Índia: plantações arrancam as mulheres de suas florestas tradicionais

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O programa indiano para compensar a destruição de florestas por projetos de desenvolvimento constantemente estabelece monoculturas de árvores em terras comunitárias. As mulheres, que são as mais afetadas, estão no centro da resistência.

Nos últimos 30 anos, uma mulher do povo tribal Gond chamada Uma Bai Netam tem cultivado milhete com seu marido em cinco acres (cerca de dois hectares) de terras florestais no estado indiano de Chhattisgarh. Anos de cultivo e residência não fizeram dela legalmente a proprietária desses cinco acres até a promulgação da Lei de “Tribos Oficializadas e Outros Moradores Tradicionais das Florestas” (Lei de Reconhecimento de Direitos Florestais), 2006 (FRA, na sigla em inglês). Pela primeira vez, essa lei procurou corrigir a “injustiça histórica” ​​contra as comunidades que moram nas florestas, reconhecendo seus direitos consuetudinários de possuir, acessar, usar e manejar essas florestas. A lei reconhece as mulheres como titulares de direitos iguais sobre os recursos, reconhecendo-as como coproprietárias de porções individuais de terra e membros iguais do órgão central de decisão das Gram Sabhas (assembleias de aldeia).

Porém, se Uma Bai pensou que isso significa que ela poderia finalmente viver e trabalhar em sua terra com dignidade, ela estava enganada. Junto ao marido, seu direito ao Recurso Florestal Individual (IFR) sobre 2,5 acres (cerca de um hectare) foi formalmente reconhecido após 2010 (1), mas os outros 2,5 acres foram logo tomados pelo Departamento Florestal estadual para plantar teca. Essas plantações de teca se espalharam sobre 63 hectares de Recursos Florestais Comunitários (CFR) na aldeia dela e em outras próximas. Para quem já luta contra o empobrecimento, perder metade da terra cultivável impede que se plante milhete na mesma extensão de antes. Para Uma Bai, isso significa uma perda importante de 10-11.000 rúpias por ano (cerca de 160 dólares).

Plantações industriais para compensar a destruição de florestas em outros lugares?

A plantação de teca que cobre a terra de Uma Bai faz parte do programa de compensação florestal da Índia, denominado “Florestamento Compensatório” (CA), implementado como medida para “regenerar” as florestas perdidas em projetos de desenvolvimento no país. O Departamento Florestal estadual estabelece plantações em outros locais para compensar o redirecionamento (e a destruição) de florestas por projetos de desenvolvimento, como mineração, irrigação e infraestrutura. Em 2002, a Autoridade ad hoc de Manejo e Planejamento de Florestamento Compensatória (CAMPA), foi criada pelo Supremo Tribunal da Índia especificamente para administrar fundos de Florestamento Compensatório coletados de “agências usuárias” ou empresas, em troca de florestas redirecionadas por projetos de desenvolvimento. De acordo com os próprios registros do governo, até 2016, foi coletado um montante superior a 40.000 bilhões de rúpias (cerca de 6 bilhões de dólares) dessas “agências usuárias” (2). Em 2016, o Governo da Índia promulgou a Lei do Fundo de Florestamento Compensatório (CAF Act) que instituiu um mecanismo formal para desembolsar essas verbas, que hoje representam 50.000 bilhões de rúpias (cerca de 7,8 bilhões de dólares) e estão aumentando.

A Lei de Florestamento Compensatório transfere essa grande quantidade de dinheiro para a burocracia florestal da era colonial, excluindo completamente as comunidades e as Gram Sabhas das decisões. A centralização da governança florestal da Índia nas mãos do Departamento Florestal foi um fator fundamental para a expropriação das comunidades que vivem nas florestas. Embora a Lei de Reconhecimento de Direitos Florestais (FRA) tenha sido promulgada para romper o domínio da burocracia florestal, dando direitos e poder sobre os Recursos Florestais Comunitários às Gram Sabhas para governar as florestas, sua promessa de governança florestal democrática continua sem ser cumprida, e apenas 3% do potencial desses recursos comunitários foram formalmente reconhecidos em mais de dez anos. Em Chhattisgarh, onde Uma Bai mora, nenhum Recurso Florestal Comunitário foi sequer reconhecido. Além de funcionários do governo e lobbies de mineração, a maior resistência à implementação da Lei de Reconhecimento de Direitos Florestais vem da própria burocracia florestal.

Ao repensar o papel da burocracia florestal na governança das florestas, agora com acesso a essas grandes quantidades de dinheiro, a Lei de Florestamento Compensatório (CAF) tem potencial para frear até mesmo as pequenas conquistas em termos de reconhecimento dos direitos de governança das comunidades que vivem nas florestas sob a a Lei de Reconhecimento de Direitos Florestais. O departamento florestal tem assumido à força terras sob regime de Recursos Florestais Comunitário e Recursos Florestais Individuais para estabelecer plantações compensatórias de árvores. De acordo com um estudo da CFR-Learning & Advocacy (3), um grupo de direitos florestais, nos estados de Odisha, Jharkhand, Maharashtra e Chhattisgarh, ricos em florestas, plantações de Florestamento Compensatório têm sido constantemente instaladas em terras comunitárias, terras cultiváveis e locais de importância cultural para as comunidades. Terras comunitárias têm sido cercadas com arame farpado ou até com guardas armados, para impedir o acesso das pessoas aos recursos.

Uma monocultura que viola as mulheres

Para as mulheres, que têm relação e dependência mais próxima em relação à terra e às florestas, essa situação criou um ambiente de medo e assédio. Responsáveis ​​por atender a suas próprias necessidades de vida e renda, além das familiares, através da coleta de produtos florestais, as mulheres agora enfrentam graves dificuldades para atender a essas necessidades diárias de nutrição, combustível, produtos florestais não madeireiros, ervas medicinais e renda.

Em várias regiões, o Departamento Florestal derrubou florestas naturais densas para substituí-las por monoculturas de plantações comerciais. O estudo da CFR-Learning & Advocacy descobriu que 60% das 2.548 plantações de florestamento compensatório realizadas em dez estados eram de monoculturas e espécies comerciais, com a teca e o eucalipto perfazendo mais de 25% das árvores plantadas. Isso causou grandes danos às comunidades locais e à diversidade natural de espécies vegetais e animais nas florestas. Por exemplo, as plantações de teca destruíram completamente os habitats dos Kutia Kondhs, um Grupo Tribal Particularmente Vulnerável (PVTG) que vive no estado de Odisha, leste da Índia, e fez com que sua cesta de alimentos, que tinha quase 80 diferentes tipos de painço, fosse reduzida a 25. A privação completa de acesso e uso da floresta e o deslocamento que acabou acontecendo causaram, pela primeira vez, migração compulsória na comunidade. A mudança causada em seu tecido cultural e modo de vida é irreversível.

Em diferentes aldeias, as mulheres continuam desafiando os esforços contínuos de tomada de terras e o assédio que resultam dessas plantações, e elas resistem por meios legais e políticos. Nos bolsões de Jharkhand e Odisha, as plantações se tornaram um ponto de encontro para a formação de Comitês de Direitos Florestais obrigatórios pelas Gram Sabhas, muitas vezes por iniciativa das mulheres. Em Chhattisgarh e Jharkhand, as comunidades se organizaram em grupos para conscientizar sobre seus direitos aos Recursos Florestais Comunitários. Elas têm protestado, impedido essas plantações e reclamado a funcionários do governo. A oposição a essas plantações forçadas e destrutivas tem sido combatida pelo Departamento Florestal com violência contra homens e mulheres, como no caso dos Kutia Kondhs, com ações judiciais por infrações florestais contra povos tribais e PVTGs.

À medida que as vidas e os meios de subsistência das mulheres que vivem na floresta mudam de forma tão drástica devido às plantações de florestamento compensatório, a insegurança de posse muitas vezes impede que elas tenham voz nos processos de decisão. Suas reivindicações por Recursos Florestais Comunitários, Recursos Florestais Individuais e Recursos Comunitários reconhecidos pela Lei de Reconhecimento de Direitos Florestais são rejeitadas pelas autoridades, mantidas pendentes ano após ano ou simplesmente negadas. O Departamento Florestal não tem se dirigido às Gram Sabhas para solicitar seu consentimento antes de instalar essas plantações. Às vezes, o consentimento foi obtido de forma coercitiva, por meio de violência e assédio. As comunidades que já estão perdendo florestas para projetos de desenvolvimento são atingidas uma segunda vez quando suas terras são tomadas para plantações comerciais compensatórias. Nesse cenário, os espaços para que as mulheres afirmem seus direitos de participação nas decisões são eliminados por fatores institucionais e culturais.

De todos os pontos de vista, as plantações de florestamento compensatório não são boas para o meio ambiente nem para as pessoas. Uma vez devastadas, as florestas não podem ser “replantadas”. As evidências de inúmeros casos em todo o mundo dão testemunho de que é apenas com a posse da terra segura para as comunidades, e principalmente as mulheres dentro delas, que as florestas podem ser conservadas e protegidas.

Como principais usuárias das florestas, detentoras e promotoras dos conhecimentos tradicionais, as mulheres são o centro e a espinha dorsal do processo de conservação de recursos. Na Índia, existem milhares de grupos de proteção florestal, liderados e administrados predominantemente por mulheres, que conseguiram aumentar a cobertura florestal, regenerar cursos d’água, reconstruir habitats de vida selvagem destruídos e frear a caça ilegal e o contrabando. No entanto, seu papel quase nunca é reconhecido no discurso oficial sobre proteção e restauração de florestas.

A mensagem é clara: a conservação e a regeneração das florestas não requerem monoculturas de plantações comerciais controladas pelo Departamento Florestal, e sim sua gestão pelas comunidades, e as mulheres estão no centro desse processo. Ao garantir os direitos das mulheres às florestas, a Lei de Reconhecimento de Direitos Florestais proporciona um roteiro para situar o conhecimento, a experiência e a autoridade das mulheres em primeiro plano na governança florestal. Isso exige intervenções ativas para superar barreiras institucionais, culturais e em nível de políticas, que marginalizam a participação das mulheres nas decisões.

Dubey. Sanghamitra e Chitkara. Radhika.

(Com contribuições de Tushar Dash e Soma K.P). Membros da CFR-Learning & Advocacy.

Sanghamitra Dubey está ligada a Vasundhara e é membro do processo nacional de aprendizagem e defesa da CFR sanghamitra [at] vasundharaorissa.org / sanghamitradubeyikk [at] gmail.com

Radhika Chitakara é pesquisadora independente e membro do processo nacional da CFR-learning and advocacy, rchitkara [at] llm17.law.harvard.edu

(1) A Lei de Reconhecimento de Direitos Florestais (FRA) identifica, de forma ampla, três tipos de direitos aos recursos: direitos a Recursos Florestais Comunitários (CFR), que atribuem direitos de governança e propriedade sobre os limites tradicionais da floresta à Gram Sabha (assembleia da aldeia); Direitos a Recursos Florestais Individuais (IFR), que abrangem terras ocupadas, habitadas ou cultivadas por uma família; e direitos a recursos comunitários (CR) sobre produtos florestais menores, pastagens, propriedade intelectual etc.

Veja mais informações sobre a Lei de Direitos Florestais no artigo do boletim do WRM de agosto de 2014: https://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao1/india-as-lutas-florestais-na-encruzilhada/

(2) Veja mais informações sobre o Fundo de Florestamento Compensatório na Índia no artigo do boletim do WRM de agosto de 2015: https://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao1/o-desmatamento-financia-mais-plantacoes-o-novo-projeto-de-lei-do-fundo-de-florestamento-compensatorio-na-india/ ; e um alerta de ação sobre a Lei de Florestamento Compensatório de setembro de 2016 em: https://wrm.org.uy/pt/acoes-e-campanhas/india-apoie-as-comunidades-dependentes-da-floresta-contra-a-expansao-de-plantacoes/

(3) Community forest rights learning and advocacy (www.cfrla.org.in)