Reflexões sobre mudanças climáticas, direitos dos povos indígenas e o direito ao Consentimento Livre, Prévio e Informado

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Durante séculos, os colonialistas e os imperialistas ocidentais têm saqueado e tomado impunemente as terras, os territórios e os recursos naturais dos Povos Indígenas (e do resto do mundo). Essa impunidade inclui o saque das próprias pessoas por meio do trabalho forçado e da escravidão. Os Estados sucessores, ao conquistarem a independência, deram continuidade à prática, com a mesma impunidade, sobre os Povos Indígenas que vivem dentro das suas fronteiras.

Diante da realidade de que os Estados neocolonialistas não atendiam a suas reivindicações, os Povos Indígenas recorreram à comunidade internacional para obter ajuda, inicialmente à Liga das Nações, onde foram ignorados. Mais tarde, em 1974, o Movimento Indígena Americano (AIM, na sigla em inglês) criou um escritório na sede da ONU em Nova York. E quando o Tribunal Internacional e a Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova York se mostraram igualmente indiferentes, o AIM foi para Genebra e depois à Comissão de Direitos Humanos.

Lá, a Subcomissão de Prevenção à Discriminação e Proteção das Minorias finalmente lhes deu ouvidos. Após duas conferências mundiais sobre populações indígenas, a Subcomissão criou o Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas em 1982, que começou a examinar anualmente a condição e a situação dos Povos Indígenas e a elaborar a Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas. Nós abordamos o colonialismo em todas as suas formas, como sujeitos de direitos humanos, porque era uma importante opção aberta a nós naquela época e continua sendo. Mas preferiríamos uma resposta mais afirmativa e definitiva.

A arena dos direitos humanos mostrou-se receptiva e chamou uma atenção muito necessária à condição e à situação dos Povos Indígenas. De menos de dez representantes indígenas na primeira reunião do Grupo de Trabalho em 1982, a participação aumentou para milhares e criou uma rede global que gerou uma grande conscientização entre nós e no resto do mundo. Agora que conhecemos nossos direitos, eles são verdadeiramente nossos e justificam a nossa luta. Mas continua sendo uma luta.

Considerando-se a história milenar da humanidade, os direitos humanos são relativamente novos. Só a partir de 1946 a comunidade internacional adotou padrões de comportamento com relação ao tratamento justo e adequado de suas populações, que eram aplicáveis ​​a todos os Estados e governos. Dada a realidade contínua do genocídio, do racismo, da pobreza extrema, do tráfico de seres humanos, da megaextração megadestrutiva, da guerra perpétua, da prevalência da tortura, do status social inferior das mulheres em muitos países e muitos outros problemas, os direitos humanos internacionais, como as Convenções de Genebra, podem aspirar a ser mais do que ferramentas para alcançar a justiça e conter o poder arbitrário do Estado. Para os Povos Indígenas, dada a realidade de suas situações, o respeito e a observância aos direitos indígenas, em muitos aspectos não é apenas a ferramenta, mas também o fim desejado.

Os direitos humanos internacionais, como são descritos e definidos pela ONU, são uma construção ocidental. Essa construção ocidental baseia os direitos humanos na ideia de “dignidade e direitos iguais” para toda a humanidade em virtude de seu nascimento. Essa construção não reconhece direitos coletivos como sendo direitos humanos. Até hoje, a União Europeia, os Estados Unidos, o Reino Unido e outros Estados ocidentais lutam contra qualquer referência aos direitos indígenas como direitos humanos, até mesmo no nome dado ao Relator Especial sobre Direitos dos Povos Indígenas, em vez de Relator Especial sobre os “Direitos Humanos” dos povos indígenas. No entanto, eles reconhecem que os direitos coletivos são direitos, mas não são direitos humanos. É com essa construção ocidental que os Povos Indígenas tiveram que lidar ao buscarem maneiras para enfrentar o neocolonialismo.

Isso se reflete no nome do Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas. Durante décadas, fomos chamados de “populações” ou “pessoas”. E durante décadas, lutamos para que se incluísse o “s” a povo, porque a palavra e “povos”, no plural, internacionalmente implica direitos à Autodeterminação, a um território fixo e à soberania sobre os recursos naturais, entre outros importantes direitos políticos. Essa luta foi conquistada quando a Assembleia Geral aprovou a Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas.

O vocabulário dos direitos humanos usa palavras em um contexto ocidental e cabe a nós traduzi-las para conceitos indígenas. A palavra “desenvolvimento”, por exemplo, significa a exploração de terras e recursos naturais apenas para ganhos econômicos no sentido ocidental, muitas vezes independentemente do custo que essa atividade possa ter para o meio ambiente e o tecido das comunidades afetadas. Na visão indígena, “desenvolvimento” significa o uso econômico e material de terras, territórios e recursos naturais, mas coerente com nossas visões do mundo, vidas espirituais, culturas e tradições, mantendo um equilíbrio entre as necessidades da comunidade e as necessidades do meio ambiente. Nosso desenvolvimento se baseia em uma relação com a terra e o meio ambiente, e não apenas em sua exploração. O objetivo do desenvolvimento para nós não é a aquisição de bens materiais, e sim o bem viver, ou “Buen Vivir”, como é chamado pelos Povos Indígenas dos Andes. A palavra “direitos” não existe em muitas línguas indígenas, e é mais bem traduzida como “responsabilidades”.

O direito ao Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) é derivado do direito à autodeterminação, que abrange os direitos indígenas coletivos. Acreditamos que o respeito e a observância desse direito por parte dos Estados ajudará a curar a persistente doença de centenas de anos de opressão e exploração. A elaboração do direito dos Povos Indígenas à autodeterminação ocorreu no âmbito do direito e do conhecimento jurídico internacionais. O CLPI, como um direito indígena internacionalmente reconhecido, apareceu pela primeira vez na Convenção 107 (1957) da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Artigo 12, que proíbe os Estados-membros de remover os povos indígenas dos seus territórios ancestrais sem o seu livre consentimento. Posteriormente, a política assimilacionista da Convenção 107 da OIT foi universalmente rejeitada e a organização adotou a Convenção 169, sobre Povos Indígenas e Tribais (1989). Seu Artigo 6 exige consultas “conduzidas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento”, “cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”.

Além disso, a Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas (2007) foi negociada diretamente com representantes desses povos por 25 anos. Seis dos seus artigos exigem o Consentimento Livre, Prévio e Informado, incluindo o Artigo 32, que reconhece o direito dos próprios povos indígenas ao desenvolvimento e exige o CLPI “antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos...” Os povos indígenas lutaram contra o colonialismo e a opressão por 525 anos. A formulação do CLPI faz parte dessa luta. Antes de poder se apropriar de algo, agora eles precisam perguntar. E o mais importante: nós podemos dizer NÃO.

Porém, violações dos direitos humanos, incluindo as graves e massivas, ocorrem diariamente em todo o mundo. É como se o que acontecesse no Palácio das Nações em Genebra, na Suíça, a sede da ONU para direitos humanos internacionais, permanecesse em Genebra. Há o mundo como deveria ser e o mundo como realmente é.

Atualmente, o CLPI está firmemente estabelecido na ciência jurídica dos direitos humanos da ONU, que empresta credibilidade às justas demandas das comunidades em luta. Não é apenas um direito à participação. Ele é feito para ser aplicado. Mas são as comunidades indígenas que devem implementar seus direitos localmente. O CLPI é um direito nosso e cabe a nós torná-lo real em toda e qualquer de nossas comunidades.

Quando estávamos negociando o Projeto de Declaração, acreditávamos que o direito à Autodeterminação seria a principal batalha. Acontece que os Estados parecem satisfeitos com a autonomia dos Povos Indígenas onde suas terras foram demarcadas e tituladas. É o direito ao Consentimento Livre, Prévio e Informado, um aspecto da autodeterminação, que é o principal campo de batalha onde terras e territórios não foram reconhecidos como indígenas. De fato, alguns de nós acreditam que os Estados estão atrasando a demarcação e a titulação em todo o mundo para que o CLPI não se aplique aos seus planos de desenvolvimento.

Os elementos do CLPI são:
— “Livre” significa que não há coerção, intimidação ou manipulação na obtenção do consentimento.
—“Prévio” significa que o consentimento deve ser obtido antes de qualquer autorização ou início de atividades. Também exige o respeito pelas necessidades dos Povos Indígenas em termos de tempo e em seus próprios processos tradicionais internos de decisão.
—“Informado” significa que a informação fornecida é entendida e, quando necessário, na língua indígena apropriada; que a informação cobre toda a gama de atividades propostas, incluindo: natureza, tamanho, ritmo, reversibilidade e alcance de qualquer projeto ou atividade propostos; o propósito do projeto, bem como a sua duração; local e áreas afetadas; uma avaliação preliminar dos prováveis ​​impactos econômicos, sociais, culturais e ambientais, incluindo impactos negativos e riscos potenciais; o pessoal que provavelmente se envolverá na execução do projeto; e os procedimentos que o projeto pode implicar.
— A consulta com base na boa fé e a participação plena e efetiva dos Povos Indígenas diretamente afetados e seu uso do processo tradicional de decisão são componentes cruciais do processo de consentimento.
— O “consentimento” pode ser negado sem punição ou discriminação.

Algumas pessoas, muitas delas não indígenas, consideram o CLPI um “direito inócuo” que tem consequências perversas. O CLPI não é um “direito inócuo”. Na visão de muitos, não existe “direito inócuo”. Se assim fosse, o direito à vida, livre da tortura ou da fome, e toda a coleção de direitos humanos seriam direitos inócuos. Os resultados perversos do respeito e da observância a qualquer direito humano, incluindo o CLPI, devem-se à perversidade e a má fé por parte dos Estados que pretendem implementar direitos humanos com uma intenção corrupta e insidiosa de solapar os direitos e a dignidade humana para os seus próprios propósitos, geralmente econômicos e visando manter e/ou aumentar seu poder.

A corrupção do processo de consulta exigido pelo CLPI é uma resposta frequente dos Estados ao CLPI. Sob o pretexto de cumpri-lo, alguns estados têm “consultas” de um ou dois dias, não diretamente com os povos indígenas afetados, mas com outros povos indígenas, sindicatos, investidores e comunidades não indígenas, e uma série de agências e funcionários do Estado, todos na mesma sala, todos participando de uma consulta conjunta. Os povos indígenas e suas comunidades ficam em minoria e têm menos voz do que aqueles cujos interesses econômicos seriam servidos pelo projeto proposto.

Esses mesmos Estados ou outros chamam de “consultas” o que não são consultas, e sim sessões informativas sobre o que o Estado e seus clientes empresariais farão. Em muitas dessas “consultas”, não há oportunidade para a comunidade indígena mais afetada dar ou não seu consentimento. Em outros, o Estado cita apenas “amplo apoio da comunidade” ao projeto.

Pior ainda, através de suas agências estatais e organizações não governamentais impulsionadas por governos (GONGOs, na sigla em inglês), eles empregam pessoas indígenas para agitar dentro das comunidades, prometendo benefícios como emprego e titulação da terra, criando divisões e conflitos entre comunidades indígenas e dentro delas, rompendo seu tecido e depois anunciando de forma sádica que o projeto continuará na medida em que há “amplo apoio da comunidade” ao projeto e/ou ela “não consegue se decidir”.

Há muitos artifícios como esses que os Estados sabidamente usam para evitar as verdadeiras intenções e finalidade do CLPI. Esses e outros artifícios são conhecidos e praticados nas políticas para a mudança climática e na imposição de falsas soluções para a crise climática, como o mecanismo denominado Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+).

Na arena internacional, cabe aos Estados implementar (ou não) padrões de direitos humanos. O Conselho de Segurança, com exceção das circunstâncias mais excepcionais, não enviará um exército para forçar um Estado a cumprir suas obrigações em termos de direitos humanos. O descumprimento e o desrespeito aos direitos indígenas infelizmente não tem sido uma circunstância excepcional. Um grande artifício para evitar os direitos indígenas é simplesmente não reconhecer os povos indígenas como indígenas, e nos considerar “etnias” ou “minorias” segundo o sistema de leis deles. Isso evita a aplicação dos direitos indígenas, incluindo o Direito à Autodeterminação, o direito dos Povos Indígenas ao território e à soberania sobre terras e recursos naturais dentro de suas fronteiras. Internacionalmente, as minorias não possuem esses direitos de “Povos”.

Desde 2007, o programa REDD+ foi proposto e implementado pelas negociações climáticas da ONU. O programa ONU-REDD, em conjunto com o Fundo da Parceria de Carbono Florestal do Banco Mundial, tem sido um dos principais atores da promoção, da implementação e do financiamento do REDD+ nos países em desenvolvimento. O REDD+ anuncia discursos de envolvimento “informado e significativo” de todas as partes interessadas, incluindo comunidades indígenas e outras dependentes da floresta, bem como respeito aos direitos indígenas. Ele não promete o CLPI, apenas o “recomenda”.

No entanto, o propósito visível do REDD+ tem sido incluir nos mercados de carbono as propriedades de sequestro de carbono das florestas e árvores em pé, para compensar a poluição industrial. Isso resultou em mais e mais terras indígenas sendo visadas para esse objetivo. Principalmente através de financiamento da Noruega, as organizações de povos indígenas receberam milhões de dólares ostensivamente para a capacitação em REDD+ em territórios indígenas.

As comunidades são pressionadas a “participar” das atividades de mapeamento para promover a titulação em suas terras segundo coordenadas do REDD+. A lógica empregada é a de que, se a terra não foi demarcada e titulada, não é terra indígena e os direitos dos povos indígenas não se aplicam. A muitas comunidades é dada a possibilidade de escolher entre duas opções únicas e perversas:
1 – perder sua floresta e seus territórios e lidar com a ausência de políticas públicas que reconheçam os Povos Indígenas e/ou seus direitos; ou,
2 – projetos de manejo florestal, “concessões verdes” ou REDD+.

O problema do REDD + não é apenas que evita intencionalmente o FPIC, mas os artifícios empregados para evitar sua verdadeira implementação. Esses artifícios incluem a criação de áreas de conservação ou parques nacionais, com o título na mão dos Estados, negando os direitos dos habitantes indígenas ancestrais e permitindo que os Estados façam o que quiserem com sua “própria” terra.

Mesmo supondo que continue havendo consultas de boa fé que resultem em casos de consentimento, como a solução de disputas entre proprietários de créditos de carbono, ao Estado e aos povos indígenas já negaram o uso justo de suas florestas. Será que os Povos Indígenas poderão se livrar da interferência obrigatória por lei, mas imprevista ou indesejada, em seu modo de vida tradicional? Nesse contexto, quem é dono das árvores? O que acontece quando o mercado de carbono explode, como já aconteceu? Não se pode contar com os tribunais nacionais como árbitros para lidar de forma justa com os povos indígenas.

Conclusão

Não é o CLPI que é uma ferramenta para a tomada de terras e territórios indígenas, e sim a má fé, a corrupção e os interesses econômicos das elites econômicas dos Estados e clientes empresariais. É o mesmo velho colonialismo e suas antiquíssimas práticas imorais e enganosas que os povos indígenas têm enfrentado por 525 anos. É um vinho novo em garrafas velhas de ganância e corrupção e do racismo necessário para justificar sua impunidade e a desumanização dos Povos Indígenas.

O colonialismo continua dividindo os povos e as comunidades para atingir seus objetivos. Mas, apesar de muitas perdas, ele nunca prevalecerá. O jogo do poder político, econômico e militar colonialista e os interesses econômicos, os Estados e suas elites nunca foi justo para os povos indígenas. No entanto, continuamos a luta por mais de 525 anos.

De Standing Rock, Dakota do Norte, Estados Unidos, em nossa defesa da Água Sagrada contra o desenvolvimento e a infraestrutura de petróleo, ao Território Indígena Lenca em Honduras, em defesa de sua Água Sagrada e contra as mega-hidrelétricas, passando pelo Território Indígena Mapuche na Argentina e sua luta em defesa de sua Água Sagrada e contra o fraturamento para extração de combustíveis, em todo o mundo, os povos indígenas estão se apropriando de seu direito à autodeterminação e exigem o direito definitivo de dizer NÃO. Com suas demandas, eles contribuem diretamente para a luta contra o aquecimento global.

Convidamos a todos os povos de boa fé para se juntarem a nós na defesa da nossa Mãe Terra, da nossa Água Sagrada, do nosso meio ambiente, das nossas florestas e da nossa existência contínua como Povos.

Alberto Saldamando,
Indigenous Environmental Network - IEN (Rede Ambiental Indígena), http://www.ienearth.org/

* Veja o relatório recente de IEN, WECAN e Movement Right (disponível somente em inglês):
“Rights of Nature and Mother Earth, rights-based law for systemic change” en http://bit.ly/2B2XFvg