Sainte Luce é uma vila de pescadores com uma população de 2.500 habitantes, localizada no Distrito de Fort Dauphin, Comuna de Mahatalaky, no sudeste de Madagascar. A pesca é fundamental para a subsistência das famílias em Sainte Luce; florestas e pântanos próximos também proporcionam medicamentos, materiais e soberania alimentar. O acesso a serviços públicos como educação e saúde é muito limitado, e as escolas e postos de saúde mais próximos ficam a cerca de 15 quilômetros da comunidade.
Sainte Luce teme que a mineração de ilmenita pela QIT-Madagascar Minerals (QMM), subsidiária da Rio Tinto, destrua suas pescarias, suas terras e seus meios de subsistência. Embora nenhuma data tenha sido comunicada para a expansão da mineração, a comunidade teme que essa expansão possa acontecer a qualquer momento. Para proteger sua sobrevivência como comunidade, eles dizem NÃO a esse projeto de mineração, que, se prosseguisse, destruiria a terra de seus ancestrais.
“Declaramos nossa oposição ao projeto de mineração”
Em dezembro de 2023, a comunidade de Sainte Luce entregou uma carta e depoimentos em vídeo à QMM e às autoridades de Madagascar, nos quais davam a conhecer sua oposição à destruição de suas terras e pescarias para extrair ilmenita, um mineral usado em tinta branca e plásticos, entre outros produtos. (1)
A comunidade de Sainte Luce tem todos os motivos para acreditar que a expansão da mina da QMM significaria destruição, com base no histórico da empresa até agora. Em 2005, em meio a muitas polêmicas, a grande mineradora anglo-australiana Rio Tinto recebeu do governo de Madagascar uma concessão de longo prazo para mineração. A concessão entregou quase 6 mil hectares de terra à QMM – uma joint venture entre a Rio Tinto e o Estado de Madagascar – para extrair ilmenita em três áreas perto da cidade de Fort Dauphin, no sudeste do país. Essas três áreas eram Mandena, Petriky e Sainte Luce. Até agora, a empresa só tem operações em uma dessas áreas: Mandena. A ilmenita extraída pela QMM é enviada a uma planta de processamento da Rio Tinto no Canadá e vendida como óxido de titânio, que é usado em tinta branca e plásticos, entre outras aplicações. Uma tonelada de óxido de titânio custava cerca de 290 dólares em agosto de 2024.
A mineração na área de concessão de 2 mil hectares em Mandena, nos arredores de Fort Dauphin, começou em 2008. Logo após a QMM receber a concessão, famílias que viviam perto de várias instalações relacionadas ao projeto foram forçadas a abrir mão de suas terras, incluindo as que estão perto do novo porto de mineração, das áreas de conservação privadas e de Mandena. Quinze anos depois, ainda há disputas sobre a indenização prometida pela QMM pelos meios de subsistência perdidos, pois as famílias afetadas pela mineração em Mandena alegam que o processo de indenização as deixou em desvantagem. Em maio de 2024, a QMM concordou em reavaliar os pagamentos.
Apesar da enorme destruição causada pelo projeto, a Rio Tinto alega que ajudou a proteger da destruição as florestas ao redor do porto, declarando-as como áreas protegidas. Ao fazer isso, a empresa alega ter “compensado” a destruição das florestas e da diversidade biológica nas áreas de mineração. (2)
Em junho de 2023, antes das eleições nacionais que ocorreriam naquele ano, a Rio Tinto e o governo de Madagascar anunciaram que estava sendo criado um comitê interministerial para facilitar “a obtenção de diferentes autorizações” necessárias para avançar com os preparativos para a mineração nas áreas restantes, Petriky e Sainte Luce. (3)
A Rio Tinto lucra, as comunidades de Madagascar pagam
Segundo um comunicado de imprensa de 22 de agosto de 2023, a multinacional de mineração Rio Tinto detém 85% da QMM, enquanto o governo de Madagascar detém os 15% restantes. Nesse comunicado, a empresa anunciou que o processo de renegociação dos acordos financeiros havia sido concluído, e essa renegociação foi planejada e incluída no contrato de concessão inicial. (4) Tanto no acordo original quanto no renegociado, a maioria dos lucros vai para a Rio Tinto, enquanto as comunidades e o estado de Madagascar ficam com os conflitos e os vários prejuízos deixados pelas operações da mineradora. A Rio Tinto paga meros 2,5% de royalties sobre os minerais brutos extraídos, que exporta para sua própria fábrica no Canadá. O acordo financeiro renegociado também reduz a participação do Estado na QMM para 15% (antes eram 20%), em troca do cancelamento da dívida de 77 milhões de dólares que a empresa adiantou ao Governo de Madagascar “para financiar seus aportes à QMM”. Além disso, o primeiro dividendo que a Rio Tinto concordou em pagar ao governo vem com condições: o Estado deve gastar 12 milhões de dólares para reformar 110 km da Estrada Nacional 13, uma importante via da região.
Comunidades enfrentam destruição e poluição da água pela mineração em Mandena
Em Mandena, a mineração da QMM na última década atingiu três aldeias de forma especialmente dura, principalmente os pescadores. Cerca de 15 mil pessoas vivem nas três aldeias lindeiras à mina. Muitas famílias perderam seus meios de subsistência quando as operações da QMM começaram a destruir as florestas e as pescarias próximas. As famílias viram o rendimento da pesca cair em quase 50% e foram forçadas a deixar suas terras, e muitas nunca receberam a compensação prometida. (5)
Outros grandes impactos da mineração da QMM incluem poluição da água e altas concentrações de chumbo. (6) No início de 2022, os moradores protestaram dizendo que estavam aparecendo peixes mortos nos cursos d’água nos arredores de Fort Dauphin. Pouco antes do início do aparecimento dos peixes mortos, a empresa realizou “uma liberação controlada de água” para evitar (mais um) rompimento dos diques de areia que ela usa para manter a água poluída na área de mineração. Essa não foi a primeira vez que a empresa fez uma liberação emergencial de água tóxica. Em 2010 e 2018, ela também derramou grandes quantidades de resíduos de mineração poluídos em cursos d’água ao redor da mina, a fim de evitar que o sistema de contenção entrasse em colapso. Em 2018, após a liberação da água residual, começaram a aparecer peixes mortos nos lagos. (7)
Pouco depois do aparecimento dos peixes, no início de 2022, o governo impôs uma proibição que fez com que os pescadores perdessem sua renda por meses. Enquanto isso, a QMM fez o que as grandes mineradoras costumam fazer nesses casos: negou qualquer conexão entre a liberação da água poluída e a mortandade dos peixes. (8) Em uma declaração ao site The Intercept, a empresa alega que a análise encomendada por ela de uma amostra de água não mostrou “nenhuma ligação conclusiva entre nossas atividades na mina e os peixes mortos observados por membros da comunidade”. (9)
Têm havido protestos regulares contra as operações de mineração da QMM, por uma infinidade de razões: há reivindicações de indenização não resolvidas; lagos e lagoas foram poluídos por mais de uma década pelo sistema de águas residuais da mina, que a QMM não se dá ao trabalho de consertar; comunidades perderam a renda que costumavam obter com a pesca e a colheita de produtos florestais, como mahampy, um junco usado para produzir as esteiras tradicionais que são comuns na região; comunidades perderam terras onde cultivam alimentos; as promessas de emprego não foram cumpridas; e comunidades enfrentam grandes riscos à saúde devido aos níveis elevados de urânio e chumbo no entorno da mina. Também aqui, a subsidiária da Rio Tinto fez o que as mineradoras costumam fazer em resposta a protestos contra suas atividades destrutivas: ignorou a causa do protesto e pediu às autoridades que mandassem a polícia.
Um relatório divulgado em março de 2022 pela rede Publish What You Pay afirma que “houve protestos contra a QMM desde que a operação começou, em 2009. Centenas de malgaxes ergueram barricadas/bloqueios de estradas e foram às ruas fazer greve contra o deslocamento e a realocação involuntária, a perda de terras e o acesso às suas florestas locais, a destruição de áreas florestais sagradas, a compensação inadequada por terras e meios de subsistência, a remoção de túmulos ancestrais e a desigualdade percebida sobre as práticas de emprego da QMM que favoreceram trabalhadores de outros países ou regiões em vez de treinar e contratar moradores locais”. (10) Muitos desses protestos foram recebidos com repressão policial pesada a líderes sindicais e moradores, que exigem que a empresa pare de infringir a lei, poluir a água e destruir seus meios de subsistência. (11)
Diante da repressão, da prisão de manifestantes e da recusa da mineradora a atender às reivindicações, os moradores que vivem perto das operações da QMM em Mandena iniciaram ações judiciais no Reino Unido em abril de 2024. Eles acusam a Rio Tinto de poluir os lagos dos quais dependem para suas necessidades domésticas com níveis de urânio e chumbo que representam um grave risco à sua saúde. (12)
Quinze anos de mineração da QMM em Mandena resultaram em destruição, poluição, conflitos, repressão violenta de protestos e perseguição do Estado e da QMM a cidadãos que exigiam o respeito aos seus direitos. É nesse contexto que a comunidade de Sainte Luce declara sua oposição à expansão da mineração de ilmenita proposta pela QMM em seu território.
Sainte Luce diz NÃO à destruição de seu modo de vida
Sainte Luce é a capital da lagosta do sul de Madagascar. Os peixes, caranguejos e principalmente lagostas pescados lá são procurados por chefs de restaurantes de lugares tão distantes quanto a capital de Madagascar, Antananarivo. A pesca de frutos do mar e o processamento de produtos florestais, como amboza e mahampy – fibras naturais que as mulheres usam para fazer esteiras e artesanatos – sustentam a comunidade há gerações.
Alarmados pela destruição e a poluição perigosa causadas pela mina da QMM e pela redução drástica de peixes na vizinha Mandena, os moradores de Sainte Luce juraram proteger seus modos de vida e a terra de seus ancestrais.
Em março de 2023, a comunidade informou a QMM e as autoridades malgaxes sobre sua decisão de se opor à mina de ilmenita em Sainte Luce e à destruição que ela traria. “Declaramos nossa oposição ao projeto de mineração”, disse a comunidade em uma carta à QMM e às autoridades. Em dezembro de 2023, representantes da comunidade entregaram cópias de um vídeo às autoridades malgaxes e à empresa. No vídeo, os moradores explicam sua decisão de se opor à mineração da QMM em seu território. Eles dizem que a comunidade decidiu preparar um vídeo como prova de que a decisão foi coletiva. (13)
“Não queremos esse projeto que destruirá nossas fontes sustentáveis de renda.”
A QMM já restringe o acesso da comunidade de Sainte Luce às suas florestas
Em dezembro de 2023, entre a entrega do vídeo da comunidade às autoridades malgaxes e à QMM em Fort Dauphin, os membros da comunidade de Sainte Luce estiveram envolvidos em um processo judicial. Em questão estava o direito da comunidade às suas terras ancestrais, as florestas que a QMM chama de S8, S9 e S17. A empresa declarou essas florestas como áreas protegidas e alega que, ao fazer isso, salvou-as da destruição. Essas florestas agora são administradas por um grupo chamado FIMPIA (Fikambanana Mpiaro ny Ambatoatsinana), apoiado e financiado pela QMM. A FIMPIA acusa a comunidade de entrar ilegalmente em suas próprias terras ancestrais que a QMM declarou “área protegida”.
Em 2009, a empresa lançou um kit de imprensa sobre a mina, intitulado “Uma mina no resgate da biodiversidade única da zona litorânea de Fort Dauphin”. (14) A publicação fez parte da iniciativa da Rio Tinto para conquistar, ou talvez comprar, ONGs conservacionistas. Algumas dessas organizações se opuseram inicialmente à mina da Rio Tinto porque ela destruiria 1.600 hectares de florestas costeiras. Para conter a oposição dessa ONG aos seus planos de mineração, a Rio Tinto concordou em “compensar” as florestas biologicamente diversas que sua mina iria destruir.
Porém, ao abandonar sua oposição à mina da QMM, as ONGs conservacionistas ignoraram uma questão muito importante: como alguém pode compensar a destruição de uma floresta única, que é o lar não apenas de muitas espécies raras e endêmicas de plantas e animais, mas também das comunidades de Sainte Luce e Mandena, sua cultura e suas conexões ancestrais? As supostas compensações de biodiversidade envolvem proibir a comunidade de usar várias florestas, tanto imediatamente ao redor da mina, quanto em Antsotso, cerca de 60 km ao norte das operações de mineração.
A floresta comunitária nos arredores de Manafiafy – que é o nome de Sainte Luce em idioma malgaxe – é um desses locais que a Rio Tinto declarou área protegida, como parte do programa de “compensação de biodiversidade” da empresa. A QMM se refere à floresta como “Zona S9, S8, S17”, onde “S” significa Sainte Luce. Assim como em Antsotso, a floresta comunitária fora de Manafiafy se tornou uma área de biodiversidade prioritária para a Rio Tinto. A operação de mineração da QMM envolve, em essência, uma dupla apropriação de terras: primeiro, das áreas de mineração e, segundo, das áreas de compensação de biodiversidade (S9, S8, S17 e as florestas de Tsitongambarika em Antsotso) onde as florestas comunitárias foram declaradas áreas protegidas a pedido da Rio Tinto. (2)
“Declaramos a nossa oposição ao projeto de mineração”
A comunidade de Sainte Luce deixou claro que protegerá a capital da lagosta da região sul de Madagascar contra a destruição, a violência e os conflitos que a mina da QMM traria. Os moradores informaram à empresa que, para eles, sua comunidade, seus meios de subsistência, seus modos de vida e o lar de seus ancestrais vêm antes da promessa de lucro no curto prazo. Eles apelam às indústrias do turismo e da lagosta para que apoiem seus esforços de proteger Sainte Luce contra a mineração destrutiva, e às autoridades de Madagascar para que não sacrifiquem sua comunidade por dinheiro rápido e ganhos pessoais. A QMM já deixou um rastro de conflito, violência, poluição e ameaças à saúde dos moradores (em função dos níveis elevados de urânio e chumbo em Mandena e Fort Dauphin). Nessa luta de Davi contra Golias, nós nos solidarizamos com a vila de Sainte Luce, cujos moradores juraram proteger a terra de seus ancestrais e o futuro de sua comunidade.
Associação Finoana e Secretariado do WRM
(1) Sainte Luce diz NÃO à destruição de suas florestas e meios de subsistência para mineração. Testemunhos em vídeo.
(2) Your mine. Vídeo de 17 minutos.
(3) 23 de junho de 2023. L’Etat entend faciliter l’extension du projet QMM à Petriky et Sainte-Luce. 2424MG.
(4) Declaração da Rio Tinto sobre a renegociação dos aspectos financeiros da concessão com o governo de Madagascar.
Veja (7) para saber como a Rio Tinto usa anos eleitorais para fechar acordos com governos.
(5) Villagers demand Rio Tinto compensation. Yvone Orengo. The Ecologist. Dezembro de 2022. Orengo também observa que, apesar das “afirmações da QMM de que pagou quase 4 milhões de dólares em indenização a pessoas impactadas negativamente pela mina de Mandena, até dezembro de 2009 havia 563 reclamações pendentes sobre indenização apresentadas à QMM”.
(6) Rural villagers living near mine in Madagascar take legal action against mining giant Rio Tinto after tests show dangerous levels of lead in their bodies, Leighday, abril de 2024.
(7) Rio Tinto’s Madagascar mine promised prosperity. It tainted a community. Neha Wadekar. The Intercept. 3 de abril de 2024.
(8) Seção do site da Rio Tinto sobre suas operações QMM em Madagascar.
(9) Veja a nota 7.
(10) Large-scale mining’s impacts: a case study of Rio Tinto/QMM mine in Madagascar. Publish What You Pay Network. Março de 2022.
(11) Comunicado coletivo TANY & CRAAD-OI sobre os protestos de 2018.
(12) Veja a nota 7.
(13) Veja a nota 1.
(14) A mine at the rescue of the unique biodiversity of the littoral zone of Fort-Dauphin. QIT Madagascar Minerals SA Press kit. 2009.