Em nível global, muitas pessoas dependem da madeira como combustível para cozinhar e para calefação, mas, cada vez mais, os interesses comerciais e industriais também estão recorrendo à madeira para produzir a chamada “bioenergia”. Enormes usinas a carvão na União Europeia e nos EUA estão fazendo combustão mista de grandes quantidades de madeira junto com o carvão. Algumas usinas a carvão estão até se convertendo inteiramente para pellets de madeira, pelo que, em vários países, elas podem ser recompensadas com subsídios relacionados à “energia renovável”. Essas instalações energéticas requerem grandes quantidades de madeira, criando um novo comércio internacional de cavacos de madeira e pellets, e ameaçando ainda mais florestas, ecossistemas, direitos humanos e o clima (1).
Enquanto isso, é mais difícil converter madeira em combustível líquido para o transporte. A maior parte dos combustíveis líquidos usados atualmente para o transporte – e, em menor grau, para a geração de eletricidade – é feita de milho, cana de açúcar e oleaginosas, mas a indústria e os defensores de uma “economia de base biológica” dependem muito de combustíveis líquidos à base de madeira e outros, ditos de segunda geração, em seus cenários de uso futuro desses combustíveis líquidos. Grandes quantidades de dinheiro foram empregadas em pesquisa e desenvolvimento ao longo de muitos anos e, mesmo assim, ainda não existe produção comercial significativa de combustíveis líquidos derivados da madeira.
Com efeito, converter madeira em combustível requer energia. Dependendo do processo, os insumos de energia podem superar a energia derivada do uso do combustível. Produzir combustíveis líquidos a partir de madeira também é caro. Diversos projetos, incluindo Choren, na Alemanha, e Range Fuels, no estado norte-americano da Geórgia, que deveriam produzir combustíveis líquidos à base de madeira, acabaram falindo. No entanto, continua havendo grande interesse (e subvenções públicas), principalmente de parte das indústrias militares e da aviação dos Estados Unidos, que consideram os combustíveis líquidos feitos com biomassa essenciais para seu futuro, pois não existem outras opções para alimentar equipamentos militares e aviões.
Existem duas abordagens à transformação de biomassa sólida, como a madeira, em combustível líquido: uma se baseia em calor e pressão – e, infelizmente, para a indústria, em calor e pressão demais para que o processo compense em termos econômicos, bem como energéticos. A outra se baseia em biotecnologia – ou seja, na engenharia de micróbios e enzimas para que rompam as paredes celulares. Assim, manipulando-se a madeira das árvores, suas paredes celulares podem ser rompidas com mais facilidade. Isto significa que a celulose da madeira pode ser usada com mais facilidade para se obter etanol. Os desafios são muitos, mas um dos maiores obstáculos é a lignina. A lignina é o material que dá estrutura forte às paredes das células na madeira, permitindo que as árvores cresçam eretas em direção ao céu. Mas, na tentativa de transformar a madeira em etanol e outros combustíveis líquidos, a lignina atrapalha, o que torna difícil acessar os açúcares da celulose e cria grandes quantidades de subprodutos de baixa qualidade (ou seja, resíduos).
Portanto, alterar e fazer engenharia de árvores para ter lignina em menor quantidade, ou modificada, é um dos principais objetivos da pesquisa em biotecnologia de árvores. Outra abordagem complementar é usar novas técnicas de biologia sintética para projetar micróbios capazes de produzir enzimas que rompam a lignina (e então, talvez, também converter açúcares em combustíveis e outros produtos químicos).
Para compreender as pesquisas que estão em andamento e a mentalidade por trás delas, vale a pena dar uma olhada em publicações acadêmicas. Em um estudo recente intitulado “Bioengenharia de lignina”, os autores afirmam: “A lignina é o principal material responsável pela recalcitrância [resistência à ruptura] da biomassa, quase não tem utilidade industrial e não pode ser simplesmente removida das plantas em crescimento sem causar danos graves ao seu desenvolvimento. Felizmente, estudos recentes relatam que a composição e a distribuição da lignina podem ser manipuladas em certa medida, usando promotores de tecidos específicos para reduzir essa recalcitrância, alterar suas propriedades biofísicas e aumentar seu valor comercial. Além disso, o surgimento de novas ferramentas de biologia sintética para conseguir o controle biológico [...] abre novas portas à engenharia.” (2)
As técnicas de biologia sintética são chamadas, muitas vezes, de “engenharia genética extrema”. Elas fazem uso das novas ferramentas de informática que permitem aos pesquisadores analisar e sintetizar códigos genéticos em um computador, trabalhando não apenas com um ou dois genes, mas com sequências de centenas deles. Essencialmente, essas abordagens permitem a construção de novas formas de vida (micróbios, incluindo fungos, bactérias e-coli e microalgas) programadas como “fábricas químicas vivas” para gerar produtos químicos e compostos considerados “úteis” para as pessoas. Os riscos são elevados e numerosos, principalmente porque a contenção e o controle de micróbios é praticamente impossível. No entanto, a biologia sintética está avançando rapidamente. Muitas das empresas de “biocombustíveis” mais bem avaliadas da indústria, como a gigante do agronegócio Syngenta e a indústria química alemã Basf, usam a biologia sintética (3). Enquanto isso, uma série de produtos não biocombustíveis, ou seja, produtos derivados da biologia sintética que não são combustíveis, incluindo perfumes, produtos farmacêuticos e muito mais, já estão em mercados comerciais, sem supervisão ou regulação (4).
Outro trabalho acadêmico recente afirma: “Redesenhar a lignina, [...] é uma forma promissora de produzir plantas que são projetadas para se despedaçar”. (5)
Fazendo a engenharia do desmatamento
Ganha força uma campanha internacional para deter a liberação comercial de árvores transgênicas cuja solicitação está atualmente pendente no Brasil e nos EUA, e se pode esperar que o movimento seja tão “recalcitrante” quanto a própria lignina (6).
A campanha chama a atenção para os riscos potenciais de contaminação de espécies selvagens com características de “despedaçar-se”, bem como a fuga praticamente inevitável de micróbios que digerem lignina de laboratórios e refinarias. Ativistas estão pedindo a proibição da liberação comercial das árvores transgênicas. Há, também, uma demanda crescente por uma moratória à liberação comercial de produtos derivados da biologia sintética.
Os impactos destrutivos das plantações industriais de árvores nas comunidades onde elas existem são bem conhecidos. As árvores geneticamente modificadas são feitas para ser cultivadas em plantações e só vão contribuir ainda mais para esses problemas. Os impactos da biologia sintética permanecem incertos, mas há uma consciência cada vez maior de que alguns produtos em desenvolvimento vão prejudicar os meios de subsistência (por exemplo, os produtores de baunilha podem perder seu mercado para produtos sintéticos). Além disso, os impactos de qualquer liberação de micróbios sintéticos que digerem a celulose de plantas no meio ambiente têm um potencial desastroso. Por fim, a quantidade muito elevada de madeira necessária para produzir combustíveis líquidos em escala comercial podem aumentar dramaticamente o desmatamento e a conversão de florestas nativas e ecossistemas (em plantações).
Todo o conceito de manipulação e engenharia de árvores, micróbios e outras formas de vida para atender a uma demanda insaciável por combustíveis, produtos químicos e materiais é ética e moralmente falida. A mentalidade arrogante e reducionista, que trata a natureza como algo sobre o qual se pode fazer engenharia para fins comerciais, ignora totalmente qualquer compreensão da inter-relação profunda, complexa e bela entre todas as formas de vida, obtidas como produto da nossa herança evolutiva comum.
Rachel Smolker, BiofuelWatch US
(1) Para mais informações, ver: http://www.biofuelwatch.org.uk/2013/chain-of-destruction/ and
http://www.pfpi.net/trees-trash-and-toxics-how-biomass-energy-has-become-the-new-coal
(2) Aymerick, Eudes, Liang, Y., Mitra, P. e Loque, D. 2014. Lignin Bioengineering. Current Opinion in Biotechnology 26: 189-198
(3) Ver: http://www.biofuelsdigest.com/bdigest/2014/05/04/the-complete-2014-5-minute-guides/
(4) Para mais informações: http://www.etcgroup.org/issues/synthetic-biology
(5) Wilkerson et al, 2014. Monolignol Ferulate Transferase Introduces Chemically Labile Linkages Into the Lignin Backbone. Science 344 (90)
(6) Mais informações, aqui: http://stopgetrees.org