O Carbono Azul surgiu como um novo esquema de compensação entre emissões e absorção de carbono em territórios costeiros. No entanto, organizações da Indonésia alertam que a iniciativa é uma estratégia para transformar territórios costeiros e marinhos em ativos negociáveis.
Todas as semanas, Sugeng Haryanto, pescador de 57 anos da costa de Jepara, na província de Java Central, leva seu barco para o cais. Faz um mês que ele não consegue sair para pescar. Ondas altas e ventos fortes foram a principal razão para Sugeng deixar o barco e os equipamentos de pesca amarrados no porto, já que não queria arriscar perder a vida, como aconteceu com alguns de seus amigos.
Atualmente, as comunidades pesqueiras da Indonésia enfrentam problemas relacionados ao clima que são difíceis de entender, desde temporadas de pesca mais curtas até desastres naturais que ocorrem todos os anos, em um número cada vez maior de territórios costeiros do país. Esses territórios incluem manguezais, marismas e planos de lama intertidais. Devido a essas dificuldades, os pescadores da Indonésia não podem ir ao mar por mais de 150 dias dentro do mesmo um ano, tendo que se abster de quaisquer atividades pesqueiras por outros 215 dias.
As comunidades de pescadores da Indonésia estão sentindo, em primeira mão, os efeitos nocivos da crise climática. Nos últimos cinco anos, pelo menos 737 vilas costeiras sofreram deslizamentos de terra, 2.651 foram alagadas, 307 sofreram inundações repentinas, 1.484 foram atingidas por maremotos e 1.422, afetadas por tornados. Além disso, 790 foram atingidas por terremotos e seis, por um tsunami, enquanto 54 vilas costeiras foram afetadas por uma erupção vulcânica. (1)
Todos os anos, o destino de milhões de pescadores é discutido durante as negociações climáticas da ONU. Infelizmente, essas discussões perderam o rumo, pois não conseguem resolver os problemas reais e fundamentais dessa crise.
Agora, não só os barcos de pesca ficam atracados por períodos cada vez mais longos, mas o destino dos meios de subsistência dos pescadores e o controle de seus territórios está ligado à ameaça dessa crise multidimensional e às chamadas soluções que a acompanham.
Quando o carbono fica azul
Uma das reações da ONU a essa crise multidimensional consiste em um sistema chamado de Carbono azul (Blue Carbon). Também conhecido como REDD azul, ele foi introduzido pelo PNUMA e por outras agências da ONU em 2009. Por meio de várias reuniões internacionais, o PNUMA afirmou a importância de estabelecer um novo esquema de compensação entre emissões e absorção de carbono em territórios costeiros. De acordo com seus defensores, os territórios costeiros ricos em plantas, como manguezais, marismas e planos de lama intertidais, absorvem e armazenam grandes quantidades de dióxido de carbono. (2)
Uma publicação de várias agências da ONU, intitulada “Carbono Azul: o Papel dos Oceanos Saudáveis na Fixação do Carbono” (Blue Carbon: the Role of Healthy Oceans in Binding Carbon), de 2009, afirma que a proteção, o manejo e a restauração aumentariam a capacidade dos ecossistemas marinhos de absorver carbono até quase 10% da demanda global por redução de emissões. (3)
O estudo Blue Carbon, realizado pela Agência de Pesquisa e Desenvolvimento Marinhos e Pesqueiros da Indonésia (Balitbang KP), afirma que a vegetação subaquática tem potencial para absorver cerca de 4,88 toneladas de carbono por hectare, por ano. No total, a vegetação subaquática do país poderia armazenar 16,11 milhões de toneladas de carbono por ano e, no total, seus manguezais poderiam armazenar 122,22 milhões de toneladas.
Até hoje, o Carbono Azul é promovido permanentemente por meio de reuniões internacionais, bem como nos Encontros Anuais da ONU sobre o Clima. Durante a Conferência Our Ocean, realizada em Bali em 2018, o governo indonésio incentivou projetos de conservação marinha e o Carbono Azul, com o objetivo de incluir 20 milhões de hectares nesses esquemas até 2020. Em 2018, a área estabelecida para conservação marinha atingiu 19,14 milhões de hectares.
A organização indonésia Coalizão Popular pela Justiça Pesqueira (KIARA) destaca que, até agora, a conservação marinha não foi implementada de baixo para cima para que se originasse do conhecimento e da sabedoria das comunidades costeiras indonésias, e sim como uma atividade de cima para baixo, forçada pelo Estado. Como resultado, as pessoas que vivem nas comunidades costeiras se tornam vítimas do que, de sua perspectiva, equivale a projetos ecofascistas.
Negociar carbono? Plantar árvores de mangue
O Livelihoods Fund é um fundo apoiado por empresas privadas e investe desde 2011 em projetos de compensação, no mundo todo, ligados às cadeias de suprimentos dos investidores. Três desses projetos estão em territórios de mangue: um na Indonésia, um na Índia e um no Senegal. Em seu site, o Fundo diz que até hoje foram plantadas 18 milhões de árvores na Indonésia, 16 milhões na Índia e 79 milhões no Senegal. (4)
Os projetos duram 20 anos, e os investidores (empresas privadas) receberão créditos de carbono das árvores de mangue plantadas pelas comunidades costeiras. Com base nisso, essas indústrias podem continuar fazendo seus negócios de sempre (e gerando as emissões de sempre) enquanto afirmam ter reduzido as emissões de carbono.
Os investidores do Fundo são: a empresa de agronegócio Danone, a multinacional Schneider Electric, o grupo financeiro Credit Agricole, a fabricante de artigos de luxo Hermès International, o grupo turístico Voyageurs du Monde, a empresa de serviços postais La Poste Group, a fabricante de pneus Michelin, a instituição financeira pública Caisse des dépôts et consignations – todos franceses – além da empresa de fragrâncias e sabores suíça Firmenich e a empresa alemã de software e tecnologia SAP.
Repetindo as falhas do REDD+
O Carbono Azul foi inventado como uma versão do esquema de REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal) para os territórios costeiros e de mangue. Por quase 15 anos, o REDD+ foi promovido como uma solução para o desmatamento em florestas tropicais, mas esse desmatamento continua. Infelizmente, o REDD+ é um esquema de negócios que gera vários problemas. Assim como em outros lugares, os projetos de REDD+ na Indonésia causaram conflitos.
Um exemplo é um projeto de REDD+ na vila de Henda, em Bornéu, na Indonésia, organizado pelo PNUD e financiado pelo governo norueguês. Pesquisas mostraram como o projeto, na verdade, gerou conflitos horizontais dentro da comunidade, causados pela falta de transparência e por uma gestão discriminatória dos fundos de REDD+ a nível da comunidade. Uma das razões do conflito é o fato de que o programa de empoderamento vinculado ao projeto de REDD+ não envolveu todos os membros da comunidade, o que inevitavelmente causou inveja entre os moradores. (4)
Outro projeto de REDD+ na vila de Mantangai Hulu também causou conflitos verticais com doadores e o governo. Esse projeto foi organizado pela Kalimantan Forests and Climate Partnership (KFCP) e financiado pelo governo australiano. A comunidade da aldeia cedeu seus 120.000 hectares de floresta à KFCP para um projeto-piloto de REDD+. Quando ficou claro que o projeto beneficiava mais a facilitadores locais, governo e doadores, a comunidade da vila começaram se organizar para resistir ao projeto. A distribuição dos fundos do REDD+ também não foi transparente e não incluiu participação da comunidade. (5)
O fracasso do REDD+ em deter o desmatamento, ao mesmo tempo em que causa muitos conflitos dentro das comunidades e com elas, deve ser uma lição importante para que os líderes mundiais sejam mais cuidadosos ao responder à crise climática. Ao mesmo tempo, as comunidades costeiras na Indonésia estão pedindo ações para enfrentar a crise climática, mas as políticas propostas tendem a ser uma “colcha de retalhos” que oferece falsas soluções, com metas de redução de emissões que são insuficientes e dependem de compensações.
Negociações e possíveis soluções para enfrentar a crise climática precisam reconsiderar o conhecimento e a atenção às necessidades das comunidades. Chega de soluções fragmentadas, como o Carbono Azul ou similares, que, na prática, sobrecarregam as finanças do Estado, aumentando a dívida externa. O montante da dívida também abre as portas para mais corrupção. Esses mecanismos de compensação propostos pelo Banco Mundial eram sempre baseados em empréstimos, mas, em 2018, o Ministério da Marinha e da Pesca da Indonésia recusou o sistema de empréstimo. Infelizmente, o mecanismo implementado ainda depende do investimento estrangeiro e do comércio de carbono, o que gera os mesmos problemas causados pelo mecanismo proposto pelo Banco Mundial.
A mercantilização de uma crise
A KIARA vê a iniciativa Carbono Azul como um pretexto para transformar territórios costeiros e marinhos em ativos negociáveis. Há pelo menos três razões pelas quais a iniciativa não representa uma solução para a crise climática.
Em primeiro lugar, a contabilização do carbono armazenado nesses projetos é feita de maneira a dar lucro para alguns indivíduos ou um determinado grupo, mas exclui muitos membros da comunidade que são afetados pelos projetos de Carbono Azul porque não podem mais usar os manguezais ou a vegetação submarina. Enquanto isso, negligenciam-se a existência das comunidades litorâneas e o papel que cumpriam em manter os ecossistemas costeiros intactos ao usar os manguezais para colher ervas medicinais e ingredientes cosméticos, e como fonte de alimento.
Em segundo lugar, argumenta-se que uma das causas da crise climática é a destruição de manguezais devido ao manejo equivocado. Na Indonésia, os danos a manguezais e ecossistemas costeiros são consequência de padrões de desenvolvimento extrativos e exploratórios, como a apropriação do litoral para a construção de hotéis, edifícios residenciais ou áreas de recreação pagas, fazendas de camarão de porte industrial, expansão de plantações de dendê e mineração em grande escala.O Centro de Dados e Informações da KIARA observa que, ao longo de 2018, pelo menos 42 áreas costeiras na Indonésia haviam sido apropriadas para esses fins.
Terceiro, o Carbono Azul é incapaz de alterar o comportamento das empresas responsáveis por grandes quantidades de emissões de carbono, já que é apenas uma compensação.
Os territórios costeiros têm características únicas e são muito vulneráveis. A costa é uma área de transição entre terra e mar. A pressão, tanto natural quanto humana, é muito evidente. A iniciativa Carbono Azul abre oportunidades para as elites negociarem e se apropriarem dos benefícios em nome da mudança climática.
Enquanto isso, devido à sua vulnerabilidade, comunidades e territórios costeiros continuarão sendo prejudicados por empreendimentos em terra, efeitos agravados da mudança climática, bem como falsas soluções promovidas nas negociações climáticas da ONU.
Na próxima década, terão que ser tomadas decisões cruciais que influenciarão o quanto as comunidades pesqueiras em toda a Indonésia serão atingidas pela crise climática multidimensional. Em vez de continuar estimulando a apropriação e destruição do litoral da Indonésia com grandes projetos o REDD azul e glorificar o passado do arquipélago, o governo deveria se concentrar primeiro na redução dos efeitos da crise climática sobre os pescadores artesanais e, ao mesmo tempo, deveria salvar a região litoral da da armadilha do comércio de carbono.
Não vendam o nosso mar em nome do comércio de carbono!
Nosso mar, nossa identidade! Nós somos o mar!
Susan Herawati
Secretária Geral da Coalizão Popular pela Justiça na Pesca
(KIARA - Koalisi Rakyat untuk Keadilan Perikanan)
(1) Indonesia Center for Data and Information, 2019
(2) Para mais informações sobre o Carbono Azul, consulte WRM, “Blue Carbon” e “Blue REDD”: Transformando os ecossistemas costeiros em mercadorias, 2014
(3) Acesse a publicação
(4) Consulte o site
(5) Anggraeni, Nur. (2013). Melestarikan Tradisi, Meningkatkan Kesejahteraan: Pandangan Tentang Dampak Program REDD+ di Kalimantan Tengah. Tese de mestrado UGM
(6) Firnaherera, Vice Admira. (2013). Konflik Pengelolaan REDD+: Studi Kasus di Desa Mantangai Hulu, Kecamatan Mantangai, Kabupaten Kapuas, Propinsi Kalimantan Tengah. Tese de mestrado UGM e Hidayah, Nur Putri. (2013). Pemberdayaan Kelompok Masyarakat Desa Kalumpang Kedamangan mantangai dalam Mendukung Reducing Emission from Deforestation and Forest Degradation Plus (REDD+). Tese de mestrado UGM.