Equador: a certificação da carcinicultura industrial amplia a violação de direitos e a destruição dos manguezais

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Ilustração: C-Condem

Apesar do intenso corte de florestas de manguezais para dar lugar a fazendas de camarão e da opressão das comunidades coletoras e pescadoras, a indústria recebe certificações que não só facilitam sua entrada nos mercados externos, como também tornam invisível um histórico de violência contra os povos dos manguezais.

O camarão de cativeiro é considerado um produto estratégico dentro do plano nacional do governo do Equador. Essa indústria era uma atividade ilegal até 2008, quando o governo iniciou um processo de regularização, praticamente entregando a propriedade de milhares de hectares de manguezais a empresários do camarão. Esse impulso permitiu que, em 2019, as exportações de camarão industrial representassem a segunda receita de exportação do Equador, depois do petróleo.

Está comprovado que a instalação de grandes fazendas de camarão causa profunda destruição de manguezais e violação dos direitos das comunidades coletoras e pescadoras em estuários de mangue, incluindo seu deslocamento violento.

A Coordenadora Nacional para a Defesa do Ecossistema de Manguezais (C-CONDEM) elaborou em 2007 o relatório Certificando a destruição (1), com denúncias de uma série de violações que estão na base da carcinicultura (criação de camarões) industrial. O relatório mostra a destruição de manguezais entre 1969 e 1999, com a instalação de tanques ou fazendas de camarão. Em 2018, havia 1.481 empresas de camarão distribuídas entre 230 mil e 260 mil hectares. A destruição continua até hoje, e as descargas de água contaminada não pararam, conforme os depoimentos de coletores e pescadores dos estuários de mangue, obtidos no Golfo de Guayas, em 2019, e nas províncias de Esmeraldas e Manabí, em 2020.

[caption id="" align="alignright" width="337"] Mapa comparativo de manguezais (verde), fazendas de camarão em manguezais (vermelho), 1969/2017. Ministério da Agricultura, Pecuária, Aquicultura e Pesca (MAGAP)/C-CONDEM[/caption]

Desde 2000, essa indústria busca novos nichos de mercado por meio de certificações orgânicas, como a alemã Nathurland, que desenvolve padrões para o camarão orgânico destinado ao mercado europeu. Apesar de ter sido verificado o corte de florestas de manguezais para instalação de fazendas de camarão e violação dos direitos das comunidades coletoras e pescadoras, os produtores orgânicos foram homologados no Equador em 2002. Hoje, a indústria acessa pelo menos nove certificações que supostamente garantem processos de produção que seriam ambiental e socialmente “responsáveis”.

A regularização da indústria do camarão: uma sentença de morte para os manguezais

Até 2008, a indústria do camarão se desenvolvia sem alvarás de instalação ou funcionamento, sem qualquer espécie de arrendamento ou propriedade sobre os territórios ocupados, nem qualquer controle sobre o uso da água e o descarte de resíduos. Além disso, houve o reconhecimento público de que essa indústria foi estabelecida com a destruição de grandes áreas de manguezal.

Em 2008, o então presidente do Equador, Rafael Correa, expediu o Decreto Executivo 1391, sobre a “regularização” da carcinicultura industrial, com o argumento de ordenar a atividade e gerar receita para o Estado. Políticas agressivas de investimento, grandes incentivos econômicos e a certificação de uma produção supostamente “sustentável” fortaleceram as exportações de camarão.

Assim, um canetaço revogou a legislação que historicamente deveria proteger os manguezais e os direitos das comunidades, legalizando a impunidade. Os prazos de regularização foram ampliados por, no mínimo, cinco anos além do estabelecido anteriormente, e as exigências foram flexibilizadas para se adequar às demandas do setor.

Por trás desse processo de regularização, milhares de hectares de manguezais ocupados ilegalmente durante várias décadas por empresas de carcinicultura industrial foram entregues às mesmas empresas infratoras. Essa regularização também esconde um longo histórico de violação dos direitos dos povos do mangue, que permanece impune e é até venerado, pois a imagem que o governo transmite é a de uma indústria que cumpre as normas ambientais e sociais e contribui para a economia do país.

Nem a exigência de reflorestamento prevista no Decreto sobre o acesso ao processo de regularização está sendo cumprida. O decreto indica que, quando uma empresa ocupa de 1 a 10 hectares, 10% devem ser reflorestados com manguezais; de 11 a 50 hectares, 20%; de 51 a 250 hectares, 30%.

Membros das comunidades testemunharam que as empresas buscaram locais fora da área de seus reservatórios para realizar o suposto reflorestamento de manguezais. Algumas empresas chegaram a comprar áreas de mangue que haviam sido reflorestadas pelas comunidades em outros projetos.

Em 2017, foi aprovado o Código Orgânico do Meio Ambiente do Equador, que ratifica que o manguezal é um bem do Estado e, portanto, um bem comum, excluído de qualquer tipo de posse ou apropriação. No entanto, fica aberta a possibilidade de a autoridade da pesca fazer “concessões”, que são a forma como esse território tem sido historicamente privatizado.

Em 2019, o defensor dos manguezais Federico Koeller, da fundação Cerro Verde, na cidade de Guayaquil, indicou que o corte da floresta de mangue e a ampliação dos tanques de camarão não pararam no Golfo de Guayas: “... já denunciamos vários cortes de mangue dentro do Golfo nos últimos anos, mas não há resposta das autoridades, (...) [que] realizam inspeções em conjunto com as organizações, mas nunca se chega a um relatório e, muito menos, a alguma sanção”. As comunidades de coletores e pescadores são afugentadas por um sistema desleal, baseado no medo, que tenta incriminá-las ou, pelo menos, dar a entender que são suspeitas dos roubos a fazendas de camarão.

Os tanques de camarão do Golfo de Guayas têm guardas armados, contratados por empresas de segurança. Em 2012, foram emitidas licenças para que o setor de carcinicultura portasse armas de fogo, “como parte do plano de segurança, para evitar roubos e assaltos”, disseram as autoridades. Nesse contexto, coletores e pescadores enfrentam uma situação de violência ainda mais dura. “Agora eles se consideram donos dos manguezais, nos mostram papéis que dizem ser seus títulos de propriedade e têm o apoio do governo, que coloca militares e marinheiros à sua disposição para fazer os controles...”, comentaram membros da comunidade do Golfo em 2019.

É necessário compreender as condições de violência nessas áreas, em um contexto de desapropriação sistemática dos territórios das comunidades coletoras e pescadoras e, portanto, de perda de renda e sustento alimentar por parte dessas populações. As condições de empobrecimento de quem mora no entorno dos tanques, mesmo dos que possuem certificados, são as mesmas de uma década atrás. No cantão (subdivisão de província) de Guayaquil, por exemplo, localizado na província de Guayas, onde se concentra a maior produção do setor, os níveis de pobreza por Necessidades Básicas Insatisfeitas são de 47%.

No entanto, para impulsionar sua atividade predatória, as empresas de camarão recebem créditos e subsídios de bancos públicos nacionais e internacionais, como a Corporação Financeira Internacional (IFC), agência do Banco Mundial para o setor privado. A indústria também se beneficia de um seguro especial para o setor, programas de eletrificação subsidiados pelo Estado e isenção de impostos.

A isso deve ser acrescentada a atuação permanente para a abertura de mercados. Desde 2014, o Equador e a União Europeia negociam um acordo comercial que beneficia essa indústria com mais acesso aos mercados europeus. Em 2016, as duas partes assinaram um Acordo Comercial ratificando condições tarifárias preferenciais para a exportação de camarão produzido em tanques, entre outros itens.

O principal argumento para proporcionar grandes benefícios a essa indústria é a geração de empregos. A área atual coberta por tanques industriais de camarão é de 250 mil hectares. Comparando esse valor com a geração total de empregos no setor, a proporção seria de um emprego para cada hectare ocupado, bem abaixo do que um hectare de mangue representa para as famílias que vivem juntos aos estuários. Um trabalhador do Golfo de Guayas disse em 2019: “Nós trabalhamos em três pessoas nesta fazenda de camarão: o bombeiro, o administrador e o guarda. O salário médio de cada um é de 400 dólares, mas é um trabalho de 24 horas, não temos contrato, e podemos ser demitidos a qualquer momento”.

As empresas de embalagem geralmente contratam mulheres para cuidar e limpar o camarão. “Uma mulher pode ganhar até 12 dólares em cerca de quatro horas, se descascar 45 ou 55 quilos de camarão, pois pagam 0,20 centavos por quilo. O trabalho acontece em cada maré, ou seja, a cada oito dias você consegue meio dia de trabalho; depende de haver colheita. Tem que haver o suficiente, porque muitas mulheres oferecem seu trabalho” (depoimento de mulheres coletoras e pescadoras da área de Puerto Bolívar, província de El Oro, 2019).

A maquiagem da certificação: a empresa Omarsa

Desde 2000, as certificadoras de camarão iniciaram um processo de consolidação. Atualmente, é possível identificar pelo menos nove delas atuando na carcinicultura industrial do Equador. (2)

Entre 2008 e 2018, uma das maiores empresas do setor, a Omarsa, aproveitou a regularização promovida pelo governo. Essa “regularização” permite, entre outras coisas, obter as certificações. A Omarsa conseguiu oito certificações.

Localizada na província de Guayas e de propriedade da família Banoni, possui atualmente 3.735 hectares de tanques e controla a cadeia nacional e internacional de produção, beneficiamento e comercialização de seu produto.

Em seu site, a empresa indica que reflorestou 98 hectares de manguezais, o que significa 3,3% da ocupação total de seus reservatórios, em vez dos 30% exigidos pelo decreto. Com seus 3.375 hectares, deveria ter recuperado pelo menos 1.000 hectares de mangue.

A Omarsa diz gerar 6.391 empregos em toda a cadeia produtiva (ou seja, do cultivo à exportação). Parece um número grande, mas se esse número for relacionado à quantidade de hectares de mangue ocupados pela empresa, determina-se que a geração de empregos é de apenas 1,71 por cada hectare ocupada.

Em relação à sua produção “ambientalmente sustentável”, a empresa diz não usar produtos químicos para o cultivo e a criação do crustáceo, mas não informa outros dados, como:

-       Gestão da água: não se sabe se é tratada ou analisada quanto à qualidade, antes de ser devolvida dos tanques aos estuários.

-       Reflorestamento de 98 hectares: não indica nenhum manejo integrado, voltado à restauração do sistema de manguezais, que implique reprodução da biodiversidade, qualidade das dinâmicas hídricas, descontaminação do substrato, entre outras coisas.

-       Alimentação à base de farinha de peixe: peixes pelágicos, de valor alimentar para as comunidades coletoras e pescadoras, acabam sendo convertidos em toneladas de farinha para a indústria do camarão.

Em relação à responsabilidade social, a empresa indica três projetos que, pelo que se conclui a partir de seu site, são financiados com contribuições externas (doações). O primeiro é Água para a comunidade, sobre uma cisterna para extração de água subterrânea na comunidade de El Zapote, beneficiando 100 habitantes. Também entrega água à comunidade de Cerrito de los Moreños, localizada no Gofo de Guayas, beneficiando 600 habitantes. Oficina de costura está em um bairro próximo à sua fábrica de beneficiamento na província de Guayas, e a meta do projeto é dar formação a 25 mulheres. Por fim, Reconstrução de moradias busca restabelecer as casas de 25 trabalhadores no total, considerados em pior situação socioeconômica.

O acesso à água e à moradia são deveres que o Estado deve garantir para o bem-estar de seus habitantes. Quando não os cumpre, as empresas aproveitam essa situação precária, procurando melhorar a sua imagem e desviar a atenção dos reais impactos de sua atividade industrial.

Doze membros de comunidades entrevistados no Golfo de Guayas, no final de 2019, disseram desconhecer os projetos de responsabilidade social e ambiental da empresa. Em suas áreas de concessão, não se identificou nenhum membro da comunidade que tivesse participado do reflorestamento de manguezais. Dois moradores da comuna Cerrito de los Morreños confirmaram que a empresa “dá água quando eles transferem água para os tanques”. Nenhuma pessoa com quem conversamos sabe como ocorreu o processo de certificação, muito menos conhece as certificadoras e seus padrões. Isso mostra a absoluta falta de participação no processo por parte das comunidades afetadas.

É nesse quadro que a Omarsa obteve oito certificações, entre elas, a do Conselho de Administração da Aquicultura (ASC, na sigla em inglês), iniciada pela ONG WWF, que, por sua vez, promove os chamados Diálogos da Aquicultura desde 2004.

Ao contrastar os padrões da certificadora com a realidade do entorno dos tanques de camarão no Equador – marcada pela violação permanente dos direitos humanos e da natureza, que se sobrepõem a uma aparente “legalidade” – torna-se necessário demonstrar o tipo de maquiagem que essas certificadoras trazem para uma indústria predatória. As empresas certificadas apresentam o discurso da “sustentabilidade” sem considerar que, no sistema biodiverso dos manguezais, devastado em mais de 70%, é impossível que uma monocultura industrial contribua para sua recuperação integral.

Para obter mais informações, consulte o relatório C-Condem, “Cómo la certificación ambiental y social encumbre la violación de derechos humanos y de la naturaleza en Ecuador”, agosto de 2020.

Marianeli Torres Benavides,
Coordenadora Nacional para a Defesa do Ecossistema de Manguezais (C-CONDEM), Equador

(1) Certificando la Destrucción, C-Condem, 2017
(2) As empresas certificadoras no Equador são: ASC – Aquaculture Stewardship Council (Conselgo de manejo da Aquicultura); MSC – Marine Stewardship Council (Conselho de Manejo Marinho); BEST Aquaculture Practices; BRC Global Standard; Control Union Certifications – Certificado de Produção Orgânica da União Europeia; SQF – Safe Quality Food; Naturland; Global Gap; BCK Kosher Certification.