De uma forma ou de outra, os direitos – direitos fundiários e territoriais, direitos humanos, direitos das mulheres, direitos dos povos, direitos da natureza, etc. – há muito cumprem um papel em lutas de resistência local, movimentos sociais, organizações e grupos de apoio. Sendo assim, por que nos parece importante publicar agora um boletim do WRM com foco nesse assunto?
No sistema capitalista em que vivemos, “o próprio conceito de direitos é usado para impor e expandir o neoliberalismo” (1). Isso acontece porque, hoje em dia, não só as comunidades podem reivindicar direitos, mas as empresas também receberam seus próprios direitos e os estão reivindicando. Na maioria das vezes, os atores empresariais “vencem a batalha dos direitos” porque operam em um mundo de relações de poder muito assimétricas entre comunidades e empresas, e dentro dos contextos institucionais de “justiça” (leis, advogados, tribunais, etc.). O dilema não é novo: “a luta pelos direitos – um componente comum às lutas do povo em todo o mundo – está sendo usada por Estados, empresas e organizações internacionais para piorar a condição das pessoas envolvidas” (idem, 1). Já vimos como os regimes de propriedade privada se expandiram amplamente sobre florestas, territórios, culturas, sistemas de conhecimento e até sobre funções que o ar, o solo e as florestas desempenham, como o armazenamento de carbono ou a filtragem da água. Com frequência, a expansão atual das novas formas de direitos de propriedade vem sendo promovida com base no argumento de que elas respeitam ou mesmo fortalecem os “direitos” das comunidades locais.
Mais e mais instituições internacionais, organizações e até mesmo governos estão usando discursos sobre “respeito aos direitos” (inclusive direitos coletivos ou dos povos indígenas) em programas, iniciativas ou projetos que buscam cercar terras florestais. No entanto, em um contexto de interesses cada vez maiores sobre a terra (principalmente econômicos) e de um sistema extrativista que continua se expandindo, quais direitos realmente são respeitados? E quais direitos – e de quem – tendem a ser fragilizados, postos de lado ou esquecidos ao se implementarem esses programas, iniciativas ou projetos?
Um relatório de 2012, da empresa de consultoria The Munden Project (atualmente, TMP Systems) (2), apresenta o argumento econômico para as empresas resolverem problemas de posse da terra antes de começarem a implementar novas atividades: a solução dos problemas de posse evita “conflitos sociais” e, portanto, custos extras, riscos financeiros e até a possibilidade de ter que fechar operações. Para enfrentar esses possíveis “grandes riscos financeiros para os investimentos das empresas”, o relatório recomenda que as empresas promovam, “junto com governos e outros investidores, uma reforma da posse da terra”. O relatório retrata os “conflitos sociais” e os “problemas de posse” como algo evitável ou gerenciável para a satisfação tanto da empresa quanto da comunidade. Na realidade, essas situações em que “todos ganham” são improváveis. Em casos em que as empresas concordam ou são forçadas a reconhecer os direitos de comunidades que elas questionaram inicialmente, essas comunidades ainda tendem a acabar no prejuízo. Por exemplo, quando comunidades ou famílias obtêm títulos sobre uma quantidade muito menor de terras do que os direitos consuetudinários lhes garantiam, e que elas usavam ou controlavam. Ou quando as condições econômicas e a pressão empresarial são tamanhas que as famílias perdem as terras cujo título acabam de receber, em transações que aparentam que a venda de suas terras individuais ou coletivas a empresas foi “voluntária”, e as empresas então podem afirmar que não as invadiram, e sim as adquiriram de forma legal e legítima. No final das contas, as comunidades tendem a sair perdendo nesses acordos, não apenas suas terras, mas também muitos outros valores sociais, culturais e espirituais que as conectam ao seu território.
A omissão de problemas subjacentes fundamentais, como as relações de poder e os interesses econômicos, leva facilmente a propostas de reforma da posse da terra que pioram a situação das comunidades locais envolvidas nessas tentativas. Para as comunidades, quais são as implicações dessas tentativas de reforma da posse promovidas no contexto de profundas assimetrias de poder entre comunidades e corporações multinacionais, bem como no mercado capitalista injusto que é sistematicamente violento e racista, principalmente para aqueles que se opõem a programas, iniciativas ou projetos voltados à apropriação de terras florestais? O relatório da Munden Project e um número crescente de propostas de reforma agrária em que “todos ganham” não dizem nada sobre as perspectivas de suas propostas no contexto da violência atual e de relações de poder que expulsam as comunidades de suas terras.
Essa falta de reflexão sobre uma característica definidora do conflito pela terra aponta para uma grande cilada no discurso dos “direitos”: como garantir que a concessão de determinados direitos a determinados grupos não consolide assimetrias de poder (3), preconceitos e injustiças históricos? Como impedir a despolitização das lutas pelos “direitos” legítimos? Em outras palavras, como evitar que o discurso dos direitos sirva a propósitos econômicos e políticos dominantes? Se entendemos “direitos” como processos que se unem e são incorporados a longas lutas e visões sobre direitos e responsabilidades, cada um com muitas dimensões e camadas diferentes, os “direitos” não podem ser reduzidos ao cumprimento mecânico de obrigações e/ou campanhas promocionais de um projeto. É fundamental manter-se alerta e evitar discursos e práticas de direitos sem conteúdo político, isto é, desprovidos do reconhecimento e da explicação das injustiças históricas em termos de poder.
Um estudo recente sobre o regime de posse da terra da indonésia revelou um aspecto dessas assimetrias de poder. (4) Ele expôs padrões fundamentais de discriminação na legislação e um viés tendencioso na implementação, quando se comparam procedimentos válidos para empresas com os válidos para comunidades para obtenção de licenças e reconhecimento de direitos em áreas florestais. As principais conclusões são: (a) enquanto as comunidades detentoras de direitos consuetudinários devem passar por um processo legislativo longo e altamente político para conquistar status legal (pré-condição para a concessão de qualquer direito legal), as empresas precisam apenas de um registro administrativo normal para serem legalmente reconhecidas; (b) há evidências de cobrança de taxas não oficiais ou subornos, com custos ocultos chegando a 600 dólares por hectare, como revelou o caso de corrupção de uma plantação de dendê, levado à justiça; (c) as empresas só têm que lidar com órgãos nos níveis distrital e provincial, enquanto as comunidades sempre têm que lidar com órgãos de distritos, províncias e com o governo central. Tornou-se quase impossível que as comunidades iniciem seu processo sem o apoio de ONGs; (d) por lei, as licenças concedidas a plantações industriais são válidas por 60 anos, enquanto as licenças disponíveis para comunidades são limitadas a 35 anos, com possibilidade de extensão em certas condições.
Enquanto isso, em Honduras, comunidades indígenas dos Garifuna estão sendo pressionadas por advogados do Ministério da Educação para separar os terrenos onde estão localizadas suas escolas dos títulos de propriedade comunal. O pretexto é a suposta exigência de doadores, que estariam dispostos a apoiar a reconstrução das escolas públicas em ruínas, desde que a comunidade apresente um título de propriedade individual do terreno da escola. Além de violar a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, essa pressão também induz a divisão dentro da comunidade. Embora as comunidades compreendam a importância de sempre afirmar sua propriedade comunal – tão importante para sua sobrevivência como povos indígenas com uma cultura diferenciada – a profunda carência de boa infraestrutura escolar e de saúde leva alguns de seus membros a aceitar esse tipo de barganha. (5)
Mas não é só a tendência a promover títulos de propriedade individuais que é problemática. Muitos programas relacionados à floresta, como o REDD+, anunciam aos quatro ventos que usam Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI). No entanto, o que o WRM aprendeu com as comunidades que convivem com projetos de REDD+ é que o CLPI raramente acontece (6). Em muitos casos, as comunidades não são plenamente informadas sobre o contexto das compensações de carbono e de como os créditos gerados em suas florestas permitirão a empresas ou governos poluir e destruir territórios em outros lugares, além do clima globalmente.
O papel do CLPI no debate sobre o REDD+ aponta para outra armadilha no discurso dos “direitos”: a promoção constante do CLPI para incluí-lo no maior número de documentos e diretrizes possível, ou como parte de salvo-condutos no âmbito de políticas, investimentos privados, esquemas de certificação, etc. Mas o que acontece quando o CLPI é inserido como uma exigência em iniciativas que constituem, elas próprias, uma violação aos “direitos” tradicionais ou aos direitos da Mãe Terra? Sua aplicação no REDD+ é uma indicação da resposta: na prática, o CLPI não é mais do que um simples processo burocrático que se revelou incapaz de garantir os direitos dos povos das florestas e tendeu a beneficiar aqueles que promovem a apropriação de terras dos territórios das comunidades.
Os programas de REDD+, os esquemas de certificação, as iniciativas de “reflorestamento/restauração” (isto é, principalmente a expansão das plantações industriais de monoculturas), parques de conservação, esquemas de compensação de biodiversidade, agrocombustíveis, sumidouros de carbono, etc. são políticas, iniciativas ou projetos implementados, em teoria, para “melhorar” a situação das florestas e conter o desmatamento. Mas quais direitos – e de quem – estão sendo exercidos e/ou prevalecem nesses programas, políticas e iniciativas? Quem se beneficia realmente?
Na contramão do regime neoliberal de direitos de propriedade, muitas comunidades continuam lutando contra a destruição de seus territórios, enquanto insistem em manter e alimentar suas diversas formas de se organizar e reivindicar seus territórios, terras, cultura, conhecimentos e meios de vida e subsistência. Um assentamento no estado do Paraná, no Brasil, é um exemplo disso.
Durante a árdua luta da comunidade contra as pressões de fazendeiros e de uma ONG que promovia um projeto de carbono florestal, vários crimes ambientais cometidos pelo fazendeiro foram denunciados às autoridades, mas completamente ignorados. Os direitos territoriais da comunidade eram violados continuamente pelo fazendeiro e pelo projeto de carbono florestal. No entanto, a unidade e a mobilização das pessoas prevaleceram. Com o apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), elas ocuparam a terra em 2003 com um acampamento e organizaram coletivamente o uso do território comum. Foram estabelecidas diferentes áreas para uso coletivo e individual, pensando no bem-estar comunitário acima de tudo. Hoje, esse acampamento recebeu o prêmio Juliana Santilli por ter conseguido recuperar a floresta local ao mesmo tempo em que produzia alimentos sem uso de agrotóxicos. Veja mais informações no Alerta de Ação deste Boletim.
Aproveite a leitura!
(1) GRAIN newsletter on rights, 2007 https://www.grain.org/es/article/entries/628-what-s-wrong-with-rights
(2) The Munden Project, The Financial Risks of Insecure Land Tenure: An Investment View, dezembro de 2012,
http://rightsandresources.org/wp-content/uploads/2014/01/doc_5715.pdf
(3) Roots of inequity: How the implementation of REDD+ reinforces past injustices
(4) Rights and Resources. In Indonesia, land allocation policies and practices favour corporations over communities, outubro de 2017,
(5) OFRANEH, Insólita presión del Ministerio de Educación para desmembrar títulos comunitarios Garifunas, agosto de 2017,
(6) Veja mais informações sobre o REDD+: http://wrm.org.uy/browse-by-subject/mercantilization-of-nature/redd/uy/browse-by-subject/mercantilization-of-nature/redd/