A grilagem ou a apropriação de terras foram chamados, corretamente, de revolução dos ricos contra os pobres. (1)
Os bens comuns não são apenas uma “terceira via”, para além das falhas do estado e do mercado; eles são um veículo para reivindicar a posse da terra nas condições necessárias para a vida e sua reprodução. (2)
Os bens comuns (commons) e a vida em comum que os forma (commoning)
No sentido mais amplo, os bens comuns são diferentes tipos de riquezas, recursos, espaços, valores, sistemas, processos e atividades que “pertencem” a grupos ou coletividades e que são ativamente reivindicados, criados, recriados, protegidos e restaurados para o bem e os propósitos coletivos, para gerações presentes e futuras.
Os exemplos mais conhecidos de bens comuns estão na natureza: ar, água, terra, florestas e biodiversidade. Eles também podem ser sociais, intelectuais e culturais: por exemplo, sistemas de saúde e educação, conhecimento, tecnologia, a internet, literatura e música. Na condição de afirmações morais e políticas amplamente aceitas para a proteção contra abusos de poder e para o acesso a recursos e condições essenciais para a vida, os direitos humanos também podem ser considerados bens comuns globais. (3) No entanto, o discurso dos direitos humanos ficou preso na linguagem do neoliberalismo e do individualismo, os quais contradizem os valores subjacentes às noções de bens comuns.
Os bens comuns podem ser vinculados entre si e articulados em rede: uma coisa, um espaço, um sistema podem ser bens comuns e possibilitar outros bens comuns, por exemplo, a internet é comum, e a tecnologia da internet possibilitou os bens comuns do conhecimento virtual. Da mesma forma, os domínios ancestrais dos povos indígenas possibilitam o desenvolvimento de sistemas locais de conhecimento, ciência, e uso e conservação de recursos.
Os bens comuns podem ser herdados de gerações anteriores, por uma comunidade ou grupo, e transmitidos às gerações futuras. Eles podem ser inventados, criados, adaptados, protegidos e reabastecidos por meio de regras coletivamente acordadas. Muitas cooperativas de crédito começaram como iniciativas baseadas em bens comuns. Algumas mantiveram suas identidades relacionadas a esses bens comuns, enquanto outras foram cooptadas pelo capitalismo para se tornarem instituições financeiras de pequeno porte. Comunidades de muitas áreas rurais em toda a Ásia compartilham trabalho, produção e renda para manter reservas alimentares coletivas. A maioria das aldeias do Sudeste Asiático tem florestas comunitárias, fontes de água (poços, lagoas, lagos, córregos, etc.) e terras comuns para pastagem e forrageio. A guarda e o compartilhamento de sementes entre os pequenos agricultores constituem um dos tipos mais duradouros de bens comuns. Crucial para fortalecer a resiliência e a soberania alimentar das comunidades, ele gera um sentido compartilhado de lugar e interdependência, destacando o papel vital das mulheres.
Os bens comuns (commons) evoluem na prática e não existem sem a vida em comum que os forma (commoning) (4), que inclui os processos contínuos e dinâmicos, por meio dos quais os bens comuns são criados, adaptados e fortalecidos para durar por gerações, perpassando interesses diferentes e muitas vezes conflitantes. Para que algo – seja um recurso, um espaço, um conhecimento, uma estrutura ou mesmo um conceito – se torne um bem comum, deve ser identificado e delimitado como tal. Seus limites, usuários, regras de acesso, uso, controle, inclusões-exclusões e sistema de governança devem ser desenvolvidos pelos participantes desse bem comum e reconhecidos pela sociedade como um todo.
Os bens comuns oferecem opções criativas de vida e sobrevivência em meio às crises recorrentes desencadeadas pelo capitalismo e pelo neoliberalismo. Da mesma forma, permitem que as pessoas resistam efetivamente ao extrativismo, ao desenvolvimento destrutivo e à expansão capitalista.
Posse e governança
Os bens comuns não são governados por regimes de propriedade privada, mercado ou Estado, e sim por um ou vários grupos de pessoas, que podem ser diversificados em termos sociais, econômicos e culturais. Por exemplo, um território geográfico pode incluir uma área florestal, fluvial e costeira que seja compartilhada, usada e protegida por comunidades camponesas, pesqueiras e pastorais por meio de um sistema coletivo de governança desenvolvido com regras, responsabilidades, obrigações e punições por excesso de uso, uso indevido, danos, etc. As cooperativas alimentares e agrícolas podem envolver produtores, processadores e consumidores que operem com regras e regulamentos desenvolvidos coletivamente para qualidade, armazenamento, segurança e preços.
Os bens comuns questionam noções de propriedade: muitos deles não estão totalmente abertos para que todos possam usar e explorar como quiserem, mas também não são propriedade privada. Nos regimes de propriedade privada, os indivíduos detêm a posse jurídica de propriedades específicas, podem excluir legalmente os outros de usos e benefícios gerados por aquela propriedade e ter o direito de dispor dela como desejarem. A propriedade individual e privada constitui o pilar da troca baseada no mercado; expressar essas transações como “direitos” transmite a ideia de que os direitos humanos são necessariamente individuais, e que, em um mercado, todos os atores têm os mesmos “direitos”. Por outro lado, os bens comuns têm a ver com “propriedade” e posse (na falta de termos melhores) coletivas, nas quais grupos de pessoas exercem direitos coletivos de usar, se beneficiar e tomar decisões sobre uma coisa, um espaço, um recurso, etc, que sejam compartilhados. Ao contrário dos regimes de propriedade privada, as assimetrias de poder entre pessoas e comunidades, e o potencial para abusos de poder, são levados em conta na governança dos bens comuns.
Nos bens comuns, a capacidade de ação é autônoma em relação às instituições do Estado e do mercado. Ao mesmo tempo, a criação e a prática de um bem comum envolvem negociações de relações sociais e políticas entre as pessoas que participam desses bens comuns, bem como entre elas e atores situados fora deles. Por exemplo, os residentes de aldeias que fazem parte de uma floresta comunitária precisam negociar com as autoridades estatais e/ou com as aldeias vizinhas, todos que podem querer controlar a floresta. Nas hortas urbanas, os participantes precisam negociar o arrendamento da terra, regras de uso, gestão, etc. com as autoridades municipais relevantes.
Embora a coletividade esteja no centro dos bens comuns, eles não negam a ação e a responsabilidade individuais; pelo contrário, proteger e administrar recursos/riqueza coletivos requer uma coletividade de atores individuais trabalhando juntos por objetivos compartilhados. Em muitas áreas de terras altas na Ásia, as famílias têm a posse de campos de agricultura itinerante, mas a encosta mais ampla é protegida por toda a comunidade. As vidas e os meios de subsistência dos pescadores dependem em muito de rios, lagos e oceanos na condição de bens comuns, e suas culturas e tradições definem práticas, regras e limites para colher e proteger esses bens comuns. Em algumas comunidades rurais, terras de colheita e pastagem são identificadas de forma comunal, embora os direitos de posse das famílias a cultivar parcelas específicas das terras sejam reconhecidos e respeitados.
Assim, as relações que indivíduos e grupos constroem para criar, usar, proteger e fortalecer os bens comuns são particularmente importantes. O próprio conceito de bens comuns se refere a uma relação de posse compartilhada, a qual implica responsabilidade compartilhada e relações compartilhadas entre os beneficiários. Essas relações são expressas na forma de convenções sociais, normas, leis consuetudinárias e padrões comportamentais. Os bens comuns exigem participação consciente e deliberada, e envolvem direitos, bem como deveres. As pessoas concordam em participar de um bem comum e entrar em seu sistema de regras (por mais informais ou consuetudinárias que sejam). A governança dos bens comuns é fundamentalmente uma questão de relações sociais/políticas e não pode ser desassociada da relação singular que as comunidades participantes constroem. O bom funcionamento da governança dos bens comuns promove responsabilidade pessoal, coesão social, pluralidade, o uso sustentável de recursos em risco de extinção e o renascimento de práticas tradicionais positivas.
Ameaças de apropriação
As ameaças mais diretas aos bens comuns provêm de apropriações que transformam bens comuns existentes em propriedade privada e os colocam sob regimes de livre mercado, impedindo a formação de novos bens comuns. A infraestrutura do neoliberalismo – liberalização do comércio e do investimento, privatização, legislação favorável a empresas e ao comércio, mercantilização e financeirização – prejudica a governança e a responsabilidade coletivas ao aumentar o foco em benefícios e direitos de propriedade individualizados. Os Estados têm tendido a adotar políticas e sistemas de governança que favorecem os interesses das grandes empresas e dos mercados em detrimento dos direitos dos povos, das comunidades locais e da natureza. O interesse público – um conceito de coletividade que vai além da soma de interesses individuais – está sendo reformulado em termos de benefícios individualizados e direitos que são mais bem atendidos pelas transações de mercado neoliberais.
Terras, florestas, rios e outras fontes de água são tomadas para exploração madeireira, agricultura industrial e plantações, indústria extrativa, desenvolvimento imobiliário, produção de energia, turismo, etc. A agricultura industrial estimula a concentração de recursos produtivos, terra e mão de obra nas mãos de grandes empresas e elites. As cadeias de valor globais solapam as habilidades que os trabalhadores têm de se organizar, formar sindicatos e negociar coletivamente em busca de salários e trabalho dignos.
Os acordos de livre comércio e investimento permitem que as grandes empresas obtenham acesso à biodiversidade agrícola e natural e ao conhecimento tradicional, e reivindiquem direitos de propriedade intelectual sobre produtos derivados deles. Os lucros decorrentes dessas patentes vão para as corporações e instituições de pesquisa, e não para as pessoas que cuidaram desses bens comuns durante gerações. A biopirataria é um perigo constante para os povos indígenas e outras comunidades rurais. As mulheres, que são as guardiãs das sementes na maioria das comunidades camponesas, são comumente as primeiras a serem expropriadas pelas novas propostas de produção agrícola com base em sementes “melhoradas”. Os mercados financeiros estão penetrando mais profundamente em nossas vidas e economias, e buscam se apropriar da própria natureza, como acontece com a Economia Verde. Novos ativos financeiros estão sendo criados a partir de terra, água, solo, carbono, oceanos e biodiversidade, nos quais os recursos naturais podem ser negociados como commodities. (5)
Os bens comuns também estão ameaçados pelas condições das políticas associadas ao financiamento do desenvolvimento por parte de Instituições Financeiras Internacionais e de doadores bilaterais e multilaterais, que favorecem abordagens neoliberais ao desenvolvimento. O Banco Mundial está firmemente empenhado em regimes de propriedade privada, em direitos territoriais individualizados que sejam “comercializáveis” e no estabelecimento de mercados de terra, carbono e água. A Corporação Financeira Internacional (IFC, na sigla em inglês) financia projetos de investimento privado que resultam na destruição da natureza e na expropriação de populações locais de seus territórios. O Banco Asiático de Desenvolvimento (BAD) promove o crescimento econômico rápido por meio de operações do setor privado, que têm resultado repetidamente na poluição do ar e da água, na degradação da terra e no esgotamento dos recursos naturais. Em todas as operações promovidas pelas Instituições Financeiras Internacionais, os governos-clientes são obrigados a dar às empresas privadas acesso irrestrito à terra, à água e a outros recursos naturais, e implementar políticas e regulamentações favoráveis ao mercado (e não a comunidades, sociedade e natureza).
A privatização e a mercantilização dos bens comuns têm impactos profundos e de longo prazo sobre comunidades e sociedades. Desmantelam-se práticas há muito usadas e testadas de compartilhamento, uso e gestão de recursos, capacidades, infraestrutura e trabalho dentro de e entre comunidades e diferentes grupos de usuários, o que aumenta o potencial para conflitos, enfraquecendo a coesão social e diminuindo a qualidade dos ecossistemas e das vidas.
Nas áreas rurais, residentes locais perdem espaços e recursos cruciais para a vida, e o meio ambiente natural é degradado por desmatamento, conversão de terras, contaminação química, desvio dos fluxos de água e sobre-exploração, que afetam negativamente a disponibilidade e a qualidade de alimentos silvestres, forrageados e coletados. As mulheres são especialmente vítimas dessa perda de poder, pois são responsáveis pela maioria das atividades de forrageio e dependem (mais do que os homens) de seu entorno imediato para garantir o sustento de suas famílias.
As apropriações das terras transferem a posse, o manejo e o controle sobre os recursos naturais e produtivos de pequenos produtores, trabalhadores, comunidades e a sociedade para grandes empresas e elites, que procuram maximizar os lucros o mais rápido possível e colocam em perigo a disponibilidade futura e a qualidade da riqueza e dos recursos naturais. Roubam-se das populações locais a agência política e os direitos de tomar decisões sobre como produzir, consumir, viver e trabalhar.
Comunidades de toda a Ásia mostram que seus sistemas tradicionais e informais de uso e manejo de recursos naturais e territórios foram muito mais eficazes na conservação e na regeneração de terras, solos, florestas, água e biodiversidade do que os sistemas modernos e formais introduzidos pelos Estados. No entanto, as ações das comunidades para defender seus bens comuns de expropriação, privatização, mercantilização e financeirização são cada vez mais criminalizadas e violentamente reprimidas pelos governos.
Os bens comuns (commons) e a vida em comum que os forma (commoning): resistência
Os bens comuns sempre foram espaços de luta entre diferentes atores da sociedade, da política e da economia. Porém, na atual conjuntura marcada por crises recorrentes, é neles que se travam as resistências mais ferozes e duradouras ao desenvolvimento capitalista, ao neoliberalismo e ao crescimento econômico. No centro dessas lutas estão valores fundamentais relacionados a responsabilidades e direitos humanos coletivos, direitos da natureza, justiça social, ecológica e de gênero, sustentabilidade, democracia, autodeterminação e igualdade intergeracional.
Os bens comuns são sistemas de produção não mercantilizáveis e, portanto, um desafio direto ao capitalismo. Eles proporcionam uma estrutura para viver, produzir, consumir e trocar em que o benefício individual está inextricavelmente vinculado à coletividade, e a segurança de longo prazo não é sacrificada por ganhos de curto prazo. O próprio ato de viver em comum é político, na medida em que desafia as hierarquias de poder estabelecidas e não permite que os interesses de alguns prejudiquem as necessidades da maioria.
É crucial que não só defendamos os bens comuns existentes da ameaça de apropriação de territórios e cooptação, mas também produzamos novos bens comuns para responder a desafios e crises e expressar as capacidades regenerativas das pessoas e da natureza.
Shalmali Guttal, s.guttal [at] focusweb.org
Focus on the Global South,
23 de outubro de 2017
(1) Karl Polanyi (1944) The Great Transformation: the political and economic origins of our time. p. 35. Boston, Beacon Press.
(2) Massimo De Angelis (s.d.). “Crises, Capital and Co-optation: does capital need a commons fix?” http://wealthofthecommons.org/essay/crises-capital-and-co-optation-does-capital-need-commons-fix (consultado pela última vez em 23 de outubro de 2017)
(3) https://blog.p2pfoundation.net/right-common-basic-human-right/2016/06/22 (consultado pela última vez em 22 de outubro de 2017)
(4) Peter Linebaugh. Some Principles of the Commons. https://www.counterpunch.org/2010/01/08/some-principles-of-the-commons/ (consultado pela última vez em 20 de outubro de 2017)
(5) Antonio Tricarico. The Coming Financial Enclosure of the Commons. http://wealthofthecommons.org/essay/coming-financial-enclosure-commons (consultado pela última vez em 27 de outubro de 2017)