Historicamente, a exploração ilegal para obter madeiras economicamente valiosas tem sido uma das atividades mais impactantes para as florestas no mundo inteiro. Essa exploração tem facilitado a destruição e o desaparecimento de florestas em muitas regiões, e os povos que dependem delas são afetados não só pela destruição, mas também pela violência e a corrupção que essa exploração envolve. O modelo da concessão florestal tem sido propagado como uma solução. Seria o “caminho das pedras” rumo a uma suposta “sustentabilidade” da atividade. A floresta se regeneraria e o modelo beneficiaria as comunidades locais. Mas a experiência com o modelo mostra que ele tem sido incapaz de cumprir suas promessas. Tampouco as muitas reformas e revisões do setor florestal e da política de concessões em vários países conseguiram resolver os problemas, apesar de instituições como o Banco Mundial terem gastado milhões de dólares com isso – motivo suficiente para se fazer a seguinte pergunta: por que o modelo de concessão florestal não resolve os problemas estruturais do corte e da extração de madeira?
O modelo de concessão florestal mantém a forma centralizada e a política formulada de cima para baixo que decidem sobre o uso da floresta. Ele é promovido pelas mesmas instituições internacionais, como o Banco Mundial, que já promoveram o fracassado “Plano de Ação para a Floresta Tropical”, lançado 30 anos atrás para combater o desmatamento. Na maioria das vezes, os recursos vêm de governos estrangeiros, de países onde as empresas com interesses no setor madeireiro têm sua sede principal, além dos governos dos países que exploram madeira. O modelo de concessão florestal mantém o discurso de que explorar a madeira dessa forma seria necessário para “desenvolver” o país, mas não considera, ao conceder áreas de florestas a empresas madeireiras, as vozes dos povos e populações que dependem das florestas, e por isso eles sofrem os terríveis impactos dessa atividade. Muitas vezes, as concessões se sobrepõem aos direitos legítimos dos povos, aos territórios que ocupam e às florestas que usam.
Embora prometa redistribuir os recursos da venda de madeiras tropicais economicamente valiosas, o modelo de concessão florestal incentiva a concentração de terras. Empresas madeireiras, através de concessões, ganham o controle sobre grandes áreas de florestas por períodos longos, de até décadas. Elas podem ser donas de até milhões de hectares de terras, aumentando com isso seu poder político e econômico, bem ao contrário de um processo justo de redistribuição de riquezas e benefícios. Além disso, os governos dos países com florestas, ao lhes proporcionar as concessões, também ajudam as empresas a “proteger” as concessões e as atividades industriais associadas, geralmente trazendo mais violência para as populações locais.
O modelo de concessão florestal deveria garantir uma suposta legalidade ao corte de madeira, com o Estado ordenando a atividade através dos seus órgãos de licenciamento e fiscalização. No entanto, continuam sendo feitas muitas denúncias de práticas ilícitas, criminosas, até mesmo o financiamento de guerras, como relatou recentemente a ONGGlobal Witness em relação à República Centro-Africana (1). Uma primeira razão para que um processo de autorização e controle sério e responsável por parte do Estado não ocorra é a tendência generalizada de flexibilização da legislação ambiental, uma das medidas que caracterizam as políticas neoliberais que tendem a minar, neste caso, a capacidade potencial do Estado de fiscalizar e embargar grandes projetos impactantes. Além disso, cortar e vender madeira tropical de alto valor comercial é uma atividade relativamente simples: o “produto” já está “pronto” para ser levado para fora da floresta, o que também incentiva outras concessões (para plantações, mineração, etc.) a ficarem de olho na madeira. Até porque se trata de uma atividade altamente lucrativa. São fatores de contexto que explicam grande parte das denúncias recorrentes de que atores com o poder de autorizar e/ou fiscalizar a concessão também buscam obter parte dos altos lucros da atividade.
Outro grupo beneficiário do modelo são as empresas que garantem a suposta “sustentabilidade” do negócio, concedendo selos verdes às empresas, como o do FSC (Conselho de Manejo Florestal). O fato de as certificadoras que trabalham para esses “selos verdes” serem pagas pelas próprias empresas madeireiras coloca em cheque sua isenção no processo de certificação. Conclui-se, portanto, que com a introdução do modelo de concessão florestal, o setor madeireiro se adaptou às “novas exigências” impostas, mas isso não resultou na erradicação de práticas ilícitas, criminosas e imorais da atividade. E, à medida que o Estado dificulta ainda mais a extração de madeira em escala industrial, a própria indústria busca novamente se “adaptar”, conforme mostram as denúncias em países onde o setor se apropriou de licenças destinadas ao corte de madeira não empresarial, em menor escala. (2)
Mesmo com o modelo de concessão, o setor continua mantendo uma das suas características principais: ser uma atividade de caráter (neo)colonial. No passado do Brasil colônia, por exemplo, a madeira de pau-brasil servia para ornamentar igrejas e palácios na colônia, mas, sobretudo, na “pátria mãe”. Com o modelo de concessão de hoje, a madeira valiosa obtida, sem ser mais o pau-brasil já quase extinto, destina-se ao consumo interno em centros urbanos e, sobretudo, à exportação, para abastecer as “demandas” de elites dos centros urbanos de consumo. Certamente, não é qualquer um que pode comprar produtos feitos de madeiras tropicais de alto valor comercial, por exemplo, móveis ou acabamentos em madeira em determinados produtos, como carros de luxo. Enquanto isso, pequenas serrarias locais nas regiões, que atendem a demandas da população local, às vezes não encontram madeira.
O modelo de concessão florestal também deveria garantir a conservação da floresta, seguindo um “plano de manejo” que garanta uma regeneração, de tal forma que o corte e a extração de madeira possam continuar futuramente. Mas é o contrário que acontece. Cada vez mais, estudos científicos (3) vêm dando força às experiências e denúncias de comunidades que dependem da floresta e vivem em áreas de concessão, as quais alertam que a floresta continua sendo degradada e destruída, mesmo com o chamado “corte seletivo”, apenas de forma mais lenta. Técnicas de corte de madeira supostamente mais “sustentáveis”, como o corte de “baixo impacto” ou o “manejo comunitário”, de fato conseguem reduzir os impactos, mas não os evitam. Continuam sendo planejadas de cima para baixo e costumam causar outros problemas na comunidade, como a divisão entre aqueles que são a favor do “manejo comunitário” e outros, que continuam querendo manter um modo de vida baseado em produtos não madeireiros e outras práticas, e que cortam madeira apenas para uso próprio. Mas mesmo os que entram no negócio do “manejo comunitário” costumam ser muito pouco beneficiados em comparação com os donos das empresas madeireiras. (4)
Enquanto o modelo de concessão florestal deveria garantir melhorias na vida das comunidades dentro da área de concessão, é necessário observar, antes de qualquer coisa, que nunca é dada à comunidade a opção de não concordar com a concessão. Quando chega à comunidade, a empresa já ganhou a concessão e os povos indígenas e outras populações que dependem da floresta não são envolvidos e não têm influência no nível onde ocorre o processo decisório. Portanto, o princípio do consentimento prévio, livre e informado não combina nem de longe com o modelo de concessão.
Quando chega à comunidade, a empresa costuma fazer algum tipo de acordo, chamado em alguns países de “contrato social”, assinado com as comunidades. No entanto, a prática mostra que empresas madeireiras não honram, ou honram muito pouco, os compromissos que constam do contrato. (5) Há relatos de criminalização daquelas comunidades que ousam reclamar quando o contrato é desrespeitado pela empresa. Além do mais, nos poucos casos em que as empresas executam algum programa comunitário nas áreas de saúde, educação, etc., isso não faz parte da atividade-fim de uma empresa madeireira, e não é o modelo de concessão florestal que muda esse fato. Estamos falando de atividades que deveriam ser assumidas pelo Estado. Mas isso já poderia começar a mudar se os financiamentos milionários que são hoje repassados para incentivar o setor florestal melhorassem a capacidade dos Estados para beneficiar diretamente a população do país, inclusive a população que vive na floresta. Não há justificativa para transferir e privatizar essas obrigações para uma empresa madeireira que, segundo seu estatuto, se interessa principalmente em lucrar com o negócio de madeira.
Por essas razões, este boletim tem como objetivo refletir sobre o modelo de concessão florestal, começando com um artigo introdutório que procura explorar o conceito onde se origina a ideia desse modelo e seus impactos ao longo dos anos, principalmente na África. Os artigos sobre Camarões e Camboja contam histórias de comunidades que tiveram que lidar com empresas que receberam dos governos desses países concessões sobre as áreas e florestas das quais as comunidades dependiam; só que as comunidades se articularam e tiveram êxito nas suas lutas contra as empresas e as concessões. Um artigo sobre o Brasil não poderia faltar, porque o governo daquele país, que introduziu o modelo de concessão florestal há relativamente pouco tempo, prometeu não repetir os erros de outros países, mas o que ocorre, por exemplo, no território do povo indígena mundukuru, na Amazônia, desmente essa afirmação. Por último, o artigo sobre a Índia mostra como o modelo de concessão vem sendo promovido de mãos dadas com um programa de florestamento – plantio de árvores – como uma compensação para a destruição prevista com o aumento das áreas dadas em concessão pelo governo. Essas plantações de árvores – e sua capacidade de absorver carbono e, por isso, a possibilidade de gerar “créditos de carbono” – também mostram um vínculo direto do modelo de concessões e a destruição que ele causa com o fenômeno da financeirização das florestas e territórios.
A experiência com o modelo de concessão florestal mostra que é pura ingenuidade achar que as empresas madeireiras possam cumprir o papel e milhares de comunidades que dependem há muitas gerações da floresta: ser suas guardiãs. Se os que promovem o modelo de concessão florestal realmente quisessem ouvir e aprender com a experiência dessas comunidades para fundamentar suas decisões, a conclusão seria parar imediatamente o corte de madeira para fins industriais, ao mesmo tempo em que atuariam para garantir que as comunidades que dependem das florestas pudessem ser as guardiãs do seu território e, com isso, garantir a conservação das florestas.
- https://www.globalwitness.org/reports/bloodtimber/
- https://www.globalwitness.org/archive/africas-logging-permit-crisis-puts-eu-
risk-laundering-illegal-timber-imports/ - http://news.mongabay.com/2015/02/selective-logging-causes-long-term-changes-to-forest-structure/
- http://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao1/brasil-vozes-de-
comunidades-no-acre-alertam-sobre-as-violacoes-envolvidas-no-manejo
-florestal-sustentavel-comunitario/ - Veja relatos de comunidades na República Democrática de Congo; veja também nos recomendados: qxn5jfgED1w">