Mineração predatória na Venezuela: o Arco Mineiro do Orinoco, economias de enclave e o Plano Nacional de Mineração

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Mina de ouro conhecida como "Oito mortos" em Las Claritas. 2016: Clavel Rangel. Foto: Human Rights Watch

De 2013 a 2021, a crise na Venezuela causou o colapso de uma nação construída em torno do petróleo nos últimos 100 anos. No cenário resultante, surge um extrativismo predatório, prevalece a mineração e se intensificam a violência política e a militarização da sociedade.

O colapso da Venezuela petroleira e o surgimento de um extrativismo predatório

A crise que se desenvolveu na Venezuela, de 2013 a 2021 – a mais extraordinária de sua história republicana e talvez de toda a América Latina – causou o colapso de uma nação que se construiu em torno do petróleo nos últimos 100 anos. Por razões de espaço, não podemos nos deter nas causas de como se chegou aqui e nem nas responsabilidades. No entanto, é importante mencionar que, justamente no momento de esplendor do processo bolivariano (2004-2009), o rumo escolhido pelo governo de Hugo Chávez acentuou o padrão extrativista-rentista do petróleo, que já havia fracassado no final dos anos 1980, e que abrira uma crise muito intensa, da qual o próprio Chávez surgiria nos anos 90. Apesar dos enfrentamentos com os setores da oposição apoiados pelo eixo Estados Unidos-União Europeia, os principais fatores que determinaram esse rumo e a consequente derrocada nacional foram os erros, a corrupção e as correntes conservadoras dentro do governo.

A morte do presidente Chávez, em 2013, e a queda dos preços internacionais do petróleo a partir de 2014 foram dois gatilhos que, por um lado, reabriram as disputas políticas pelo controle do Petro-Estado e, por outro, promoveram o colapso da economia rentista do petróleo e das próprias instituições estatais. Isso resultou em uma queda impressionante do PIB – de cerca de 70% de 2014 até hoje –, da produção agrícola e industrial e, muito importante, da produção de petróleo, que há vários anos era, em média, de 3 milhões de barris por dia e no final de 2020 mal chegava aos 350 mil barris – semelhante aos níveis dos anos 40. Isso sem contar a hiperinflação desde 2018 (a mais alta do mundo há vários anos), uma dívida pública que ultrapassa 130 bilhões de dólares e o agravamento das sanções internacionais, principalmente as impostas pelos Estados Unidos desde 2017.

Esse quadro, com uma escalada do conflito político, principalmente entre o governo e a oposição, gerou um processo acelerado de dissolução do Petro-Estado venezuelano – o que não implica o desaparecimento do Estado em si. Em meio a um conjunto fragmentado de poderes e interesses particulares, prevalece a impunidade absoluta, a corrupção generalizada e a resolução das questões políticas e dos conflitos pela força. Com a progressiva desintegração da economia rentista baseada no petróleo, o que predomina são as economias subterrâneas, que vão desde importantes redes de especulação, corrupção, extração e contrabando (em boa medida, articuladas ao capital internacional e/ou a grupos criminosos) até a extraordinária ascensão da economia informal, que acaba sendo o principal canal de troca da economia doméstica. Essas redes de corrupção e economias ilícitas também alimentam as facções do governo, incluindo o setor militar, o que se agravou com o colapso do Petro-Estado.

Se apreciarmos essa dinâmica em seu contexto internacional, a Venezuela está mais exposta do que nunca aos fluxos selvagens da economia globalizada, uma vez que a geografia do país está sendo marcada por múltiplos atores da expropriação e da recolonização – resultando no aumento da internacionalização do conflito no país nos últimos anos.

Esses fatores configuraram um novo cenário onde surgem novas governanças, processos de territorialização e, em síntese, um extrativismo predatório, que se caracteriza por ser fragmentado e relativamente feudalizado. Promove-se uma multiplicação de operações de extração e expropriação de recursos naturais nas quais prevalece a mineração (e já nem tanto o petróleo) como atividade fundamental para a reprodução das estruturas de poder locais e nacionais (continua havendo ligação com os poderes centrais do governo nacional em Caracas).

Nesse sentido, apesar do cenário nacional turbulento e fragmentado, opera também uma política de Estado, que no governo de Nicolás Maduro tem evoluído para o estabelecimento de um regime de perfil ditatorial, no qual prevalece o estado permanente de exceção – de direito e de fato – o uso ampliado da violência política e a militarização da sociedade. Da mesma forma, aponta também para um processo progressivo de neoliberalização que, por meio de uma série de leis, decretos e empreendimentos concretos, desregula e promove a apropriação da natureza e dos territórios por atores nacionais e internacionais envolvidos na acumulação de capital.

A evolução da mineração na Venezuela em crise: o Arco Mineiro do Orinoco e o Plano Nacional de Mineração 2019-2025

A crise da economia do petróleo na Venezuela, que se desenvolve desde a década de 80, abriu novas geografias de extração voltadas, em primeiro lugar, ao petróleo não convencional do Cinturão Petrolífero do Orinoco e, progressiva e paralelamente, à expansão da mineração de ouro na Amazônia. Várias políticas específicas foram promovidas por Chávez nos primeiros cinco anos de seu governo, mas foi em 2011 que se anunciou o nascimento de um megaprojeto de mineração sem precedentes na história da Venezuela: o Arco Mineiro do Orinoco (A. M. O.). (1)

O projeto do A. M. O. cobre um enorme polígono de quase 112 mil km2 em todo o norte do extenso estado de Bolívar, para a exploração de importantes concentrações de ouro, bauxita, coltan, diamantes, entre outros. Isso também fazia parte de um plano de desenvolvimento que se propunha a reativar e reimpulsionar o conjunto do potencial existente no país para a mineração, abrangendo não só a Amazônia, mas todo o norte do rio Orinoco, onde esse potencial está principalmente na mineração não metálica, como carvão, areias, feldspato, entre outros.

A crise de 2013-2021 foi sabotando a economia extrativista formal do país. Isso valorizou cada vez mais o ouro, tanto para o governo de Nicolás Maduro, como para a população (como fonte de sustento diante do colapso interno), e mesmo para os grupos que promovem as economias clandestinas e as redes de corrupção, que experimentaram um crescimento notável nesse período.

Nesse contexto, em fevereiro de 2016, o presidente Maduro formalizou a criação do A. M. O., estabelecendo-a como Zona de Desenvolvimento Estratégico Nacional, que é basicamente uma Zona Econômica Especial – uma espécie de figura geoeconômica de flexibilização radical. Em um primeiro momento, o Governo afirmou que o A. M. O. vinha para “colocar ordem” na mineração ilegal descontrolada que crescia dramaticamente desde os anos 2000. Com esse argumento, Maduro e seu governo tentaram legitimar o projeto. Por outro lado, foram promovidos acordos não transparentes com empresas nacionais e internacionais, uma vez que os detalhes dos mesmos não foram divulgados publicamente. Ressalte-se que não se conhecem estudos de impacto ambiental do empreendimento – algo previsto pela Constituição – nem processos de consulta prévia, livre e informada. Por outro lado, há denúncias de cooptação de comunidades indígenas para validar a execução do projeto – apontadas por organizações de direitos humanos e indígenas, como Provea ou GTAI. (2)

Registrou-se um crescimento gradativo da presença militar na região, e o Governo também concedeu poderes especiais às Forças Armadas para garantir a continuidade da atividade de mineração e evitar resistências que dificultem as operações. Assim, foi implementada uma “Zona Militar Especial” para o A. M. O. e foi criada a Companhia Anônima Militar de Indústrias Mineiras, Petrolíferas e de Gás (CAMIMPEG), vinculada ao Ministério da Defesa, com competência para exercer um número praticamente ilimitado de funções nos processos de extração e comercialização de recursos naturais, inserindo o setor militar plena e abertamente no negócio extrativista.

No entanto, o que prevaleceu no A. M. O. e muito além de suas zonas poligonais na região amazônica (onde também há concentrações de ouro e diamantes) foi uma modalidade de mineração dominada por lógicas ilícitas e criminosas, e por poderes locais armados de caráter irregular, que acabam se articulando com setores do Estado em franca decomposição. A instabilidade do país tornou mais complicadas as atividades formais de investimento, exploração e mineração, o que foi acentuado ainda mais pelas sanções internacionais. Da mesma forma, os grupos armados presentes em vários territórios do A. M. O. também tornam muito difícil a execução de negócios de forma “limpa” e transparente. Por sua vez, a assinatura dos Acordos de Paz na Colômbia em 2016 promoveu o deslocamento de atores armados do conflito naquele país, vários dos quais foram incorporados a essas dinâmicas da mineração na Amazônia venezuelana. Apesar disso, o governo Maduro consegue captar parte desse ouro, justificado principalmente através da organização estatal de brigadas mineiras que, segundo se anuncia, vendem o ouro ao Banco Central da Venezuela.

A implantação dessa mineração predatória, que é fundamentalmente ilegal – porque também viola as leis ambientais e os direitos sociais – se expressa com mais força nas bacias dos rios Cuyuní, Caroní, Paragua, Caura (no estado de Bolívar), mas também nos rios Ventuari, Sipapo, Negro, nas cabeceiras do Orinoco, entre outros (no estado do Amazonas). A Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG) detectou cerca de 2 mil pontos de mineração ilegal, e estima-se que cerca de 189 mil pessoas estejam trabalhando nos garimpos da Amazônia venezuelana. O governo estima o total de ouro extraído em 2019 no país em 25,4 toneladas, (3) o que representaria um valor inédito na história. Outros analistas mais próximos dos partidos da oposição falam em 80 toneladas. (4)

Além do A. M. O. e da Amazônia, o governo estabeleceu a mineração como alternativa para “sair da crise” e “diversificar a economia”. Para isso, ofereceu praticamente todo o território nacional, o que está claramente expresso no “Plano Nacional de Mineração 2019-2025”, que sistematiza, como nunca, o objetivo de elevar a produção do país à sua capacidade máxima. Ao norte do Orinoco, também existem “oportunidades de negócios” na mineração, enquanto se multiplicam os garimpos e as operações de extração arbitrários e irregulares, atravessados pela corrupção, a pilhagem e a ilegalidade. Locais de extração de areia que ameaçam a população local, militares extraindo carvão vegetal para comercialização, empreendimentos devastadores sem nenhum controle, como a retirada de areia do rio Turbio, (5) ou outras que surgem das sombras e geram conflitos com as populações locais, como o conhecido caso das iniciativas de mineração de cal e feldspato no Cerro La Vieja, no estado de Lara. (6)

Durante a pandemia de COVID-19, estabeleceu-se mais impunidade e dinâmicas econômicas altamente instáveis. Foram detectadas estratégias do governo para aproveitar a pandemia e promover sua agenda de mineração. Um exemplo é a promulgação, em abril de 2020, da Resolução Nº 0010, que autoriza a mineração de ouro, diamantes e outros minerais estratégicos, em importantes rios da Amazônia venezuelana, como Cuchivero, Caura, Aro, Caroní, Yuruari e Cuyuní. A resolução implica uma expansão dramática das áreas e dos modos de exploração (como a exploração fluvial com lagoas industriais) no marco do devastador projeto A. M. O. Para citar exemplos ao norte do Orinoco, moradores de Sarare (Lara) denunciaram as tentativas de implantação de mineração na região que buscam expropriar, invadir e expulsar camponeses e produtores de suas terras, ou o caso dos Morros de Macaira (Guárico), onde continua a extração de gesso e calcário. (7)

Resistência e disputas territoriais

Essa evolução da mineração predatória foi atravessada por altos níveis de enfrentamento. Vários conflitos socioambientais de diversos graus foram evidenciados em diversos territórios ao redor do A. M. O., mas também se estabeleceu um conflito socioambiental nacional e internacional, provavelmente o mais importante da história contemporânea do país. Ele implicou a articulação de inúmeros atores – como organizações indígenas, setores acadêmicos, grupos ambientalistas, coletivos de direitos humanos, artistas e representantes políticos, entre outros – em um conflito que desafiou o governo Maduro e o modelo extrativista no país. Essa articulação envolveu campanhas, mobilizações, recursos judiciais – como um pedido de anulação no Supremo Tribunal de Justiça – que foram muito importantes, e a denúncia chegou até mesmo a organismos internacionais, como a Comissão de Direitos Humanos da ONU.

Em nível de território, vários povos indígenas têm resistido tanto ao avanço dos garimpeiros ilegais quanto aos grupos militares que se aproveitam do negócio. As comunidades indígenas Pemón, na Gran Sabana, opuseram diferentes tipos de resistência; as comunidades Uwottuja, no estado do Amazonas, foram forçadas a ativar mecanismos de autodefesa para enfrentar os grupos armados que invadem seus territórios. (8) O mesmo aconteceu com as comunidades indígenas Ye’kwana e Sanema, da bacia dos rios Caura e Erebato. Como medida de autodefesa e proteção dos territórios, elas exigem a demarcação de suas terras segundo a Constituição do país.

Vale destacar também as mobilizações desenvolvidas entre indígenas e moradores locais do Baixo Caura (estado de Bolívar), que se opuseram à instalação de novas plataformas (lagoas industriais) para exploração mineira no rio, apesar da precária situação dos serviços públicos na região. (9) Esses protestos envolveram setores populares de Maripa que rejeitavam a mineração – apesar de a atividade ter passado a representar uma possibilidade de sair da pobreza. Sua persistência em 2020 conseguiu conter as lagoas de mineração – e a Resolução 0010 foi revogada.

Ao norte do Orinoco, também ocorreram mobilizações interessantes contra a mineração. Destacam-se a defesa do Cerro La Vieja, no estado de Lara, que teve um bom impacto em níveis local e nacional. A luta histórica contra o carvão no estado de Zulia persiste, embora a crise e a violência na região tenham reduzido sua intensidade. Por sua vez, outras mobilizações foram evidenciadas nas regiões centrais e nas planícies, em defesa de parques nacionais, monumentos naturais e áreas sensíveis, que tiveram certa ressonância na mídia, contribuindo para a causa ambiental.

Em geral, os grupos mobilizados sofrem muito, não só com a deterioração de suas condições de vida, mas também com a derrocada institucional e dos direitos sociais no país, sendo difícil encaminhar suas reivindicações pelos canais regulares. O contexto na Venezuela é de protestos constantes e abundantes, embora tendam a ser fragmentados e localizados. É a partir desse contexto que essas resistências continuam se desenvolvendo, na tentativa de evidenciar ainda mais o vínculo ecológico/ambiental com as reivindicações por justiça social.

Emiliano Teran Mantovani
Observatório de Ecologia Política da Venezuela

(1) Boletim do WRM, Crise e esgotamento do modelo petroleiro na Venezuela: a megamineração e as novas fronteiras da extração, 2017
(2) Derechos humanos en el contexto del proyecto “Arco Minero del Orinoco” en Venezuela, Audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), novembro de 2016
(3) Desarrollo Minero Ecológico, Venezuela producirá 80 toneladas de oro a partir de 2025
(4) VOA, Al menos 80 toneladas de oro salen de Venezuela por contrabando al año, según expertos, 2019
(5) El Impulso, Militares estarían implicados en extracción de arena del Turbio, 2017
(6) Observatorio de Ecología Política de Venezuela, La lucha contra la minería y la defensa del cerro La Vieja continúa, 2019
(7) Observatorio de Ecología Política de Venezuela, Denuncian minería en el Monumento Natural Morros de Macaira en Guárico, 2019
(8) Observatorio de Ecología Política de Venezuela, Pronunciamiento del Pueblo Uwottüja (“piaroa”) ante la presencia de grupos armados y actividad minera en su territorio, 2020
(9) Observatorio de Ecología Política de Venezuela, En Bolívar comunidades protestan en contra de instalación de balsas mineras en Río Caura y por falta de combustible, 2020