que não permitem que a água vá até o mar. Como resultado, as ondas ficaram cada vez menores, criando menos pressão de maré, e as chuvas diminuíram. Por intermédio do mar, a água sobe e depois a chuva cai. Junto com as chuvas, apareciam muitos peixes/caranguejos e cobras. Temos lembranças de brincar com as cobras que se espalhavam por toda a terra com as chuvas incessantes. [...] Hoje em dia, nem sequer vemos muita água nos lagos.”
Artigo do Boletim 242 do WRM, 2019
Uma mulher guardiã das lagoas em Cajamarca, Peru, reflete sobre a resistência, liderada principalmente por mulheres, contra uma mineradora que quer tomar conta da água e dos territórios da comunidade:
“Quando era forte a resistência, nós nos levantávamos às 3 da manhã, íamos às vilas para convocar para a marcha. Mais tarde, íamos buscar alimentos doados nos mercados e nas lojas solidárias. Quando estávamos nas marchas, fazíamos cozinhas comunitárias, e ninguém ficava sem ter o que comer. Outras vezes, nos colocávamos na primeira fila das marchas, cantando nossas coplas, e enfrentávamos a repressão. Não nos importavam o cansaço nem as agressões, muitas vezes o grito de nossos maridos ou a incompreensão da família. Lutávamos pela água, que é a vida, por nossos filhos, e pelos filhos de nossos filhos”,
Artigo do Boletim 211 do WRM, 2015
Este boletim destaca experiências de comunidades que lutam contra o saque de sua água. Inclui histórias de Gabão, Costa do Marfim, Camarões, Peru, Bolívia, Brasil e Indonésia; histórias que mostram como a água e seu controle pelas comunidades são vitais e essenciais para suas lutas pela terra e pela vida.
rom Gabon, Ivory Coast, Cameroon, Peru, Bolivia, Brazil and Indonesia; stories that highlight how vital and intrinsic water and its community control are to their struggles for land and life.