Como as COPs e os mercados de carbono alimentam mais incêndios na Amazônia

Imagem
B273
Fires in the Amazon. Photo: Greenpeace

Faltando um ano para a 30ª Conferência das Partes das Nações Unidas (COP30) sobre Mudanças Climáticas, em Belém, no estado brasileiro do Pará —a primeira realizada em uma região de floresta tropical— a Amazônia vive várias crises. Em 2024, além da pior estiagem já vivida na região, também os incêndios florestais estão entre os mais severos da história. Este ano, o Brasil lidera o ranking de incêndios florestais na América Latina. Até o dia 17 de novembro, foram 256,445 focos detectados no Brasil, seguidos por 89,400 na Bolívia e 40,994 na Venezuela.  No Brasil, um dos estados mais atingidos é o Pará, cuja capital é Belém. Até novembro, o estado teve 48,842 focos em 2024, apenas atrás do estado do Mato Grosso (49,969). (1)

Muitos são os territórios paraenses atingidos pelo fogo. A cerca de 70km de Belém, por exemplo, fica a Terra Indígena de Anambé, que em menos de um mês teve mais da metade de sua área destruída pelo fogo. A comunidade Anambé precisou acampar no limite de seu território, com escassez de alimentos e água. (2). Não muito longe dali, na região da Vale do Acará, quilombolas da associação AMARQUALTA e indígenas Tembé também pediram socorro. 
 
Pelo menos três fatores explicam essa tragédia que tem devastado tantos territórios.

Um fator foi revelado recentemente pela coalizão brasileira Agro é Fogo ao denunciar que mais de 70% do orçamento da principal estrutura do governo federal de combate aos incêndios não foi executado nem empenhado. (3) Isso coincide com os gritos e denúncias dos povos atingidos pela ausência do Estado – governos federal e estadual – no combate ao fogo, colocando em risco a vida de muitos afetados a quem resta tentar conter os incêndios por conta própria.  

O segundo e mais importante fator relacionado aos incêndios florestais parte de uma análise profunda pela coalizão Agro é Fogo, resultado de estudos acadêmicos articulados à vivência junto às comunidades que dependem da floresta e outros biomas, como o Cerrado e o Pantanal. O estudo mostra que não se trata de uma fatalidade lamentável ou um problema ambiental-climático, mas que “incêndios florestais e desmatamento são instrumentos para a consolidação da grilagem de terras que acompanha a expansão da fronteira agrícola capitalista sobre territórios de povos indígenas e comunidades tradicionais”. (4) É sobretudo uma das consequências da expansão do agronegócio, base central de apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro e fortemente representado no parlamento brasileiro, e no governo atual.  

O terceiro fator é a prioridade dada pelas autoridades ao mercado de carbono, propagandeado como a principal forma de salvar a Amazônia e pautado em uma intensa agenda internacional. Em setembro, por exemplo, o governador do Pará firmou, em Nova Iorque, um acordo de USD 180 milhões em venda de créditos de carbono do programa estadual de carbono florestal. Ele foi duramente criticado por 38 povos e comunidades tradicionais e organizações parceiras em carta denunciando que não houve nada de “ampla participação” como ele afirma ter havido (5).  O governador também esteve na COP29, onde pôde celebrar a aprovação de regras para o mercado de carbono, na mesma semana em que o Senado brasileiro aprovou um projeto de lei de regulação do mercado interno de carbono.  (6)


REDD+ e as COPs: legitimar e intensificar o uso de petróleo

Desde sua introdução em 2007, os projetos e programas de Redução de Emissões de Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+) têm mostrado que as promessas de salvar a floresta e mitigar a mudança do clima são uma mentira (7). Em sua essência, a principal finalidade dos créditos de carbono tem sido legitimar e intensificar o uso de petróleo e outros combustíveis fósseis, o que vem acompanhado de impactos sobre populações nos lugares de extração.  

Em outras palavras, a conversa sobre carbono nas florestas é fundamentalmente uma conversa sobre petróleo. Por isso, as COPs têm se tornado cada vez mais encontros corporativos, sobretudo de representantes de empresas e lobistas do setor de energias fósseis.  Em Baku, na COP29, foram 1,773 representantes do setor, algo que deve se repetir na COP30.  São mais delegados enviados do que têm juntos os dez países mais ameaçados pelas mudanças climáticas. (8)


Além de fundamental para o mercado de carbono, a Amazônia também está na mira da indústria de petróleo.  Mais de 1 milhão de km2 da região se sobrepõe por alguma fase exploratória de petróleo, segundo o Amazon Fossil-Free Monitor (9). A iniciativa também mostra que 101 projetos financiados pelo Fundo Amazônia, o maior programa REDD+ no Brasil, estão em áreas de blocos de exploração petrolífera, sendo 77 deles dentro da Amazônia Legal, levando a mais destruição. Uma das propostas que mais tem recebido atenção é a do governo brasileiro de explorar a Margem Equatorial por meio da empresa Petrobrás. A mesma empresa se tornou um dos principais financiadores do Fundo Amazônia (10).

Mas a indústria petroleira não é o único setor que destrói a floresta e que se beneficia do mercado de carbono. Há também outras iniciativas que se travestem de termos amigáveis. Um exemplo é a ´bioeconomia´, idealizada pelo governo do Pará e seu parceiro TNC, uma ONG conservacionista dos EUA. Apesar da propaganda desses atores, as populações que a têm experimentado na prática não notam diferença entre a bioeconomia e a ´velha economia´ que tem devastado a Amazônia, perseguindo e massacrando suas populações.

Um exemplo recente: em 5 de novembro, membros do Povo Turiwara-Tembê do Alto Acará, a 150 km de Belém, foram violentamente expulsos pela polícia de uma retomada de seu território tradicional. A polícia cumpria ordens de um juiz estadual do Pará que acatou o interesse da empresa de dendê e da ‘bioeconomia’, Agropalma, que alegava que os indígenas haviam ‘invadido’ suas terras (11). Sobre o território tradicional dos Turiwara-Tembê e a floresta que nele resta, a Agropalma, em parceria com a empresa Biofílica, impôs desde 2021 um projeto REDD+. Esse projeto considera o Povo Turiwara-Tembê – e não a Agropalma - como causa do desmatamento, culpando os povos indígenas por um problema que não foi causado por eles. Em sua macabra política de ‘conservação’ e opressão, a Agropalma tem contado com outras ONGs ´parceiras´, como a Conservação Internacional dos EUA, e a Earthworm Foundation. (12)

Outra batalha trava o povo Ka´apor, a 350 km de Belém, buscando defender seu território e a floresta contra a invasão da maior empresa privada de projetos REDD do mundo, a Wildlife Works. Essa empresa começou a implantar um projeto REDD com a concordância de apenas uma associação que não representa todo o povo e território Ka´apor. Por isso, em 30 de outubro, os Ka´apor através da sua organização política representativa Tuxa Ta Pame entraram com uma ação judicial contra a Wildlife Works, denunciando uma série de ilegalidades e abusos perpetradas por essa empresa entre os Ka´apor, e pedindo a imediata retirada dela território. (13)

Enquanto os programas de carbono espalham confusão, divisão, violência e perseguição entre comunidades que dependem da floresta, eles não impedem o avanço do setor do agronegócio, beneficiando direta e indiretamente as corporações que controlam esse setor, em sua maioria internacionais. O Walmart, por exemplo, lançou no Mato Grosso, estado devastado pelo avanço do agronegócio, nova iniciativa, baseada em créditos de carbono, de incentivos de recuperação e manutenção das florestas, algo que em tese já seria uma obrigação do setor. (14) 

Sendo assim, ao desviar a atenção das reais causas do desmatamento e da realidade pela qual passam as comunidades na Amazônia, o mercado de carbono na floresta – e também as COPs, ao validarem-no – acaba sendo uma causa subjacente de desmatamento. Somado ao interesse do agronegócio em expandir-se sobre a Amazônia e à falta de orçamento do Estado para combater os incêndios, o resultado é evidente: mais fogo e destruição das florestas. 


    (1) https://terrabrasilis.dpi.inpe.br/ Dados de 01/01/2024 até 18/11/2024
    (2) https://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/fogo-destroi-mais-da-metade-da-terra-indigena-anambe-pa-e-mpf-questiona-orgaos-sobre-medidas-adotadas
    (3) https://agroefogo.org.br/blog/2024/10/09/nota-publica-queimadas-nos-territorios/
    (4) https://www.wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim/agro-e-fogo-grilagens-desmatamento-e-incendios-na-amazonia-cerrado-e-pantanal
    (5) https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/povos-tradicionais-cobram-consulta-previa-sobre-contrato-bilionario-de-creditos-de-carbono-no-para/24072
    (6) https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202411/cop29-comeca-no-azerbaijao-com-acordo-sobre-mercado-de-carbono-global
    (7) https://www.wrm.org.uy/pt/publicacoes/15-anos-de-REDD 
    (8) https://www.globalwitness.org/en/press-releases/fossil-fuel-lobbyists-eclipse-delegations-most-climate-vulnerable-nations-cop29-climate-talks/
    (9) https://monitor.en.amazonialivredepetroleo.org/
    (10) https://agencia.petrobras.com.br/w/sustentabilidade/petrobras-e-bndes-fazem-nova-parceria-para-restauracao-ecologica-na-amazonia
    (11) https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2024/11/05/pms-e-indigenas-entram-em-conflito-em-acao-de-retirada-de-comunidade-de-fazenda-controlada-por-empresa-de-oleo-de-palma-no-para.ghtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=share-bar-mobile&utm_campaign=materias
    (12) http://novacartografiasocial.com.br/lancamento-do-dossie-indigenas-turiwara-tembe-no-alto-rio-acara-conflitos-etnicos-e-territoriais/
    (13)  Petição dos Ka´apor protocolado na Justiça Federal no estado de Maranhão https://www.wrm.org.uy/sites/default/files/2024-12/Kaapor__Wildlife_Works.pdf 
    (14) https://www.qcintel.com/carbon/article/brazilian-state-partners-with-walmart-ngo-to-advance-jredd-31586.html