O que é a arquitetura da impunidade e como as empresas transnacionais se beneficiam dela?
Uma das principais razões sistêmicas para a impunidade corporativa generalizada é o que muitos movimentos sociais conceituaram como Arquitetura de Impunidade: o marco normativo assimétrico que, por um lado, concede às transnacionais “superdireitos” por meio da Lex Mercatoria (o quadro jurídico que protege os interesses dos investidores, como tratados de livre comércio, tratados de investimento bilaterais e plurilaterais, etc), enquanto, por outro lado, prejudicam a força e a implementação de todas as normas jurídicas destinadas a proteger os direitos humanos.
Portanto, enquanto os instrumentos jurídicos da Lex Mercatoria são obrigatórios e têm mecanismos de aplicação – como o Mecanismo de Solução de Controvérsias da Organização Mundial de Comércio (OMC) e o Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (ICSID, em inglês) do Banco Mundial – o sistema internacional de Direitos Humanos não tem um tratado sobre violações e crimes cometidos por transnacionais cuja aplicação seja obrigatória, e menos ainda um mecanismo de aplicação da norma.
Em vez disso, a iniciativa Unidade de Empresas e Direitos Humanos da ONU promove diretrizes voluntárias frágeis, por meio do marco de Responsabilidade Social Corporativa (RSC), como falsas respostas à impunidade corporativa, com a cumplicidade de governos e até mesmo de algumas organizações da sociedade civil, além de um patrocínio evidente de grandes empresas transnacionais. As normas de RSC não são obrigatórias e não dispõem de mecanismos de aplicação, permitindo que as empresas continuem cometendo violações de direitos humanos e crimes sistemáticos, sem enfrentar respostas relevantes através de processos correspondentes de acusação, investigação, julgamento, indiciamento e punição, bem como, e mais importante, indenização e reparação para as vítimas. Hoje, isso é expresso pelos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos propostos pelo Representante Especial da ONU John Ruggie, em 2011, e aprovados pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Apresentando orientações voluntárias como falsas soluções
A Campanha Global para Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade (hyperlink: www.stopcorporateimpunity.org) organizou com os aliados uma manifestação (hyperlink: http://www.stopcorporateimpunity.org/?p=4704) em frente ao Fórum da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos (de 2 a 4 de dezembro de 2013 em Ginebra) contra a captura da Organização pelas corporações e, ao mesmo tempo, exigindo regulamentação obrigatória para empresas transnacionais. Esse Fórum é a reunião anual em que o marco de RSC é “celebrado” e deve avaliar os avanços na implementação dos Princípios Orientadores. O espaço expressou sem disfarces a captura das Nações Unidas pelo poder das corporações, não só em função da presença generalizada de transnacionais, mas também pela enganadora lógica subjacente a ele, de que não há diferença entre interesse privado e público e, portanto, a idéia de que ter um espaço de diálogo levaria a alguma espécie de colaboração frutífera entre “stakeholders” cuja orientação é comum. Isto é uma negação explícita da assimetria de poder entre os perpetradores de violações recorrentes (neste caso, várias empresas transnacionais, como documentado) e vítimas (comunidades locais e pessoas de forma mais ampla), e em muitos casos, Estados que deveriam proteger as populações e acabam muitas vezes sendo cúmplices de violações.
Tentativas históricas de regulação obrigatória
Ao longo de várias décadas, todas as tentativas de constituir marcos obrigatórios dentro do sistema de direitos humanos por meio de um tratado internacional e mecanismos de aplicação foram desmanteladas pelo lobby corporativo e a cumplicidade de governos.
Um tratado obrigatório não significa um mundo ideal, sem violações. No entanto, no marco do direito internacional, seria o mecanismo mais avançado para combater a impunidade corporativa e obter reparação e indenização para as vítimas. Ao mesmo tempo, ações judiciais e acusações resultantes disso reforçariam a denúncia do caráter sistemático de violações e crimes corporativos, e isso seria extremamente importante em uma das principais tarefas que enfrentamos hoje: desmantelar a legitimidade cultural hegemônica das corporações dentro do sistema capitalista, uma legitimidade que levou as políticas públicas em todos os níveis a ser realizadas dentro de uma ideologia enganosa, com trágicas consequências, segundo a qual o que é bom para o interesse privado das corporações é exatamente o mesmo que o bem público e comum das sociedades.
A iniciativa em curso por um Tratado sobre Empresas Transnacionais obrigatório, no âmbito das Nações Unidas
Uma recente iniciativa de 85 países (ver http://www.stopcorporateimpunity.org/?p=3830) pediu que o Conselho de Direitos Humanos da ONU considerasse a adoção de uma resolução para um tratado obrigatório.
A oposição à iniciativa é generalizada. A maioria dos 85 países é beneficiária de investimentos, e alguns já podem ter sofrido assédio de governos do Norte que alegam que estar ligado a uma iniciativa desse tipo levaria à perda de fluxos de investimento, segundo a narrativa de costume.
No entanto, é importante ressaltar que mais de 40 anos de tentativas de regulamentação obrigatória careceram de uma pressão de base por parte dos movimentos sociais que poderia colocar os testemunhos das vítimas em primeiro plano e fazer com que sustentassem a reivindicação por um tratado obrigatório como poderoso instrumento em sua luta por justiça. É dessa importante lacuna – movimentos sociais e um contrapoder das vítimas de crimes corporativos – que trata a Campanha Global e sua proposta de estabelecer um Tratado dos Povos.
O processo do Tratado dos Povos: uma alternativa dos movimentos sociais
Uma das principais estratégias da Campanha Global para desmantelar o poder corporativo e impedir a impunidade é o processo do Tratado dos Povos (TP). A idéia de um Tratado dos Povos (ver http://www.stopcorporateimpunity.org/?p=4638) veio de um entendimento de que a Arquitetura da Impunidade deve ser combatida com o uso alternativo e radical da lei e da justiça a partir de baixo, uma proposta que se origina dos povos, especialmente daqueles mais afetados pelos crimes corporativos. Isto significa que o TP vai expor a visão política que os movimentos sociais e as comunidades afetadas têm de normas e princípios de justiça e de um sistema global sem capturas nem poder corporativo.
O valor agregado da Campanha e do processo do TP está exatamente em seu potencial para a educação popular e a “apropriação”, pelas comunidades afetadas, das reivindicações por um tratado obrigatório. Como tal, pode ser e será usado como instrumento político para mostrar apoio popular e as vozes das pessoas, ao pressionar os governos a estabelecer um mecanismo obrigatório para punir os crimes corporativos e proporcionar reparação e indenização às vítimas. A importância dessa campanha e do TP também reside no fortalecimento de uma reivindicação mais geral e global: as pessoas não querem apenas eleger, de tempos em tempo, presidentes e governos que, depois de eleitos, sigam a agenda das corporações; elas também querem ter participação ativa e voz nas decisões e processos decisórios de seus governos, assim como nas decisões em nível internacional que afetem em muito as suas vidas. Se os governos envolverem seus povos na tomada de decisões e ouvirem suas reivindicações, haverá uma chance de pôr fim às violações sistemáticas por parte de empresas transnacionais.
Diana Aguiar Orrico, dianaguiar@gmail.com, Global Campaign to Dismantle Corporate Power, http://www.stopcorporateimpunity.org