Os Batwa e o Parque Nacional Kahuzi-Biega na RDC: A nova lei sobre os Povos Indígenas ajudará os Batwa a recuperar as suas terras?

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Casa Batwa queimada. Foto: Minority Rights Group

O Povo Indígena Batwa viu suas terras ancestrais serem expropriadas após a criação do Parque Nacional Kahuzi-Biega (PNKB), na República Democrática do Congo (RDC). Nesse processo, os Batwa enfrentaram as piores atrocidades e muitas violações dos seus direitos coletivos e individuais. Sua expulsão violenta contou com o apoio de doadores internacionais (fundos da Alemanha e dos Estados Unidos, entre outros) e de ONGs conservacionistas (como a Wildlife Conservation Society - WCS), que reforçaram práticas coloniais e racistas em relação aos Batwa.

Em 2022, o governo da RDC aprovou uma nova lei sobre a proteção dos direitos dos Povos Indígenas. Essa lei ajudará os Batwa na sua luta para recuperar as suas terras?

Introdução

A República Democrática do Congo (RDC) possui a maior rede de áreas protegidas de todo o continente africano, cobrindo 11,7% do território nacional. (1) Os Povos Indígenas e suas diversas florestas viveram de forma interdependente durante séculos. Contudo, a situação dessas cidades e, portanto, das suas florestas, nunca foi tão precária como hoje. (2)

O Parque Nacional Kahuzi-Biega (PNKB) está situado perto da margem ocidental do Lago Kivu e da fronteira com Ruanda, na RDC. A criação do parque em 1970, pelas autoridades coloniais belgas, teve como consequência a privação do acesso do Povo Indígena Batwa às suas terras ancestrais. O Kahuzi-Biega é um dos maiores parques nacionais do país.

No PNKB, bem como em outras áreas protegidas geridas pelo Estado, a conservação da natureza tem sido, sem dúvida, um projeto violento e colonial, que deve ser questionado com firmeza. Por mais de quatro décadas, a luta dos Batwa tem estado essencialmente ligada à recuperação das suas terras ancestrais e ao acesso às florestas e aos recursos naturais do PNKB. As tentativas de várias organizações de apoio aos Batwa que permanecem no PNKB de responder a essa crise se revelaram inúteis. Em 2006, o Centro de Acompanhamento dos Povos Indígenas e Minorias Vulneráveis ​​(CAMV) iniciou uma enorme campanha, buscando o diálogo e a reconciliação entre os Batwa expulsos de suas terras ancestrais e as autoridades do Parque Nacional Kahuzi-Biega. Mas esse processo, que culminou na assinatura de um plano de ação, também não teve sucesso. Ao mesmo tempo, pelas mesmas razões, a organização Meio Ambiente, Recursos Naturais e Desenvolvimento (ERND, na sigla em francês) entrou com uma ação na justiça contra o Estado congolês, representado pela ICCN (Agência Nacional para as Áreas Protegidas) e o PNKB. Mas essa ação tampouco teve êxito.

Assim, em outubro de 2018, indignados com os ciclos de promessas não cumpridas por parte do governo congolês e dada a sua situação de pobreza extrema, alguns Batwa decidiram regressar voluntariamente às suas terras ancestrais, dentro do Parque Nacional Kahuzi-Biega, apesar das restrições legais vigentes na RDC. Em 2019, foi organizado outro diálogo, numa tentativa frustrada de convencer os Batwa a abandonar o parque.

Após o fracasso desses processos, a estrutura paramilitar do PNKB, agindo em conjunto com o exército congolês, realizou atos organizados de violência em grande escala contra o Povo Indígena Batwa que vivia em suas terras ancestrais dentro do parque. Essa violência organizada começou em 2019 e continua até hoje. A ONG Minority Rights Group conseguiu obter provas de tortura sistemática, assassinatos – inclusive de crianças – e estupros coletivos de pelo menos 15 mulheres Batwa por guardas do parque e soldados, durante as operações de julho e novembro-dezembro de 2021. Os ataques documentados por essa ONG “representam graves violações do direito internacional e nacional, e podem constituir crimes contra a humanidade. Os ataques foram bem planejados, direcionados contra populações civis, expandidos geograficamente e sistemáticos, serviram a uma política de Estado, e envolveram crimes como assassinato, estupro e perseguição”. (3)

Essa violência sistemática recebeu apoio financeiro crucial de parceiros internacionais, apesar do conhecimento sobre as violações dos direitos humanos cometidas pelos guardas do parque os quais eles apoiam. A unidade paramilitar do PNKB recebeu apoio substancial dos governos da Alemanha e dos Estados Unidos, bem como de organizações conservacionistas como a Wildlife Conservation Society (WCS), incentivando um enfoque intrinsecamente militarizado à conservação. Em 2022, a WCS assinou uma parceria público-privada para a cogestão do PNKB, juntamente com a Agência Nacional para Áreas Protegidas (ICCN) do governo da RDC. (4) Ao mesmo tempo, o parque está aberto e sendo “explorado” por inúmeras agências de turismo de safari, o que realça o interesse em torná-lo “tranquilo”.

Em 2022, através da promulgação da lei sobre proteção e promoção dos direitos dos Povos Indígenas Pigmeus (PAP), o governo congolês reconheceu finalmente o direito deles à sua terra e aos recursos naturais que ela contém. Este artigo busca refletir sobre o direito à terra e aos recursos naturais dos povos indígenas consagrado no capítulo 5 da referida lei, à luz do caso PNKB. A questão principal é perceber se essa lei pode ajudar os Batwa a recuperar as terras que lhes foram roubadas pelo parque.

Para compreender integralmente essa problemática, este artigo se concentrará em três pontos principais. O primeiro oferece um breve olhar sobre os fundamentos históricos e jurídicos do direito dos Povos Indígenas à terra e aos recursos naturais na RDC. O segundo apresenta uma análise sucinta do direito dos Batwa à terra e aos recursos naturais no contexto do PNKB. E o terceiro detalha as lições que podem ser extraídas da análise da referida Lei.

Breve olhar sobre os fundamentos históricos e jurídicos do direito dos Batwa à terra e aos recursos naturais

Fundamento histórico. Os Batwa são amplamente reconhecidos como Povos Indígenas e considerados os primeiros habitantes da RDC, tanto pelo Estado congolês quanto por outras comunidades. (5)

O povo Batwa tem origem nas florestas que circundam os montes Kahuzi e Biega, dois vulcões extintos que dão nome ao parque. Os Batwa mantêm vínculos estreitos com os seus territórios ancestrais. Durante milênios, viveram em harmonia com a floresta, que é o seu entorno natural, até que, em 1937, o poder colonial criou a “Reserva Zoológica e Florestal do Monte Kahuzi”, uma pequena reserva natural que foi ampliada em 1951 para cobrir 60 mil hectares de floresta no território ancestral dos Batwa. Poucos anos após a independência da RDC, o governo classificou e expandiu essa área para convertê-la em parque nacional, criando assim o Parque Nacional Kahuzi-Biega – PNKB.

Posteriormente, o que era uma área protegida de 60 mil hectares passou a ter 600 mil hectares. Essa ampliação do PNKB envolveu atos de brutalidade e barbárie (despejo de pessoas de suas casas, humilhações e agressões, confisco ou destruição maliciosa de pertences domésticos, etc.), sem qualquer consulta prévia, consentimento livre nem compensação aos Batwa. Essa continua sendo a causa do desequilíbrio no modo de vida Batwa. Estima-se que entre 3 mil e 6 mil deles (580 famílias) tenham perdido suas terras ancestrais para dar lugar ao PNKB. (6)

Fundamento jurídico. A estatização também contribuiu em muito para privar os Batwa de toda a propriedade da terra. (7) Em sua versão modificada atual, a Constituição da RDC, de fevereiro de 2006, estabelece, no seu artigo 9, que “o Estado exerce soberania permanente, em particular sobre a terra (...)”, o que é explicitamente repetido no artigo 53 da Lei de Terras.

No entanto, vale ressaltar que, quando o artigo 387 da Lei de Terras estabelece que “as terras ocupadas pelas comunidades locais passam a ser (…) do Estado”, não significa, de forma alguma, que essas comunidades deixem de ter direito de propriedade sobre as terras às quais estão tradicionalmente vinculadas. Em primeiro lugar, cabe destacar que a Constituição de 2006, em seu artigo 34, garante o direito sobre bens (ou o direito de propriedade em sentido amplo) adquirido segundo o costume. Além disso, a referida Constituição, em seu artigo 153, faz do costume uma das fontes do direito, no sentido de que pode ser aplicado pelos tribunais desde que não seja contrário à ordem pública e aos bons costumes.

Além da Lei de 2022 sobre a proteção e a promoção dos direitos dos Povos Indígenas, outras legislações desenvolvidas nos últimos anos também garantem o respeito pelos direitos das comunidades locais, incluindo os Povos Indígenas, em termos de terras e florestas. Entre elas, a Lei do Código Florestal de 2022. Existe também a Lei 11/022 de 2011, sobre os princípios fundamentais da agricultura. Da mesma forma, vale a pena mencionar a Lei 14/003 de 2014, sobre preservação da natureza, que claramente marca uma evolução em favor do reconhecimento dos direitos consuetudinários sobre a terra e do papel positivo que as comunidades locais podem cumprir na conservação. Enquanto se aguarda o resultado da reforma agrária atualmente em andamento, foram registradas outras iniciativas regulatórias interessantes, principalmente o decreto 14/018 de 2014, que estabelece os termos e as condições para a atribuição de concessões florestais às comunidades locais. Além disso, para além da sua legislação interna cada vez mais abundante, a RDC tem obrigação de implementar os vários instrumentos internacionais específicos relacionados à promoção dos direitos dos Povos Indígenas, aos quais aderiu livremente.

O direito dos Povos Indígenas aos territórios ancestrais no contexto do PNKB

À primeira vista, uma análise do artigo 42 da Lei dos Direitos dos Povos Indígenas de 2022 mostra que o legislador congolês ignorou implicitamente o problema dos direitos de usufruto (para não mencionar os direitos de propriedade) dos Batwa, regularmente adquiridos sobre as suas terras/florestas tradicionais consideradas áreas protegidas.

Acima de tudo, essa disposição expressa o direito geral dos Batwa às terras e florestas que possuem atualmente e não às que ocuparam, usaram ou possuíram no passado, e que teriam sido classificadas como áreas de conservação ou que seriam concedidas a particulares. A Lei de 2014 sobre a conservação da natureza é o único instrumento jurídico que define medidas de conservação e uso dos recursos naturais nas áreas protegidas. E, em função dessa lei, é proibida a aquisição de quaisquer direitos de propriedade individual ou coletiva nas áreas protegidas. No entanto, a lei de 2014 prevê algumas exceções às medidas de conservação relativas ao acesso aos recursos naturais. Isso é feito principalmente no interesse da saúde e da segurança pública, bem como da segurança alimentar das pessoas que vivem perto de áreas protegidas.

A análise da lei de 2022 sobre a proteção e promoção dos direitos dos Povos Indígenas mostra, à luz do caso dos Batwa do PNKB, que:

1. O direito dos Batwa à terra e aos recursos naturais consagrado na referida lei não se aplica às terras tradicionais que tenham sido concedidas a particulares e/ou às áreas classificadas como protegidas. No caso das terras ancestrais dos Batwa classificadas como áreas protegidas (por exemplo, florestas do PNKB), a única forma de os Batwa recuperarem suas terras seria desmantelar parte ou a totalidade do PNKB para permitir que eles ocupassem e fizessem pleno uso das florestas que o parque contém. Por que desmantelá-lo? Porque o PNKB se tornou um bem público (área protegida) que não pode ser transferido nem vendido.

2. A lei não faz qualquer menção à reparação das injustiças históricas de que foram vítimas os Povos Indígenas após a sua expulsão das suas terras ancestrais. O legislador deveria pelo menos ter feito referência a essa problemática, com base no direito consuetudinário internacional que oferece aos Povos Indígenas a possibilidade de exigir restituição (de acordo com a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas) das suas terras e uma compensação pelas perdas sofridas.

3. Por fim, essa lei reconhece, no entanto, o importante papel que as comunidades locais e os Povos Indígenas devem cumprir na conservação da natureza.

Conclusão

Esta análise demonstrou inquestionavelmente que o povo Batwa do PNKB enfrenta um problema de falta de acesso a suas terras e florestas. Sua expulsão dessa área protegida é a principal razão para a perda dos seus direitos sobre suas terras tradicionais.

Os direitos à terra e aos recursos naturais consagrados no artigo 42 da lei de 2022 não se aplicam às áreas de conservação que sejam de domínio público ou privado. Essa lei não dá explicitamente aos Povos Indígenas qualquer prerrogativa subsidiária sobre áreas protegidas além do previsto na lei relativa à conservação da natureza. Consequentemente, surgem dois problemas essenciais: os direitos dos Batwa sobre as suas terras tradicionais que foram classificadas como áreas de conservação e, por extensão, a reparação das injustiças históricas de que eles foram vítimas em consequência do seu despejo.

No entanto, essa lei poderia representar um avanço significativo no reconhecimento jurídico dos Povos Indígenas como proprietários e titulares de direitos atribuídos a áreas de florestas. Também é uma ferramenta para fazer valer esses direitos. A aplicação futura dessa lei é fundamental, sobretudo a adoção das suas medidas de execução.
Da mesma forma, deve-se concluir a reforma agrária em andamento, cujos objetivos incluem os interesses dos Povos Indígenas. A Lei de Terras de 1973 deixou sem solução a questão das terras das comunidades indígenas (comunidades tradicionais), que deveria ser resolvida por decreto presidencial. Espera-se que essa questão seja finalmente solucionada para esclarecer os direitos de propriedade da terra das comunidades indígenas na RDC.

Franklin Bombwe, pesquisador adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Oficial de Bukavu, RDC

 

(1) Instituto Congolês de Conservação da Natureza (ICCN), 2009. Plano geral de gestão, 2009-2019, Parque Nacional Kahuzi-Biega.
(2) IUCN, 2016. Direitos fundiários e conservação da natureza na RDC, relatório
(3) Minority Rights Group International (MRG) 2022. Desmatamento florestal através da violência organizada contra os Batwa no Parque Nacional Kahuzi-Biega, relatório de abril
(4) https://www.wcs.org/our-work/regions/central-africa-gulf-of-guinea/kahuzi-biega
(5) Kwokwo Burume, A., 2003. ¿En vías de desaparecer? Los derechos de los indígenas en África: el caso de los Twa del Parque Nacional Kahuzi-Biega en la República Democrática del Congo, 1ª edición, IWGIA.
(6) Idem
(7) Consorcio UCB-UEA, 2021. Análisis de la dinámica de los conflictos en torno al Parque Nacional Kahuzi-Biega (PNKB), perspectivas de cohabitación pacífica entre el PNKB, los Pueblos Indígenas Pigmeos y otras comunidades ribereñas, Agencia de los Estados Unidos para el Desarrollo Internacional (USAID)