Resistência ao extrativismo de mulheres defensoras de territórios na América Latina

Imagem
Ph.: Cristina Chiquin

Na América Latina, as mulheres sempre fizeram parte das lutas históricas em defesa do território e do meio ambiente. Por meio de ações de mobilização e de práticas cotidianas, elas resistiram ao extrativismo e a todas as formas de violência contra si.

Na América Latina, as mulheres sempre fizeram parte das lutas históricas em defesa do território e do meio ambiente. Por meio de ações de mobilização e de práticas cotidianas, elas resistiram ao extrativismo de larga escala e a todas as formas de violência contra si. Além de estar à frente, literalmente “colocando seus corpos” para impedir a destruição de seus territórios, elas propuseram visões críticas sobre o caráter patriarcal e racista do extrativismo. A partir da afirmação feminista de que “o pessoal é político”, questionaram as práticas sexistas dentro dos movimentos sociais, transgrediram estereótipos e papéis de gênero, e criaram espaços autônomos baseados na solidariedade e no cuidado coletivo. A seguir, compartilharemos algumas reflexões sobre suas lutas, repassando brevemente o atual contexto do modelo extrativista na região e seus impactos específicos sobre a vida das mulheres.

O extrativismo industrial é um modelo econômico e político baseado na mercantilização e na exploração desenfreada da natureza, que vem se aprofundando desde os anos 1990 na América Latina. Esse modelo causa danos irreversíveis, poluindo o ar, o solo e as fontes de água, e gerando grandes perdas de biodiversidade. Além disso, agride os direitos humanos e coletivos das comunidades afetadas e destrói seus modos de vida e suas economias tradicionais, tornando-as dependentes de mercados externos.

O extrativismo de larga escala, em suas várias formas, opera por meio de saque e usurpação, baseado no racismo estrutural que se manifesta na tomada de territórios ancestrais, na negação das práticas culturais e dos modos de cuidar da natureza dos povos nativos, afrodescendentes e os chamados raizales.

Como funciona o extrativismo na América Latina?

Na América Latina e no Caribe, o caráter usurpador e violento do modelo extrativista fica claro em seus impactos negativos e nas diferentes estratégias usadas pelas empresas para se impor nos territórios, em conluio com os governos dos países onde a exploração acontece e, em muitas ocasiões, com seus próprios países de origem.

A cumplicidade entre empresas, Estados e, em muitos casos, grupos armados que operam à margem da lei e outros poderes nas sombras se expressa em diferentes níveis e etapas dos conflitos socioambientais: a) nas leis e políticas favoráveis à entrada de investimentos e empresas nos países, b) na violação do direito à consulta prévia, livre e informada e, em geral, à participação cidadã, que permite a instalação dos projetos apesar de haver oposição, c) na blindagem das instalações das empresas através da militarização dos territórios e da ação articulada com grupos armados e do crime organizado, e d) na atuação de juízes e procuradores que negam a responsabilidade das empresas, permitindo que impere a impunidade.

Atualmente, a América Latina continua sendo a região mais perigosa para defender o território: 60% dos assassinatos de pessoas que defendem a terra e o meio ambiente no mundo ocorreram naquela região. Os países com as cifras mais elevadas são Brasil, Colômbia, Honduras, Guatemala, Peru e Nicarágua, segundo o relatório mais recente da organização Global Witness. (2)

A criminalização é uma das principais estratégias de empresas e Estados para impedir a resistência contra os megaprojetos extrativistas. Ela ocorre através da estigmatização da dissidência e de sua difamação na mídia ou em discursos de autoridades públicas, da repressão aos protestos sociais e da judicialização ou de processos criminais contra defensores dos direitos humanos. Isso confirma os dois pesos e duas medidas usados pela justiça: enquanto as empresas gozam de segurança jurídica e blindagem para prevalecer nos territórios, quem luta para defender os territórios sofre perseguição e tem que enfrentar penas elevadas.

Como isso afeta especificamente a vida das mulheres?

O extrativismo se baseia na cultura patriarcal e a exacerba, afetando de maneira particular a vida das mulheres. Como argumentaram algumas teóricas feministas e defensoras da terra, existem paralelos culturais, históricos e simbólicos entre a exploração e o controle sobre os corpos das mulheres e a natureza. Em contextos de exploração de minérios e petróleo e de instalação de hidrelétricas, por exemplo, há uma “masculinização” dos territórios (3), na qual espaços comunitários e a vida cotidiana são reconfigurados em torno dos desejos e valores de uma masculinidade hegemônica.

As defensoras da terra e dos direitos das mulheres denunciam que as práticas de pilhagem e a poluição dos territórios se expressam simultaneamente ao recrudescimento da violência patriarcal contra mulheres e meninas e à exacerbação das desigualdades de gênero. Isso ocorre em todas as esferas das vidas delas e se expressa em: a) aumento da carga de trabalho de cuidado que recai sobre as mulheres, b) perda de autonomia econômica e soberania alimentar, c) aumento da violência psicológica, física, econômica, patrimonial e sexual nos contextos familiar e comunitário, d) efeitos sobre a saúde física, emocional e reprodutiva devido ao contato com o ar, o solo e a água poluída, e) discriminação por gênero e violação do direito à participação cidadã e em processos de consulta livre, prévia e informada (4), f) aumento da exploração sexual dos corpos de mulheres e meninas, e g) perda de identidade cultural e enfraquecimento de papéis comunitários e ancestrais das mulheres.

Violência contra as defensoras do território

A vulnerabilidade específica e os múltiplos ataques sofridos pelas defensoras dos territórios se somam à violência vivenciada historicamente pelas mulheres no marco de uma sociedade moldada por injustiças de gênero, raça e classe. Ao contrário de seus companheiros homens, as defensoras estão expostas a uma variedade maior de violências, principalmente a sexual. Além de enfrentar ataques de agentes empresariais e do Estado, as defensoras sofrem múltiplas violências cotidianamente, por parte de suas famílias e comunidades e, em muitas ocasiões, dentro de suas organizações e movimentos sociais mistos.

Além dos processos criminais, um dos ataques mais comuns que as defensoras enfrentam é a difamação, com campanhas de acusações e desprestígio, tanto em contextos comunitários quanto por meio de redes sociais. Lá elas são chamadas de “más mães”, “más esposas”, “traidoras”, e são acusadas por se manifestar, por quem afirma que o fazem “para procurar homem”. (5) A criminalização que as mulheres enfrentam se expressa com muito mais força contra as defensoras indígenas, afrodescendentes e raizales, principalmente em países como Guatemala, Chile, Argentina, Honduras, Peru e Equador.

Embora o número de mulheres assassinadas seja inferior ao dos seus companheiros homens, é fundamental observar que os casos de assassinato ou de “feminicídios territoriais”, como chamam algumas defensoras feministas da Guatemala, (6) são apresentados e investigados de forma diferente. A falta de reconhecimento do trabalho das defensoras e a parcialidade dos operadores do direito que aplicam preconceitos misóginos e racistas fazem com que esses casos sejam entendidos como “crimes passionais”, fora do contexto da resistência que elas lideravam, ou mesmo sejam apresentados como suicídios, reproduzindo a impunidade como regra. (7)

Portanto, a violência não termina com a eliminação da existência física das defensoras: a maneira como as investigações são conduzidas ou sua total inexistência revitimiza e culpabiliza essas mulheres, impedindo que haja justiça e reparação para elas e suas famílias.

As diferentes violências também geram impactos diferenciados na vida das defensoras. Prejuízos à sua saúde física, emocional e espiritual, que vão desde distúrbios do sono, perda de peso, sensação permanente de medo, depressão e até doenças graves como o câncer. Quando elas sofrem criminalização e estigmatização, suas condições econômicas se tornam precárias e, em muitos casos, elas são isoladas em suas próprias comunidades e famílias. No coletivo, essas agressões fragilizam suas organizações, generalizam o medo em suas companheiras e, algumas vezes, resultam na desarticulação ou na estagnação de suas lutas.

Propostas das mulheres latino-americanas para a defesa do território e a eliminação da violência contra elas

Como parte de seu trabalho de cuidado e proteção do ambiente e da natureza, as mulheres desenvolvem diversas ações que já permitiram o fortalecimento de suas reivindicações e perspectivas específicas e, em diversas ocasiões, elas conseguiram conter ou paralisar temporariamente empreendimentos extrativos que ameaçam seus territórios. Também geraram transformações significativas no plano pessoal e no coletivo, construindo novas práticas voltadas a formas de proteção e segurança integral.

Alguns de seus repertórios de ação são: a) criação de espaços de articulação e troca de experiências de defesa em nível nacional e regional e a construção de redes regionais para contribuir com a visibilidade, o apoio e o fortalecimento dos nós de resistência locais; b) mobilização e ações concretas para impedir o avanço das atividades extrativas e para recuperar a terra: “plantões”, marchas, acampamentos permanentes para bloquear instalações de empresas; c) ações voltadas a ativar mecanismos de proteção nacionais e internacionais e processos de defesa de causas perante autoridades locais e nacionais e organismos internacionais de direitos humanos; d) documentação e denúncia de agressões e criminalização das defensoras, e construção de estratégias comunicativas para visibilizar as suas lutas; e) promoção de consultas populares para que as comunidades autônomas expressem sua vontade diante de decisões e atividades que afetam o seu entorno, e exigência de consultas prévias em conformidade com as normas internacionais; f) práticas cotidianas de resistência relativas à soberania alimentar – preservação de sementes nativas e seus usos tradicionais, práticas agroecológicas – e a economia popular, feminista e solidária, e g) práticas e reflexões sobre o cuidado de si e o cuidado mútuo, incluindo a cura pessoal e a coletiva.

Uma das principais contribuições das lutas de mulheres e feministas pela defesa da terra e dos bens comuns tem sido insistir na conexão entre corpos e territórios. As feministas comunitárias guatemaltecas propuseram a categoria território corpo-terra para destacar que a luta para defender a terra contra o extrativismo deve ser simultânea e inseparável da luta para que, nos territórios, as mulheres possam ter uma vida livre de violências e da exploração de seus corpos.

A partir de suas experiências de defesa do território, as mulheres criaram apostas de transformação que tomam por base o cuidado da vida em suas múltiplas manifestações e, cada vez com mais força, integram o cuidar da terra, de si e do coletivo como elementos indispensáveis em seu militância. Essa visão integral do cuidado se reflete na forma como algumas organizações de mulheres e de povos indígenas concebem o ato de proteger: a proteção das defensoras dos direitos humanos e da natureza está necessariamente entretecida à proteção dos territórios. Nesse sentido, as organizações propõem medidas e práticas de proteção que reflitam a espiritualidade indígena, afrodescendente e raizal. Nesse contexto, a cura vai ganhando cada vez mais importância: a partir do diálogo de saberes entre povos, contextos e gerações, da reivindicação da memória dos ancestrais, as defensoras curam não só os efeitos dos ataques que sofreram por por sua luta, mas também feridas profundas das violências estruturais contra as mulheres.

Laura María Carvajal Echeverry,
Coordenadora do Programa Mulheres e Territórios do Fundo de Ação Urgente para a América Latina e o Caribe (8)

(1) Este artigo é baseado em nossa publicação “Extractivismo en América Latina. Impacto en la vida de las mujeres y propuestas de defensa de territorio”.
(2) GLOBAL WITNESS, 2018. ¿A qué precio?: Negocios irresponsables y el asesinato de personas defensoras de la tierra y del medio ambiente en 2017.
(3) Ver: CABNAL, Lorena. Sin ser consultadas: la mercantilización de nuestro territorio cuerpo-tierra. Em: Mujeres Defendiendo el Territorio. Experiencias de participación en América Latina. Fondo de Acción Urgente de América Latina y el Caribe, 2015, https://issuu.com/fondodeaccionurgente-al/docs/territorio_esp; e GARCÍA TORRES, Miriam. El feminismo reactiva la lucha contra el ‘extractivismo’ en América Latina. Publicado em La Marea, 17/02/2014, e em Red Latinoamericana de Mujeres Defensoras de los Derechos Sociales y Ambientales, 17/02/2014.
(4) Sobre uma perspectiva ampla acerca das barreiras à participação efetiva das mulheres em questões ambientais e suas experiências em diferentes países com relação a consultas populares, comunitárias e autônomas, veja nossa publicação coletiva com as defensoras de Argentina, Guatemala, Bolívia e Equador: Mujeres defendiendo el territorio: experiencias de participación en América Latina, 2015.
(5) Para uma visão geral ampliada sobre a criminalização e os ataques contra as defensoras do território, veja o nosso Relatório Regional sobre as modalidades de criminalização e limitações à participação efetiva das mulheres defensoras dos direitos ambientais, dos territórios e da natureza nas Américas.
(6) Essa categoria foi promovida pelas defensoras do território, entre elas, a Red de Sanadoras del Feminismo Comunitario de Guatemala.
(7) Para um panorama ampliado sobre a impunidade, veja o nosso Relatório Regional Impunidad de las violencias contra mujeres defensoras de los territorios, los bienes comunes y la naturaleza en América Latina, 2018.
(8) O Fundo de Ação Urgente para a América Latina e o Caribe Espanhol é um fundo feminista regional que contribui para a sustentabilidade e o fortalecimento das ativistas e seus movimentos, com apoios ágeis e estratégicos em situações de risco e oportunidade. Apoiamos as resistências, as lutas e as reivindicações das defensoras dos direitos humanos e dos territórios na transformação de sistemas de injustiça e desigualdade, colocando no centro a proteção integral feminista e o cuidado. Para mais informações, veja o nosso site.