Nos últimos dez anos, por meio de organização e luta, famílias do nordeste da Argentina conseguiram recuperar terras monopolizadas pela multinacional Arauco, onde agora cultivam alimentos.
É possível recuperar grandes extensões de terras tomadas por empresas de plantação de árvores e voltar a cultivar alimentos. Isso é demonstrado pelas organizações de base de Misiones, na Argentina. Como resultado de anos de luta, famílias de Puerto Piray e Puerto Libertad evitaram ser expulsas de seu território. Em alguns casos, elas o fizeram por meio de expropriação; em outros, através de invasões e ocupações. Agora, com grande esforço, devolvem vida à terra compactada e sem nutrientes deixada pelas monoculturas de pínus e eucalipto.
A província de Misiones está localizada no nordeste da Argentina, na fronteira com o Brasil, e é atravessada por rios caudalosos e território da selva paranaense e de comunidades indígenas guaranis, gravemente prejudicadas e ameaçadas pelo avanço das monoculturas de árvores.
Em 1950, a fábrica da Celulosa Argentina S.A. se estabeleceu em Puerto Piray, às margens do rio Paraná. Nas décadas seguintes, com o fomento do Estado, duas outras fábricas de celulose foram instaladas, ampliaram-se as plantações industriais de pínus e se construíram as maiores serrarias do país. Apenas entre 1950 e 1977, a expansão da fronteira agrícola e das plantações industriais de árvores avançou sobre mais de 53% das florestas nativas (1). Nos últimos 25 anos, as monoculturas de pínus e eucalipto continuaram a avançar sobre as florestas na província: havia 7.347 hectares de plantações em 1992, em comparação com 405.824 alcançados em 2018. (2)
Essa expansão é explicada em grande parte pela implementação, desde 1998, da lei nacional 25.080, que dá enormes subsídios às plantações industriais de árvores. Em maio de 2017, o governo argentino anunciou que vai estender esses benefícios até 2030 e, em maio de 2018, lançou o plano “Forestar 2030”, que visa aumentar as plantações no país em 800 mil hectares (hoje, a extensão das monoculturas de árvores em toda Argentina chega a 1,2 milhão de hectares, dos quais 60% estão concentrados nas províncias de Misiones e Corrientes). O plano é apresentado como uma suposta solução para as mudanças climáticas e como elemento gerador de empregos. Por trás dessa iniciativa, além das empresas do setor e do governo, está a The Nature Conservancy Argentina (3), uma organização internacional de conservação que promove projetos de compensação e mitigação das emissões de carbono, em cumplicidade com as grandes empresas e os países industrializados, que continuam desmatamento e queimando combustíveis fósseis.
Arauco em Misiones
A transnacional chilena Arauco desembarcou em Misiones em 1996, com a compra da fábrica de celulose Alto Paraná S.A. (localizada em Puerto Esperanza), e em seguida instalou uma serraria e uma planta de MDF (sigla em inglês para painéis de fibra de densidade média). Em 2014, a Arauco detinha 39% das plantações de monoculturas de árvores em Misiones (4).
A concentração não se deu só com a terra, incluindo também a matéria-prima: as pequenas serrarias foram ficando sem acesso à madeira, defasadas em termos de tecnologia, e acabaram fechando e aumentando o desemprego. Por outro lado, os trabalhadores não foram necessariamente absorvidos pela nova empresa porque, com o aumento do uso da tecnologia, as tarefas demandadas pelas plantações de árvores, como plantio e colheita, que inicialmente geravam emprego, foram substituídas por máquinas e agrotóxicos. (5)
Luisa Segovia, da organização Productores Independientes de Piray (PIP), lembra-se de trabalhar coletando resina e plantando pínus. Seu marido Nicanor fazia trabalhos de capina, limpeza com facão e fumigação de pesticida com mochila – empregos precários que tiveram consequências graves para a saúde deles. “É uma empresa muito conflituosa porque não se preocupa com os seres humanos”, dizem eles. “Quando vinham as certificadoras, os engenheiros da empresa nos ameaçavam para que disséssemos que estava tudo bem”, relembra Nicanor.
A partir dos anos 2000, quando a Arauco começou a substituir empregados por máquinas, os trabalhadores não só perderam seus empregos, mas viram as plantações começarem a avançar sobre suas casas. Muitos lugares desapareceram como resultado das ações violentas da empresa e da cumplicidade do Estado, que deixava de proporcionar serviços básicos à população: sem trabalho, eletricidade, saúde e transportes, as pessoas eram forçadas a abandonar a terra.
A luta em Piray
Em Piray, famílias desempregadas começaram a organizar grupos de base no início de 2000. Elas estavam preocupadas com a falta de trabalho e o avanço do pínus sobre suas casas, gerando contaminação por pólen e agrotóxicos. Suas reivindicações às autoridades locais não foram ouvidas porque o município só respondia à empresa
“Foi quando começamos a acordar e vimos que o nosso projeto essencial tinha que ser a busca de uma saída: viver melhor”, diz Miriam Samudio, membro da organização Productores Independientes de Piray (PIP). Então começaram a dizer: Precisamos que os pínus saiam e que possamos trabalhar e produzir alimentos nessas terras, e essa se tornou a sua bandeira.
Em 2003, eles fizeram uma reunião com a Arauco, na qual os engenheiros disseram que a empresa não cederia um centímetro de terra e, em vez disso, se ofereceram para construir uma fábrica de alpargatas, roupas ou fraldas. Mas as famílias recusaram porque queriam terra, queriam produzir.
E começou a batalha. “A primeira coisa foi conscientizar o nosso povo, a comunidade e a sociedade para que entendessem o que estávamos pedindo, por que estávamos desafiando uma multinacional”, explica Miriam. Foram realizadas reuniões e passeatas, e criou-se uma mesa de negociações com as autoridades. Nessas reuniões, a cumplicidade entre o governo local e a Arauco ficou clara. “Percebemos que o único objetivo era nos desgastar, então abandonamos a mesa”.
Até então, havia cerca de 200 famílias organizadas sob o nome de Productores Independientes de Piray (PIP). Com o fracasso da mesa de negociações, elas decidiram começar a se vincular a organizações de agricultores de outras localidades, como a Unión Campesina de Bernardo de Irigoyen ou a Unidos Ruta 20. “Eles nos diziam: ‘Vocês não têm que ter medo, eles sempre vão dizer que não, mas nós temos direitos, é a nossa terra, e as multinacionais vêm para roubar o que é nosso”. Um dos receios das famílias de Piray era ser presas, porque às vezes a polícia tentava culpá-las por supostos crimes. “Mexer com a Arauco era mexer com o poder e seus amigos”, dizem.
Um fator importante na luta foi a comunicação dentro da organização. “Nós nos juntávamos todos os fins de semana. Isso ajudou a que a comunicação entre as famílias fosse sempre clara. E o que era decidido era feito em conjunto”, explicam. Outro hábito que eles mantiveram era levar a reivindicação à mídia local. “Denunciávamos que a comunidade de Piray estava sufocada pelos pínus e apresentávamos todos os nossos argumentos.”
Expropriação
Em 2012, depois de dez anos de luta, a PIP decidiu exigir que o governo expropriasse as terras da Arauco. Naquele ano, a então presidente da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, anunciou a expropriação da petroleira YPF. “A partir daquele momento, começamos a dizer ‘expropriação’ abertamente”, diz Miriam. “Antes, era uma palavra proibida porque ia contra a propriedade privada. Mas uma vez que a presidenta disse, nós a assumimos como uma ferramenta”.
A partir dali e durante quase um ano, a PIP percorreu a província e o país para reunir adesões ao projeto de expropriação. Eles continuaram sua luta no território, fizeram mobilizações e permaneceram firmes em sua reivindicação: “Era terra ou nada, porque se não, íamos desaparecer”. Em junho de 2013, a Legislatura de Misiones aprovou a expropriação de 600 hectares para a Arauco. Foi uma grande vitória inicial.
Cultivar onde um dia houve pínus e eucaliptos
A primeira entrega de terras só aconteceu em 2017, e o trabalho foi muito difícil para os agricultores. A empresa cortou as árvores e entregou a terra em um estado lamentável, completamente degradada, com todos os pedaços de troncos espalhados pelo campo, cheia de galhos e outros detritos deixados depois que a madeira foi levada. Os agricultores descobriram que a terra estava muito compactada pelos contínuos ciclos de plantações de 8/9 anos, que não permitem que o solo se recupere, e pelas toneladas de peso das máquinas usadas pela empresa. A isso se acrescenta que, depois de anos de aplicação de agrotóxicos, quando apareceu uma cultura sem produtos químicos, ela se encheu de insetos e pragas que tinham desaparecido pelo uso contínuo de venenos.
Na primeira entrega, eles receberam apenas 166 hectares dos 600 expropriados (a Arauco entrega a terra à medida que colhe os pínus e eucaliptos). Desses 166, apenas cerca de 86 estavam aptos ao cultivo. O resto está ocupado por famílias. A empresa incluiu nas terras a expropriar cerca de 80 hectares onde vivem famílias há mais de 20 anos. A PIP decidiu aceitá-los como parte da primeira parte para não cair na estratégia da empresa de fazer com que as famílias entrassem em conflito, mas eles explicam que, mais tarde, lutarão para que a Arauco entregue outros 80 hectares aptos ao cultivo em um lugar que não seja habitado.
As terras foram divididas em uma parte para as famílias e outra para o cultivo coletivo por parte da cooperativa. Os agricultores plantaram abóbora, milho, mandioca e melancia, entre outros. “Onde havia eucalipto, a terra parecia concreto”, dizem. O trabalho está sendo feito todo à mão porque eles não têm recursos para comprar máquinas e o Estado não colabora. Eles tentaram usar um boi, mas o animal morreu de cansaço devido ao esforço para semear uma terra tão compacta por tantos anos.
Outro problema grave foram as pragas. Assim que começaram a crescer, as plantações se encheram de “insetos”. Com a assessoria de técnicos da secretaria da Agricultura Familiar local (que acompanhou a PIP durante todo o processo de recuperação), eles elaboraram preparados naturais para combatê-los, e sabem que levará tempo até que o ecossistema retorne ao seu equilíbrio natural e as pragas parem de atacar as plantações, mas estão determinados a não usar agrotóxicos.
Com a terra danificada pelas monoculturas e a falta de maquinário, a primeira colheita rendeu muito pouco – segundo a estimativa deles, menos de metade do que teriam colhido em uma terra saudável. E eles afirmam que essa colheita foi possível graças à qualidade da terra, já que a empresa expande suas plantações sobre terras mais férteis e com melhor relevo. Isso é denunciado pelos agricultores não só em Piray, mas também em outras áreas de Misiones.
Reaparecimento da água
Em uma área onde antes havia um banhado, ele reapareceu quando os pínus foram cortados. Os produtores nos dizem que ele sempre esteve lá, mas os eucaliptos e os pínus foram plantados nos campos que o cercavam, a água quase desapareceu, e o banhado chegou a seu nível mínimo. Na verdade, haviam plantado pínus nesse banhado desde que a água desaparecera. “É um reservatório natural de água; se o banhado secar, a vertente que chega à casa dos moradores secará”, explicam os produtores. Agora, depois de meses cortando os pínus, ainda se podem ver os restos de troncos entre a vegetação de banhado que está ressurgindo. A água está voltando.
Por enquanto, o que cultivam dá para o consumo próprio e permite que eles permaneçam em suas terras. Eles ainda não produzem volume suficiente para vender em quantidade nos mercados locais, mas esse é o seu projeto para o futuro, à medida que recebam a terra que falta. “Semear luta e colher terra” é o lema do PIP.
Ocupações em Puerto Libertad
Em Puerto Libertad, a 70 quilômetros ao norte de Piray, a Arauco possui quase 80% das terras: 65 mil hectares dos 80 mil do município (6). A cidade tem cerca de 7 mil habitantes e está literalmente cercada por pínus.
Lá, também, o aumento do uso de tecnologia pela Arauco causou centenas de demissões nos anos 2000. A maioria era de operadores de motosserra que trabalhavam para empresas terceirizadas pela multinacional. Além disso, já não havia espaço para novas casas no centro urbano de Puerto Libertad, e uma rua depois da planta urbana já começam as plantações de pinheiros. Tudo isso fez com que muitas famílias buscassem espaço para morar fora da cidade e, ao mesmo tempo, poder cultivar a terra para subsistência e como fonte de renda familiar. Aqui, a recuperação de terras para o cultivo ocorreu principalmente por meio de ocupações.
Atualmente, cerca de 100 dessas famílias formam a cooperativa “Parajes Unidos”, de Puerto Libertad, na qual organizam a produção de alimentos e a comercializam em diferentes mercados locais. As propriedades familiares têm entre dois e três hectares cada, nos quais plantam mandioca, milho e verduras, e criam animais.
As ocupações de terras aconteceram em várias etapas. Uma delas foi em 2006, em terras de “capoeira” (área de selva que foi aberta anos antes para o cultivo). Posteriormente, em 2015, as terras onde havia plantações da Arauco foram ocupadas, depois que a empresa tinha feito a colheita do pínus. Em outros casos, os ex-operadores de motosserra compraram “benfeitorias” em propriedades (o que havia sido construído sobre o terreno, mas não o terreno em si) cujas terras foram posteriormente reivindicadas pela Arauco como suas.
Sendo terras ocupadas, muitos desses agricultores enfrentam conflitos com a multinacional ou com proprietários que cultivam pínus para a empresa (em função de uma lei nacional que limita a propriedade da terra nas mãos de estrangeiros, a Arauco não pode comprar mais terras em Misiones). Por causa desses conflitos, os agricultores são frequentemente perseguidos pela polícia local.
Devolver vida ao solo
Nora Duarte é uma das mulheres que participaram de várias recuperações e tem experiência de cultivar em terras onde antes havia plantações. Ela explica que, onde existiam florestas de pínus há mais de 20 anos, hoje a terra é seca e dura. “Ali não cresce verdura; talvez a cebola, mas não a mandioca. Ela diz que uma das maneiras de recuperar o solo é plantando legumes. Depois de três anos trabalhando na terra, eles conseguem colher aproximadamente metade do que cultivaram. Em outros campos, onde as plantações de pínus existiram por apenas dez anos, é possível colher mais variedade.
Os pequenos produtores destacam o grande investimento de dinheiro e tempo que fizeram para recuperar a fertilidade da terra. Durante o tempo que o solo leva para se recompor e produzir o suficiente para que a subsistência das famílias, elas têm que fazer trabalhos informais. Os vizinhos também se ajudam, emprestando terrenos adequados para a agricultura e intercambiando alimentos. Em alguns casos, essas famílias podem levar até dez anos para viver somente de sua própria produção.
Elas também não contam com o apoio do Estado: “Nós não temos estudo, mas sabemos o que é certo e o que é errado”, diz um dos agricultores. “Por que o governo facilita tanto para as empresas comprarem máquinas e nós não temos nem para comprar um facão?”, eles se perguntam.
Os produtores argumentam que, se fosse possível tomar mais terras e transformá-las em pequenas propriedades, muitas famílias de cidades próximas se uniriam a esse projeto de vida.
Emilio Spataro, Guardiantes del Iberá (Argentina), emiliospa@gmail.com
Lizzie Díaz, secretariado internacional do WRM, lizzie@wrm.org.uy
Lucía Guadagno, secretariado internacional do WRM, luciag@wrm.org.uy
(1) Ramírez, Delia. Acorralados por los pinos. Consecuencias del avance de la forestación en el Alto Paraná misionero. En Cartografías del conflicto ambiental en Argentina 2 / Facundo Martín ... [et al.]; compilado por Gabriela Merlinsky. 1a ed . Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fundación CICCUS, 2016. Pág 115.
(2) Ministerio de Hacienda de la Nación. Informes productivos provinciales. Misiones, enero 2018.
(3) Dirección Nacional de Desarrollo Foresto Industrial. “El Gobierno nacional lanzó la plataforma Forestar 2030”
(4) Idem 1. p. 118.
(5) Grupo Guayubira. “Misiones, Argentina: pinos, pasteras y mentiras”
(6) Alvez, Sergio. “El 80% de la superficie del municipio Puerto Libertad le pertenece a una multinacional”