Córdoba, localizada na região central da Argentina, é uma das cinco maiores províncias do país. Entre 1904 e 2004, perdeu 95% da sua floresta nativa, principalmente como resultado da expansão da agricultura em grande escala. Seus índices anuais de desmatamento estão entre os mais altos do mundo, com graves consequências para o meio ambiente, a saúde e a soberania alimentar da população, de acordo com pesquisadores da Universidade Nacional de Córdoba (1).
O desmatamento continuou durante a última década na província, que hoje só conserva 3% de suas florestas, de acordo com dados da ONG paraguaia Guyra (2). Como consequência da destruição da floresta, nos últimos anos, ocorreram inundações graves tanto no centro quanto no sul do território.
Nesse contexto, o Governo e o Legislativo de Córdoba decidiram criar o Plano Provincial Agroforestal (3), uma lei que promove monoculturas de árvores exóticas e o desenvolvimento da indústria florestal, e anunciaram, em agosto de 2017, que querem reflorestar 150 mil hectares nos próximos dez anos.
O Plano Agroflorestal de Córdoba faz parte do avanço contínuo do agronegócio sobre a floresta nativa e as terras camponesas e indígenas da Argentina. As graves consequências desse modelo extrativo se tornaram mais intensas nos últimos 20 anos, com deslocamento de comunidades rurais para as periferias pobres das cidades, aumento das doenças causadas pelo uso de agrotóxicos, inundações resultantes das mudanças no uso da terra, incêndios e perda de soberania alimentar.
Essa nova lei foi apresentada pelas autoridades como uma solução para problemas ambientais e sociais, mas a Coordenação Provincial em Defesa da Floresta Nativa, que reúne mais de 80 organizações cidadãs, camponesas e indígenas da província, se opôs a ela. Seus membros entenderam que a iniciativa é uma falsa solução para o problema do desmatamento e busca apenas promover o negócio das plantações industriais.
“É um instrumento de fomento econômico a monoculturas de pínus e eucaliptos através do qual o Estado subsidia o plantio dessas espécies exóticas (...) e beneficia os grupos econômicos do agronegócio”, afirmaram em uma carta pública (4). “Uma lei na esfera ambiental deve ser feita para proteger, e a monocultura de pínus e eucaliptos não é o caminho para atingir esse objetivo”, disseram.
A lei forçará os agricultores a plantar árvores em pelo menos 2% de suas terras agrícolas nos próximos dez anos, mas permite que o proprietário da terra não as plante em sua propriedade, e sim compre uma “parcela” da plantação, no que será chamado de “massas arbóreas agregadas”. Essas árvores são plantações de monoculturas que cumprirão as porcentagens obrigatórias a ser florestadas por diferentes produtores da mesma região.
O governo argumenta que é uma política de proteção do meio ambiente porque, segundo ele afirma, as plantações de árvores regulam o nível da água, ajudam a conservação do solo e captam o dióxido de carbono da atmosfera. No entanto, pelo menos três questões fundamentais não são claramente informadas à sociedade:
Promoção das plantações de monoculturas: para o Estado cordobês, dá no mesmo que o produtor rural plante espécies nativas em pequena escala com a intenção de recompor a floresta ou desenvolva uma monocultura comercial com espécies exóticas, com os impactos que isso acarreta.
Impactos das plantações de monoculturas: as plantações industriais de árvores esgotam a água, deterioram os solos e causam danos à saúde e ao meio ambiente pelo uso de pesticidas. Além disso, contribuem para a emissão de gases de efeito estufa em função do dióxido de carbono liberado pelas árvores quando são cortadas. Isso é agravado pelo aumento do risco de incêndios, que já são um problema grave nas regiões montanhosas da província.
Subsídios (e, portanto, maiores benefícios) àqueles que desmataram: O Estado subsidiará o reflorestamento dos campos com isenções fiscais e contribuições não reembolsáveis, sem levar em conta se esses mesmos proprietários fizeram cortes ilegais anos atrás. Na Argentina, esses benefícios existem desde 1999, através da Lei de Investimento de Florestas Cultivadas (5). Em maio de 2017, o governo do país anunciou que estenderá esses benefícios até 2030 com o objetivo de aumentar as plantações no país em 800 mil hectares, segundo informou a imprensa local (6). De acordo com dados oficiais, a Argentina hoje tem 1,2 milhão de hectares plantados com monoculturas comerciais, principalmente coníferas e eucaliptos (7).
O lobo cuidando das ovelhas
A autoridade encarregada da implementação do Plano Agroflorestal de Córdoba será o Ministério da Agricultura e Pecuária da Província, que apresentou o projeto de lei com o apoio de agências estatais e câmaras empresariais da agroindústria, que a Coordenadora em Defesa da Floresta Nativa identifica como os principais responsáveis pelo desmatamento das últimas décadas.
“O suposto enriquecimento da floresta que eles dizem ser promovido pela lei agroflorestal estará nas mãos do Ministério da Agricultura, que permitiu a devastação da província por monoculturas agrícolas e fumigações com pesticidas perto das casas”, disse Laura Dos Santos, membro da Coordenadora. “Eles são os responsáveis pela inundação do território ao destruir a floresta, e agora terão o plano agroflorestal em suas mãos”.
Quatro meses antes da aprovação do Plano, o Governo de Córdoba anunciou a assinatura de um acordo de um milhão de dólares com a província de Misiones para comprar tecnologia para desenvolver monoculturas (8). A empresa Biofábrica Misiones S. A., dedicada ao desenvolvimento biotecnológico de espécies florestais comerciais, prestará esses serviços a Córdoba (9).
Misiones é uma das províncias que concentram a maior produção de madeira na Argentina (10). Lá, nas últimas décadas, as empresas florestais – a principal delas, a chilena Celulosa Arauco – avançaram de forma dramática com suas monoculturas em territórios camponeses e terras indígenas (11).
Sem ordenamento territorial da floresta
Além de denunciar que o Plano Agroflorestal é feito sob medida para as empresas do agronegócio, as organizações de defesa da floresta se perguntam onde as árvores serão plantadas se não há um mapa de uso da terra que indique com certeza a situação atual.
Desde 2007, a Argentina tem uma lei que obriga as províncias a elaborar um mapa do Ordenamento Territorial da Floresta Nativa e atualizá-lo a cada cinco anos (12). Nele se identificam as diferentes áreas com cobertura vegetal que são classificadas de acordo com o nível de proteção. De acordo com a lei, a construção desse mapa deve ser feita através de um processo participativo que envolva toda a sociedade.
No entanto, desde dezembro de 2016, o Governo de Córdoba tentou avançar na atualização do mapa e na reforma da lei florestal da provincial sem o processo de participação cidadã (13). Além disso, as mudanças propostas permitiram mais desmatamento na província.
Isso gerou grande rejeição social. Foi nesse momento que as assembleias cidadãs em defesa da saúde e do meio ambiente, juntamente com organizações camponesas, indígenas e ambientalistas, se organizaram na Coordenação em Defesa da Floresta Nativa e iniciaram um processo de informação e conscientização da população. Como resultado, nos meses de dezembro de 2016 e março e junho de 2017, foram realizadas marchas multitudinárias na capital provincial que fizeram o governo retroceder na tentativa de avançar com um ordenamento territorial sem participação cidadã.
Como não conseguiu continuar com a reforma da lei florestal, o governo provincial decidiu acelerar a sanção do Plano Agroflorestal. A apresentação do projeto e o acordo político no Legislativo foram tão rápidos que não deu tempo para as organizações desenvolverem o mesmo processo de informação e conscientização realizado meses antes.
No entanto, a partir da pressão popular, alguns legisladores promoveram uma mudança no conceito de “enriquecimento da floresta nativa”. No texto original do projeto se falava em enriquecer a floresta com “espécies florestais nativas ou exóticas de alto valor comercial”. Em vez disso, estabeleceu-se que isso só poderia ser feito com plantas nativas.
Também foi incluído um artigo que obriga a autoridade encarregada da implementação a elaborar e atualizar uma lista de espécies de árvores recomendadas de acordo com cada região e uma lista de espécies exóticas invasoras proibidas. Isso ainda não foi difundido.
Caminho de luta
O estabelecimento imediato da Coordenação em Defesa da Floresta Nativa diante da nova ameaça, no final de 2016, provou mais uma vez que, em Córdoba, é a sociedade organizada que defende a floresta diante do avanço das mineradoras apoiadas pelo Estado.
A velocidade da organização social responde a anos de experiência de luta e resistência nessa província. Entre os antecedentes mais próximos estão o triunfo histórico da comunidade de Malvinas Argentinas que, em 2016, após quatro anos de resistência, impediu que a Monsanto instalasse ali uma das maiores fábricas de sementes de milho da América Latina. A isso se somam a luta contra as fumigações, a mineração e o avanço imobiliário sobre a floresta.
Experientes e reforçadas pelos triunfos, as organizações cordobesas estão determinadas a continuar defendendo os 3% da floresta que ainda estão de pé.
Lucía Guadagno, luciag [at] wrm.org.uy
Membro do secretariado internacional da WRM
(1) Cabido, M. e Zak, M. Deforestación, agricultura y biodiversidad (2010). http://www.unciencia.unc.edu.ar/2010/junio/deforestacion-agricultura-y-biodiversidad-apuntes
(2) Córdoba, un caso de estudio a nivel mundial. Jornal La Voz del Interior, 9 de março de 2017 http://www.lavoz.com.ar/ciudadanos/cordoba-un-caso-de-estudio-nivel-mundial
(3) Ley Nº 10467. Plan Provincial Agroforestal. Córdoba, Argentina. 2 de agosto de 2017. http://www.legiscba.gob.ar/contenidos/themes/Legislatura-th01/descarga_documento.php?codi=71867
(4) Carta de rejeição ao Plano Provincial Agroflorestal: ¡No más plantaciones de Pinos y Eucaliptus! Coordinadora Provincial en Defensa del Bosque Nativo. Córdoba. 1 de agosto de 2017. https://www.facebook.com/notes/coordinadora-en-defensa-del-bosque-nativo/carta-en-rechazo-al-proyecto-plan-provincial-agroforestal-no-m%C3%A1s-plantaciones-de/286366515170935/
(5) Ley de inversiones para bosques cultivados. Argentina. 1999. http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/55000-59999/55596/texact.htm
(6) Gobierno nacional va por cambios en la Ley 25.080l…Misiones Online. 15 de mayo de 2017. http://misionesonline.net/2017/05/15/gobierno-nacional-va-cambios-la-ley-25-080-promocion-forestal-hacia-desarrollo-industrial-compromiso-ambiental/
(7) Informe sobre el sector forestal. Ministerio de Agroindustria de la Nación argentina. Dezembro de 2015. http://forestoindustria.magyp.gob.ar/archivos/estadisticas/sector-forestal/sector-forestal-2014.pdf
(8) Córdoba avanza en el desarrollo forestal y ambiental. Gobierno de Córdoba. 20 de abril de 2017. http://prensa.cba.gov.ar/ciencia-y-tecnologia/cordoba-avanza-en-el-desarrollo-forestal-y-ambiental/
(9) Biofábrica puso en marcha la transferencia tecnológica en Córdoba. Biofábrica S.A. 4 de maio de 2017. http://www.biofabrica.com.ar/news/biofabrica-puso-en-marcha-la-transferencia-tecnologica-en-cordoba-20
(10) Informe sobre el sector forestal. Ministerio de Agroindustria de la Nación argentina. Diciembre 2015. http://forestoindustria.magyp.gob.ar/archivos/estadisticas/sector-forestal/sector-forestal-2014.pdf
(11) Misiones: organizaciones denuncian represalias y amenazas. Agencia de Noticias Redacción. 2 de septiembre de 2016.
(12) Ley de Presupuestos mínimos de protección ambiental para el enriquecimiento, la restauración, conservación, aprovechamiento y manejo sostenible de los bosques nativos. Argentina. 2007. http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/135000-139999/136125/norma.htm
(13) Ley provincial de bosques Nº 9814 (http://web2.cba.gov.ar/web/leyes.nsf/0/603DCE7A084735F10325777C006CCE5F?OpenDocument&Highlight=0,9814) y Proyecto de reforma de ley de bosques de Córdoba (http://www.legiscba.gob.ar/contenidos/themes/Legislatura-th01/descarga_documento.php?codi=68830.)