A cooperativa de Produtores Independentes Piray (PIP), em Misiones, na Argentina, foi formada em 2005 para frear o avanço da monocultura de pinus e recuperar a terra, a soberania alimentar, a saúde e uma vida digna. A resistência constante e a união conquistaram algo raramente visto: a expropriação de terras da multinacional de plantações industriais Arauco (antiga Alto Paraná). Depois de 18 anos de luta, ainda há muito a ser feito: as associadas e os associados da PIP continuam unidas e trabalhando, mantendo a busca pela justiça social no centro de sua atuação.
A resistência contra as monoculturas industriais em Puerto Piray (1)
A Alto Paraná S. A. (APSA) é a mais importante empresa de plantações da Argentina e uma das maiores da América Latina. Desde 1996, pertence ao grupo chileno Celulosa Arauco, o segundo maior produtor de celulose do mundo. Desde a sua criação, a Arauco recebeu inúmeros benefícios fiscais que estimularam sua expansão contínua.
A empresa possui 264 mil hectares de terras na Argentina, dos quais mais de 131 mil estão plantados com monoculturas de árvores. Na província de Misiones, a transnacional administra uma fábrica de celulose localizada em Puerto Esperanza, dois viveiros, uma planta de remanufatura, uma fábrica de tábuas de média densidade (MDF) e duas serrarias, incluindo a maior do país, com sede em Puerto Piray. Todos os dias, a chaminé dessa serraria libera formaldeído, um produto tóxico que os moradores locais descrevem como “substância com cheiro de ovo podre”.
Atualmente, a Arauco detém quase 12% da área total de Misiones. Apenas no município de Puerto Piray, a empresa possui 63% das terras. Segundo a agência de notícias Tierra Viva, da Argentina, estima-se que cada hectare plantado consuma três litros de agrotóxicos por ano, o que significaria a empresa derramar mais de 70 mil litros de produtos químicos em Piray, todos os anos. Os efeitos na saúde da população são muitos: câncer, infecções respiratórias e de pele, malformações, entre outros males. Além desse grave impacto, a Arauco tomou as terras de camponeses e indígenas, destruiu seus meios de subsistência e a biodiversidade, contaminou as fontes de água e desalojou os moradores.
No ano 2000, em um contexto de profunda crise econômica e social na Argentina, a falta de terra e trabalho levou as famílias de Piray a se organizarem. Em 2003, já haviam sido formados quatro grupos de base, com oito a dez famílias cada. Todos eram unidos por algum projeto coletivo: produção de mel e cana-de-açúcar, criação de galinhas ou embalagem de geleias. Dois anos depois, em 2005, grupos dos bairros Unión, Santa Teresa e Kilómetro 18 formaram a organização Produtores Independentes de Piray (PIP), que hoje faz parte da União dos Trabalhadores da Terra (UTT), reunindo organizações que lutam em todo o país.
Desde o início, a principal luta da PIP foi pela terra. Por isso, tiveram que enfrentar a Arauco, que estava à frente da concentração de terras em Misiones. As plantações de pinus da multinacional não só invadiram o território e cercaram as famílias, como também causaram prejuízos à saúde devido ao uso de agrotóxicos.
Em 2013, depois de muitas marchas, protestos, bloqueios e campanhas em diferentes níveis, a Câmara dos Deputados da Província de Misiones aprovou uma lei que declarou 600 hectares de terras pertencentes à empresa Arauco em Piray como sendo de utilidade pública e passíveis de compra e desapropriação. A entrega dessas terras foi programada em etapas, respeitando os turnos de corte do pinus que a empresa havia estabelecido. O primeiro lote de 166 hectares, previsto para 2013, só foi entregue em meados de 2017 e titulado definitivamente apenas em 2021.
Assim, as famílias da PIP começaram a plantar milho, feijão, batata-doce, mandioca, melancia, melão, repolho e dezenas de outras culturas. Cada cooperada ou cooperado recebeu um hectare de terra sob a condição de trabalhar de forma agroecológica e comunitária. Outros 45 hectares são usados em conjunto para plantações anuais. E há terras que ainda não são cultiváveis porque estão degradadas e contaminadas, e passam por processo de recuperação.
O forte compromisso com a alimentação saudável fez com que, nos primeiros meses da pandemia de Covid-19, a PIP colhesse e ensacasse mais de 30 toneladas de mandioca e batata-doce, que foram enviadas para Buenos Aires e distribuídas na rede de refeitórios da UTT para aliviar a situação daqueles que mais sofriam com a emergência sanitária. Ao mesmo tempo, em Piray, foram preparadas sacolas sob o lema “a PIP te alimenta de porta em porta”, para oferecer frutas e verduras à vontade. Quem não podia pagar levava as sacolas mesmo assim.
Mas a luta continua. Até agora, eles não receberam os dois terços da terra que lhes foram prometidos. A Arauco já deveria ter feito a entrega efetiva de um segundo lote de terras, com mais 107 hectares. Isso fez com que os camponeses saíssem novamente a organizar protestos, marchas e bloqueios de estradas para dar visibilidade a sua justa reivindicação.
O Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM) conversou com Miriam Samudio, uma das referências da grande família PIP, para refletir sobre o processo de luta e as lições aprendidas.
WRM: Antes da luta pela desapropriação de terras no Alto Paraná (Arauco), vocês tiveram outras lutas ou ações coletivas? Conheciam outras experiências?
Miriam: Antes da luta pela terra, como organização, como moradores, nós estávamos organizados em comissões de bairro. Começamos a lutar pelos direitos da comunidade. Juntamos os três bairros, montamos a Comissão Integradora, que era aberta às reivindicações de todos os moradores. Lutamos pela reparação da estrada, por iluminação, por água potável. Vimos a necessidade de ter CAPS [Centros de Atenção Primária à Saúde], salas de pronto-socorro. Em outras palavras, foram sendo conquistadas algumas coisas básicas para a nossa comunidade, e fizemos isso juntos, como Comissão de Moradores.
Foi aí que percebemos que, de forma organizada, poderíamos conquistar muito mais, percebemos que a questão da saúde exigia que fizéssemos algo todos juntos, e que esse algo era fazer com que que parassem de jogar agrotóxicos na região e que os pinus fossem retirados de trás das nossas casas. Tudo isso ajudou para que, depois de alguns anos, também como moradores, conseguíssemos organizar e montar uma organização independente como é a PIP, Produtores Independentes de Piray.
Ficamos muito animados com a ocupação que ocorreu, o assentamento e a colonização em San Pedro (a 100 km de Piray). Com a garra que essa organização tinha, eles lutaram juntos pela terra e a conquistaram. Nós apoiamos suas últimas lutas e isso nos estimulou totalmente a lutar pelo que é nosso. Também visitamos um grupo de 300 famílias no Paraguai, que há algum tempo havia entrado em uma grande plantação de soja. Eles ocuparam 5 mil hectares. Não foi fácil, fizeram várias tentativas até conseguir permanecer e ficar ali, embora continuassem em conflito. Conhecer essa luta foi muito motivador.
WRM: Em conversas anteriores com a PIP, nos contaram que foram as mulheres (que ficavam trabalhando em casa enquanto os homens procuravam trabalho) que começaram a se conscientizar sobre a importância de ter terra. Como isso aconteceu?
Miriam: Entre 1999 e 2000, que foi o período mais difícil devido a uma crise que atravessava não só o país, mas também as diversas províncias, nós mães, tivemos que ficar em casa e os homens – pais, irmãos – iam trabalhar longe. Foi nessa situação que nós, mulheres, nos encontrávamos nas reuniões da escola, na sala de primeiros socorros, e todas contavam a mesma coisa. A preocupação era que as crianças tinham feridas, problemas respiratórios, conjuntivite, diarreia. Todas começaram a ter os mesmos sintomas e foi aí que nós, mulheres, começamos a perceber que isso acontecia justamente na época da floração do pinus, que o pólen liberado nessa época prejudicava não só o meio ambiente, mas também a saúde de nossas crianças e dos idosos. Foi assim que nós percebemos que algo estava acontecendo e que tínhamos que fazer alguma coisa.
Pensávamos que seria fácil. No início, é claro que não se visualiza todo o problema. Exigimos do município a questão da saúde, que os pinus fossem levados para mais longe, que parassem de jogar agrotóxicos, e com o tempo, começamos a perceber que era uma luta de grandes proporções. E foi aí que tudo começou. Sempre falando para sermos valentes, corajosas, continuar resistindo, sentindo que é uma batalha que não vai acabar tão cedo, ir procurando estratégias para continuar avançando. E, muitas vezes, temos que parar se for necessário, e depois voltar, sempre com mais força, com mais entusiasmo.
Eu entendo que o papel da mulher nessa luta pela terra foi muito importante, foi essencial. Porque éramos nós que estávamos no dia a dia, vendo qual comida íamos colocar na mesa e oferecer aos nossos filhos. Então foi como se a gente assumisse aquela luta pela terra, entendendo que naquela terra nós podíamos produzir alimentos e, como primeiro passo, resolver a questão do consumo próprio na família.
Entendo também que as mulheres, apesar de todos os inconvenientes que temos no dia a dia, também são capazes de sonhar, de acreditar que o que parecia tão impossível poderia ser possível se todos nos organizássemos e lutássemos juntos, se moradores, moradoras e toda a comunidade se levantassem. E fomos nós, mulheres, que começamos a falar sobre isso e conseguimos contagiar e transmitir para outras famílias, e incentivá-las para que se animassem. Essa convicção que nós, mulheres, tivemos no início da nossa organização nessa luta pela terra foi muito intensa, com muita esperança, com muita convicção, muito compromisso por parte das mulheres, e acho que isso não muda. Estamos sempre na frente, sempre animando. Embora hoje o trabalho seja mútuo, com compromisso das duas partes, homens e mulheres, as mulheres estão sempre firmes na resistência, como sempre, como começamos.
Gerenciar o equilíbrio entre cuidar da casa, dos filhos e da resistência, para nós é uma luta diária. Nós sempre dizemos: como vocês estão? Como você está? E sempre na luta. Sempre preparadas, sempre nos organizando. Apesar de tudo o que fazemos, também temos tempo para nós. Além de cuidar da casa, do trabalho cooperativo, de organizar as lutas, a gente está sempre buscando o equilíbrio, não é? Tratando de cada parte como deve ser, sem negligenciar nenhuma.
WRM: Como são tomadas as decisões na PIP hoje? Quais foram as principais mudanças na organização, do início até agora?
Miriam: As decisões sempre foram tomadas em conjunto. São realizadas assembleias, reuniões de delegados, vão sendo feitas consultas entre todas e todos, e depois se decide em assembleia geral. Então, nos acertamos, acertamos todos. E se erramos, bom, aí erramos todos juntos.
As mudanças são sempre para melhor, no sentido de ir avaliando o que pode ser melhorado e, conforme se vai examinando e mudando, vai melhorando. Mas ao tomar decisões, adotamos essa modalidade, para que todos possam ter voz, para que todos tenham oportunidade de fazer propostas e possamos ir nos corrigindo para não errar. E se cometemos um erro, voltar e refletir de forma diferente.
WRM: Quais foram os principais obstáculos que atrasaram ou enfraqueceram a luta? Como vocês se livraram deles?
Miriam: O principal obstáculo que surgiu no início foi que a própria comunidade, as próprias pessoas que estavam dentro da organização, tinham medo da empresa, porque é uma multinacional. Alguns até a viam com bons olhos, como se dissessem “mas eles nos dão trabalho”, sem olhar para o que está por trás daquele trabalho, tudo que eles estavam destruindo. Então foi preciso convencer essas pessoas, semear conscientização entre nossos próprios companheiros e depois na comunidade. Porque a comunidade muitas vezes nos via, no início, como quem quer fazer confusão, os bagunceiros, os que protestavam. Como se não entendessem que a luta não era só pela nossa organização, mas pela própria comunidade, para que ela não desapareça, e para que as próprias pessoas não acabassem desaparecendo do lugar. Isso foi muito difícil no começo.
Outro obstáculo foi que tivemos que nos preparar, porque quem diria que enfrentaríamos uma multinacional e que teríamos que conhecer alguns direitos, alguns artigos da Constituição? Começamos a estudar algumas coisas, a nos capacitar. Com o tempo, aprendemos muitas coisas. Mas foi preciso passar por esse processo primeiro, o que também foi para o bem, porque crescemos nesse aprendizado e nessa luta, que hoje nos fortalece muito.
Outro obstáculo foi o desgaste devido aos longos tempos do processo. Foram muitos anos, 14 anos de luta ininterrupta implicam muito desgaste, e foi assim que, às vezes éramos menos, e depois nos recuperávamos, mas sempre lutando pelos interesses de todas as famílias. Muitas vezes tivemos que tirar forças de onde não havia.
Então, sobre os obstáculos hoje, e acho que não só hoje, mas ao longo do processo: como a empresa vê que estamos nos organizando para continuar lutando pela parte da terra que nos pertence, o que ela sempre faz é se meter com as pessoas dentro da organização para nos enfraquecer. Eles começam a sair a cada quatro anos, na hora da votação, para buscar votos, e é sempre uma dor de cabeça. Parece que não se perde o mau hábito de um político chegar e convencer, não sei como, alguns colegas a seguirem os interesses da empresa, e eles começam a dividir ali, até acabar a época das eleições, e aí tudo volta à normalidade. Por isso, um dos obstáculos que, por incrível que pareça, ainda hoje ocorre é que cada vez que há eleições, há divergências entre opiniões e ações que queremos realizar. E isso se nota, se sente muito. E depois que as eleições acabam, tudo se acalma e volta ao normal.
WRM: Houve um processo de aprendizagem consciente ao longo dos anos?
Miriam: Eu acho que durante todo este ano, o processo de aprendizagem, de conscientização de cada família, cada companheira, cada companheiro e cada delegado, é muito mais forte do que quando começamos. Quando se reclama alguma coisa, quando se propõe alguma estratégia de luta, quando se levanta alguma questão ou preocupação, nota-se que os camaradas têm muita consciência na hora de se envolver, de se comprometer, sobre como defender a vida, como defender os nossos territórios e sobretudo, como acompanhar ou apoiar outras organizações, outras comunidades que estão sendo ameaçadas de despejo.
Esse forte compromisso da PIP de continuar acompanhando e demonstrando solidariedade é muito visível. Nas pessoas que vão aderindo, percebe-se em pouco tempo quando elas propõem, quando sugerem pautas, o que acontece com muito mais força.
WRM: Na PIP, não só decidiram recuperar a terra e usá-la para a produção de alimentos, mas também formaram a Escola de Adultos. Como e por que a organizaram?
Miriam: Sim, dentro da PIP, além da resistência e da luta pela terra, da resistência no território, também vamos buscando opções para conquistarmos os nossos direitos. Uma delas é ter uma escola de adultos, onde fizemos um longo e persistente esforço para que se aprovasse um núcleo de estudos, o SIPTEP, que é um sistema de educação integral provincial, e conseguimos que a nossa sede fosse um núcleo, e está aberto à toda a comunidade.
Há muitos jovens que não terminaram a escola, o ensino médio, muitos idosos que estão fazendo o ensino fundamental. E para nós é um orgulho poder dizer que não pensamos apenas em nós, mas também na comunidade.
Outra coisa que também continuamos fazendo como PIP é tentar ser protagonistas dentro de nossa comunidade diante das reivindicações, dos direitos que merecemos. Continuamos sempre lutando pela saúde, pelas estradas, pela água. Por exemplo, também está avançando um plano para a criação de um Banco de Sementes da PIP, para preservar e revitalizar a biodiversidade local. Tentamos ocupar esse papel muitas vezes para ser a voz da nossa comunidade, e isso também nos fortalece muito.
WRM: Quais seriam as coisas mais importantes a ter em mente na auto-organização para iniciar e manter uma luta? Que coisas devem ser evitadas ou cuidadas no processo?
Miriam: Sempre que temos oportunidade de compartilhar palestras ou encontros com algumas comunidades, com alguns grupos que também estão lutando pela terra, tentamos dividir a nossa experiência com eles. Principalmente lhes dizer que, se houver convicção, se eles realmente acreditarem que têm direito, se realmente assumirem essa luta, com tudo, com o coração, com a consciência, com a alma, existe a possibilidade de montar um bom grupo, e que eles possam ir conquistando mais famílias e engajar não só as pessoas do grupo, mas também a comunidade.
Um dos aspectos com o qual seria bom ter muito cuidado é não resolver as coisas individualmente. O perigo está sempre aí. Às vezes, para acelerar as coisas ou querer responder rapidamente, as pessoas cometem erros. Aconteceu conosco, alguns companheiros passaram por isso. Portanto, sempre tente tomar decisões em conjunto. E só depois de haver consenso, avançar. Não importa que se percam mais alguns dias, mais algumas semanas; o importante é que a maioria esteja de acordo, porque é a única maneira que eles vão assumir esse compromisso, essa luta, e eles vão pressionar até atingir o objetivo.
WRM: Vocês consideram importante o apoio ou a solidariedade de fora? Que tipo de solidariedade vocês receberam que consideram valiosa ou útil?
Miriam: O apoio de pessoas de fora é sempre importante, seja de instituições, da própria sociedade, dos meios de comunicação, de autoridades, de diferentes grupos. Porque é assim, temos que envolver a todos, temos que colocar a questão na mesa e envolver a todos que fazem parte da nossa sociedade.
Eu entendo que conosco levou tempo. Nós tentamos continuar resistindo, e aos poucos fomos conquistando todos aqueles atores que são importantes e que valem muito na hora de opinar, decidir, acompanhar, dar visibilidade às nossas lutas.
É sempre muito importante buscar aliados, principalmente aliados que possam dar visibilidade a tudo o que está sendo feito, tudo o que está sendo reivindicado, e que o assunto seja discutido em diferentes espaços. Isso é muito importante. Isso nos ajudou muito.
(1) Para mais informações sobre a luta da PIP, veja os seguintes links (em espanhol):
Tierra Viva, Despiertan tierras dormidas, Argentina, 2020.
Tierra Viva, Productores Independientes de Piray: “Donde había solo tierra dura, ahora crecen alimentos sanos”, Argentina, 2021,
Alianza Biodiversidad, Nélida Almeida: “La agroecología es traer al corazón esos valores que están en la comunidad”, 2022