A indústria de combustíveis fósseis e seus aliados políticos e econômicos fracassaram (mais uma vez) em sua ofensiva de lobby para que os governos adotem regras sobre o comércio de carbono durante as últimas negociações climáticas da ONU, em novembro de 2022, apesar do número cada vez maior de lobistas presente nas cúpulas climáticas.
E por que esses atores estão tão ávidos para que o comércio de carbono seja uma política climática? Porque isso permite que a indústria de combustíveis fósseis e todas as que dependem deles continuem se expandindo e possivelmente até lucrem com isso. Os “mercados de carbono” estão no centro de muitos conceitos que estão sendo promovidos atualmente, como compensações de carbono, políticas de “emissão líquida zero”, produtos “neutros em carbono”, “soluções baseadas na natureza”, REDD+ e “desmatamento líquido zero”.
Embora o papel real dos mercados de carbono no Acordo de Paris da ONU continue sendo contestado e debatido em suas cúpulas climáticas, alguns governos estão avançando na implementação de esquemas nacionais ou subnacionais, acordos bilaterais ou parcerias público-privadas para estabelecer novas iniciativas no mercado de carbono. Tudo isso, de uma forma ou de outra, gera demanda por mais comércio de carbono e abre caminho para uma dependência ainda mais forte em relação aos esquemas do mercado de carbono como o único caminho a seguir.
O governo da Suíça, por exemplo, estabeleceu tratados bilaterais com Peru, Gana, Senegal, Geórgia, Vanuatu, Dominica, Tailândia, Ucrânia, Marrocos, Chile e Uruguai, a fim de atingir sua meta de emissão “líquida zero” até 2050. Esses acordos estabelecem uma base jurídica para contratos comerciais que garantam a transferência de créditos (baratos) de redução de emissões, abrindo caminho para que os países do sul financiem reduções de emissões mais caras para atingir suas próprias metas. (1) Uma empresa de consultoria de carbono explicou como esses acordos são “laboratórios importantes para o futuro dos mecanismos de mercado”. (2)
Além disso, na conferência climática da ONU, o enviado especial dos Estados Unidos para o clima, John Kerry, lançou um plano voluntário de compensação de carbono, com o apoio do Earth Fund, de Jeff Bezos (da gigante varejista Amazon), e de Microsoft, PepsiCo e Bank of America. (3)
As empresas de combustíveis fósseis e outras poluidoras também continuam assinando acordos com os governos do Sul para a compra de grandes quantidades de compensações de carbono. Em novembro de 2022, o presidente da Guiana, Irfaan Ali, anunciou que a petrolífera estadunidense Hess Corporation compraria 2,5 milhões em compensações de carbono todos os anos, de 2016 a 2030. A Hess Guyana Exploration detém 30% de participação no bloco de exploração de petróleo e gás Stabroek, na costa da Guiana. Os créditos de carbono são gerados por projetos de REDD nas florestas do país. (4) Todas as grandes empresas de petróleo estão comprando compensações.
Os acordos a que os governos chegam (ou não chegam) durante as cúpulas climáticas da ONU não são muito relevantes no mundo real da expansão do mercado de carbono. Empresas, governos, ONGs conservacionistas, consultorias, corretoras, bancos e muitos outros atores interessados estão se esforçando para estabelecer os esquemas de mercado de carbono como sendo o único caminho a seguir.
Isso é ainda pior se considerarmos que as compensações de carbono, ao mesmo tempo em que intensificam a crise climática, estão servindo de fachada para a expansão de uma concentração violenta e racista de terras e florestas pertencentes a povos indígenas e comunidades camponesas.
Um artigo deste Boletim sobre quatro projetos de REDD no município de Portel, no Brasil, mostra como os direitos das comunidades, em alguns casos até desconhecidos delas próprias, são violados, e sua autodeterminação é comprometida por esses projetos.
Outro artigo apresenta uma rodada de discussão organizada pelo WRM para refletir, junto a nove aliados de diferentes regiões, sobre as muitas e diversas camadas de impactos nocivos que o mecanismo de REDD vem causando nos últimos 15 anos.
Com foco na região amazônica em particular, outro artigo explica como as “soluções” que estão sendo propostas – incluindo esquemas de carbono, energia renovável, agrocombustíveis, etc. – se transformaram em novas causas subjacentes do desmatamento. Esses projetos “verdes” estão se expandindo junto a outros projetos destrutivos que permitem que as empresas sigam lucrando normalmente.
Entre esses projetos destrutivos estão as plantações industriais de monoculturas. Este Boletim inclui duas contribuições destacando as histórias e as resistências das mulheres que enfrentam as plantações de dendezeiros em seus territórios: uma é um podcast que conta a história de mulheres de Serra Leoa enfrentando as plantações da empresa Socfin; a segunda é uma entrevista com uma participante da Rede de Mulheres da Costa em Rebeldia, de Chiapas, México, que destaca a forma como elas estão enfrentando essa monocultura facilitada por contratos que os homens estão assinando com as empresas.
E outro artigo reflete sobre os atuais planos do governo da Indonésia para construir uma nova capital com o argumento de torná-la uma cidade “verde” e “inteligente”, o que ajudaria o país a atingir suas metas de “emissão líquida zero”. O artigo traça paralelos com a época em que os governantes brasileiros decidiram construir uma nova capital, há cerca de 60 anos, no meio do país.
Enquanto povos indígenas, camponeses e outras comunidades, principalmente no Sul Global, enfrentam em primeira mão os fortes impactos da crise climática, as conferências e os acordos da ONU foram inundados, desde o início, pelos interesses de manter a economia capitalista funcionando.
Direcionemos nossos olhares e esforços ao fortalecimento da nossa solidariedade e a traçar estratégias que incluam alianças horizontais entre os movimentos de base. (5) As discussões precisam estar lá, com quem realmente está defendendo a vida.
(1) Confederação Suíça, acordos climáticos bilaterais sobre reduções de emissões e armazenamento de carbono no exterior.
(2) Argus, Swiss article 6 agreements ‘set poor precedent’, novembro de 2021.
(3) Reuters, U.S. climate envoy Kerry launches carbon offset plan, novembro de 2022.
(4) REDD-Monitor, Guyana is to sell US$ 750 million carbon offsets to Hess Corporation, a US-based oil corporation that is extracting oil in Guyana. The saga of false solutions to the climate crisis continues, dezembro de 2022.
(5) Documento do WRM, Uma reflexão crítica sobre a participação em processos internacionais de política florestal, 2022.